sábado, 26 de julho de 2025

REFLEXÃO PARA O XVII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 11,1-13:

 


A liturgia deste domingo propõe a leitura do capítulo onze do evangelho segundo Lucas. Jesus e seus discípulos dão continuidade a viagem de subida para a cidade santa. Nesta seção, o evangelista apresenta a temática da oração. Nesta caminhada com o Senhor rumo à Jerusalém, para ser verdadeiramente formado por ele no discipulado, se faz necessário aprender a rezar como vive o Mestre. A oração do Cristo, de seu discípulo e da comunidade do Reino é, antes de tudo, uma forma de vida, uma ética existencialmente vivida, para poder ser uma oração comunitariamente rezada. Ao final, o catequista recorda uma pequena parábola, seguida por algumas exortações, para recomendar a atitude fundamental do discípulo que reza: a confiança.

Algumas contextualizações. A fórmula da Oração do Senhor apresentada pelo terceiro evangelista é considerada pelos biblistas como sendo a mais curta, e, por isso, a mais antiga. Outra versão se encontra no evangelho de Mateus, bem mais elaborada, segundo as necessidades daquela comunidade e de seu autor. Uma terceira forma contida na Didaqué (catequese dos primeiros séculos da vida da Igreja). Os primeiros cristãos rezavam três vezes ao dia a oração do Senhor. Esta oração é uma síntese de toda a lógica de vida de Jesus, e de toda a história da Salvação, e do projeto amoroso de Deus.

Por fim, a oração apresentada por Jesus aos discípulos no evangelho segundo Lucas consta de cinco petições: duas voltadas ao Pai (santificação de Seu nome e a vinda do Reino), e três voltadas para as necessidades fundamentais dos discípulos: pão, perdão e libertação do mal e da tentação.

O evangelista situa-nos no horizonte do texto. Jesus encontra-se em oração (v.1). Por sete vezes, durante seu ministério público, o evangelista O mostra em oração, do batismo à paixão, o que corresponde exatamente à totalidade do seu ministério (cf. 3,21; 5,16; 6,12; 9,18; 9,28-29; 11,1; 22,41). Tudo o que Ele deve realizar deve ser, primeiro, discernido segundo a vontade de Deus. Por isso, a oração para o Senhor constitui o momento através do qual pode entrar em comunhão com Deus.

“Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: Senhor, ensina-nos a rezar, como também João ensinou a seus discípulos” (v. 1b). Era comum, nos círculos rabínicos, os mestres ensinarem aos seus discípulos uma oração, a qual caracterizava a espiritualidade daquele grupo e do mestre, bem como os distinguiam dos demais. Naturalmente, por terem primeiro sido discípulos do Batista, conservavam na memória o modo de rezarem, segundo João. Jesus dá-lhes uma nova forma de se relacionar com Deus. Ela subverte a lógica e os esquemas através do qual o judeu piedoso se relacionava com YHWH. Jesus O chama de Pai. Nunca ninguém jamais havia tido essa ousadia.

A nível de conhecimento, o judeu sempre se dirigia a Deus como Santíssimo, Altíssimo, Senhor-Adonai (YHWH), o Bendito, o Eterno. Somente Jesus se dirige à Deus como Pai. É uma forma de relação superior ao modo como se relacionava Abraão, o amigo de Deus. Os discípulos não são chamados a serem somente amigos de Deus, mas seus filhos. Disso, existe uma implicação: ao chamarem Deus de Pai, os discípulos são impelidos a descobrirem-se filhos em relação a ele, e, com os outros reconhecerem-se irmãos.

A oração continua agora pedindo com confiança a revelação do plano de Deus: santificado seja o teu nome, venha o teu reino. Ele se revela “santo”, segundo a terminologia bíblica, enquanto intervém eficazmente na história para salvar; ou seja, sua santidade é manifestada pelo amor. Jesus ensina o discípulo a pedir pela vinda do Reino.

O Reino vem quando se cria entre os homens um espaço de liberdade e de amor. Ou seja, o Reino é o querer e a vontade de Deus sendo realizados na história através de seu Cristo, e, a partir de cada discípulo que opta por viver segundo a vida e o amor do Filho. Ao pedir pela vinda do Reino, o discípulo está se comprometendo, assim como o Senhor, a ser sinal desta Sua ação soberana nesta realidade.

A segunda série de pedidos se abre com a petição de pão. Jesus ensina a comunidade dos discípulos a reconhecer no Pai aquele que dá a subsistência aos oprimidos e aos pobres (cf. SI 146,7). Por isso, se pede o pão dos pobres, aquele que é dado dia após dia, através do trabalho e da solidariedade (cf. Pr 30,7-9), e não a acumulação dos pães, que é símbolo do acúmulo dos bens, fruto e sinal do abuso de poder e da violência.

O segundo pedido está relacionado com outra necessidade do homem: o perdão dos pecados. Este é invocado a Deus, o único que pode quebrar o círculo do pecado que gera pecado, solidão e morte. Contudo, Jesus ensina que se trata de um perdão mediado pelo perdão fraterno entre os homens. A abertura total ao dom de Deus e a seu perdão se traduz numa relação nova com o irmão.

A última petição que o Jesus ensina está relacionada a Tentação de abandonar a Deus, e fazer oposição ao seu projeto. A palavra peirasmós (tentação), quando aplicada aos discípulos revela o perigo da desistência e do abandono à Deus. Não são tentações de ordem carnais ou moralistas. Mas optar pelo caminho contrário ao de Deus.

Jesus, por sua vez, nos ensina a pedirmos ao Pai que não nos deixe cair nas tentações que pervertem o projeto de uma sociedade fraterna e igualitária. Às tentações do poder, do ter e do prestígio os cristãos respondem com as virtudes da partilha, do serviço, da igualdade, da solidariedade e da disponibilidade, como meios para construir uma nova realidade e história.

Dos versículos 5-11, Lucas mostra duas parábolas de Jesus que ilustram a atitude dos discípulos na oração. Elas funcionam como um comentário ao pai-nosso, visando ensinar que Deus é muito mais disponível do que um amigo, e é muito melhor do que um pai terrestre. Os três insistentes convites servem para chamar a atenção do discípulo para a firme confiança que deve animar a sua oração. Não importa aquilo que se deve pedir, o que conta é a certeza do acolhimento da oração. Com isso, a oração prepara a pessoa para o verdadeiro dom a ser pedido: o Espírito Santo. Pois será sempre Ele a realizar no discípulo a vida do Senhor. Só assim a oração não é uma fórmula mágica, nem uma retórica ou oratória vazia para dobrar Deus aos desejos humanos; não é a anestesia ou suplemento cômodo diante das frustrações e fracassos da existência. A oração é a plena abertura ao amor fiel de Deus, à liberdade criadora que encontra no dom do Espírito Santo a sua fonte e estímulo permanente.

 

Diante do texto emergem perguntas: 1) Como temos rezado? 2) A que Deus temos rezado? 3) A oração do Senhor tem sido a minha forma de vida?


sábado, 19 de julho de 2025

REFLEXÃO PARA O XVI DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 10,38-42:

 


A Igreja continua a leitura do capítulo décimo do Evangelho de Lucas. A moldura da narrativa é a mesma: a subida de Jesus para Jerusalém, meta final de sua viagem. Nos evangelhos narrados dos domingos anteriores se meditou o envio dos setenta e dois com as recomendações para a missão, anunciando, primeiramente a face de Jesus (Lc 10,1-12.17-20); a missão deve ser vivida aproximando-se de todos, a exemplo do Samaritano (Lc 10,25-37). O Mestre deseja ensinar aos discípulos – e Lucas recolhe muito bem esta intenção e a transmite para a comunidade – que a experiência do discipulado e da missão, simbolizada pela viagem de subida para Jerusalém, exige da pessoa estar aos pés do Senhor para escutá-lo. E esta condição não é um privilégio de poucos, mas um chamado a todos.

“Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa” (v. 38). O texto bíblico não tem a intenção de contar uma notícia ou crônica de jornal. Antes, transmitir uma mensagem de salvação, uma catequese. Por isso, certas situações narradas fogem do normal. O evangelista apresenta uma família nada tradicional. Ao que parece, ele deve conhece-los do evangelho de João, e, assim, manteve a tradição da família de Bethânia também em seu evangelho. Nesse sentido, não era necessário apresenta-la com tanta precisão. Importante lembrar que, na sociedade do tempo de Jesus, as famílias eram sempre apresentadas e presididas pelos homens. Neste caso, porém, o autor a apresenta primeiramente, as mulheres, Marta e Maria, sem nada dizer acerca de Lázaro, outro irmão. Destaque-se, ainda, que se trata de uma família de irmãos. Qual a importância desta informação? Nestes dois evangelhos, esta família simboliza a comunidade cristã, a Igreja. Ou seja, a comunidade é um lugar de irmãos. Ninguém é maior ou menor; mais importantes ou menos. Por fim, o versículo termina dizendo que elas acolheram Jesus em casa. Ele é que lhes vai ao encontro! Um tema muito belo da catequese lucana: através do Filho, Deus se aproxima. Ele deseja ser acolhido e abraçado pelo ser humano.

A acolhida/hospitalidade era, desde o AT, uma forma de se fazer experiência com Deus (Gn 18,1-10). Todavia, no tempo da sociedade palestinense dos anos trinta, somente o homem poderia receber um convidado em sua casa. A mulher não tinha esta autonomia. Ao acolher Jesus, Marta rompeu barreiras culturais e religiosas bem delimitadas. Ele, de sua parte, também inova porque, de acordo com as tradições de seu tempo, não parecia bem a um homem aceitar a acolhida de mulheres. O evangelista visa ensinar que, ao interno da comunidade e da vida do Reino, homem e mulher são iguais em dignidade.

Marta vai aos afazeres domésticos, conforme os costumes da época. Na verdade, ela faz aquilo que era próprio da mulher dentro de seu contexto social: ser a dona de casa (a doméstica). Sua atitude já era de ser esperada naquela situação social: exclusão dos meios masculinos e a submissão. Em contraste a ela, vemos a sua irmã, Maria. Ela senta-se aos pés de Jesus. “Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra” (v. 39). Ora, a mulher não podia ser admitida nos círculos de ensino da Lei, nas escolas rabínicas. Objetivamente, ela não poderia estar ali. Circulava o seguinte ditado: “é melhor queimar a Torá do que colocá-la nas mãos de uma mulher”.  

Na Catequese de Lucas, Maria inaugura um novo papel para as mulheres: o da discípula. O gesto de sentar aos pés não acena, em hipótese alguma, para as atitudes de adoração ou devoção, como muitas interpretações afirmavam. Muito comum no ambiente rabínico e sinanogal, o “sentar aos pés” indica a postura ideal para a escuta. O Jesus de Lucas abre espaço para o protagonismo das mulheres, restaurando a dignidade delas, dando-lhes o mesmo espaço e papel pertencente aos homens (por ex. Lc 7,11-17.36-50; 8,1-3).

“Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha, com todo o serviço? Manda que ela me venha ajudar! O Senhor, porém, lhe respondeu: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas” (v. 40-41). Marta não assumiu ainda o papel de discípula, e, não se dando conta de que aquele lugar também era para ela, se coloca sobre a sua irmã, em tom de repreensão. O diálogo, e fundamentalmente, a resposta de Jesus sobre a atitude de Maria serve para colocar em destaque a condição para se tornar autêntico discípulo-missionário: a escuta da Palavra do mestre. Não se trata de uma reprimenda ou censura. Só pode ser autêntico discípulo dele, a partir da experiência de sentar-se aos pés do Mestre! A Escuta da personagem não é um ouvir ocioso ou descomprometido, só para fugir do serviço doméstico; não se trata de passatempo; tampouco é uma obrigação. Mas é uma escuta que a coloca na dinâmica do “pôr em prática” aquela Palavra.

Jesus vê que a agitação e o ativismo de Marta a impede de fazer experiência da Palavra e com sua pessoa. Lucas expressa esta agitação através do verbo merimnao (gr. μεριμνάω), literalmente, divisão. Ou seja, mostra o estado de divisão em que a personagem se encontra quando é atraída por dois objetivos, entre escolhas opostas. Também o verbo torubazo (gr. θορυβάζω), é importante, pois mostra a confusão em que a personagem se encontra. Faz-se necessária a escuta da palavra do Mestre para que o serviço realizado pelo discípulo não se torne agitação vazia e estéril. De nada adianta o muito fazer, se antes não existir um encontro fundamental e experiencial com o Senhor e com Sua Palavra. Por isso, Ele dá uma oportunidade nova ao chamá-la duas vezes pelo nome. Na teologia bíblica, quando Deus chama uma personagem pelo nome duas vezes (Marta, Marta; Samuel, Samuel (1Sm 3,10); Moisés, Moisés (Ex 3,4); Saulo, Saulo (At 9,4)), é porque Ele está fazendo um chamado vocacional. Ele está chamando Marta a mesma condição de sua irmã: à vocação ao discipulado.

O final do diálogo é muito belo: “Só uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada” (v. 42). Embora a tradução litúrgica use a expressão “a melhor parte”, o correto é “a boa parte” (em grego: τήν άγαθήν μερίδα), pois é a única que realmente importa, e é incomparável. Essa “boa parte” é equivalente à herança que se recebe. A a parte boa que o discípulo é chamado a receber é a condição de discípulo; estar na escuta do Senhor, sentar-se aos Seus pés; ouvir e abraçar o Evangelho e a Sua vida. É escolhendo a “boa parte” que o ser humano encontra vida em plenitude. 

O texto termina sem dizer se Marta deixou o vazio e a agitação. É uma técnica do evangelista deixar o final em aberto. Trata-se de um convite para que o leitor/ouvinte do evangelho tome o lugar das personagens e se questione acerca de sua conduta, assimile o exemplo positivo e se policie quanto ao negativo.

O leitor-ouvinte do evangelho segundo Lucas encontra em Marta e Maria a experiência da escuta atenta (da Palavra de Deus), que as torna discípulas e que ordena e harmoniza o Serviço aos irmãos. Só pode servir quem faz antes a experiência da escuta da Palavra Deus. Da escuta, se move à Práxis, que é critério de verificação para a Palavra. Do contrário, fica-se imerso na agitação, no muito fazer e desconectados da escuta da Palavra de Jesus.

Ao redor de Jesus todos, indistintamente, são chamados a encontrar seus lugares. Só poderemos subir à Jerusalém com Jesus, se estivermos dispostos a fazer a experiência da hospitalidade de sua Palavra, acolhendo e servindo os irmãos. Só poderemos ser autênticos discípulos, se nos dispusermos a ficar aos pés de Jesus juntamente com eles.

Temos nos colocado aos pés de Jesus para acolher e escutar sua Palavra, e, consequentemente, tornarmos discípulos dele? Quais agitações e vazios tem me roubado da Palavra e de Jesus? Temos cooperado na promoção dos irmãos e das irmãs, de modo que eles também se tornem discípulos? Que possamos escolher a boa parte!


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP

sábado, 12 de julho de 2025

REFLEXÃO PARA O XV DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 10,27-35:

 


A liturgia deste XV domingo do tempo comum nos presenteia com a narrativa de Lc 10,27-35. É importante contextualizar o ensinamento de Jesus ao interno da obra lucana. Ele os discípulos encontram-se a caminho de Jerusalém. Após falar sobre a missão e sua dinâmica aos setenta e dois enviados, muito provavelmente este ensinamento pode ter gerado dúvidas: a quem ir? Somente aos de Israel? Quem é destinatário desta missão? De quem se deve aproximar no percurso? O mestre não começa um ensinamento sem motivo. Lucas insere um relato dividido em duas partes: o diálogo do Jesus com o doutor da lei (“especialista” em Deus e suas leis / mandamentos), e o relato parabólico do “samaritano" ou "o samaritano exemplar".

O diálogo inicia-se com uma pergunta do especialista na lei: “Mestre, o que devo fazer para ter a vida eterna? (v.25). A intenção é revelada pelo evangelista: interroga a Jesus para pô-lo à prova. O termo grego ἐκπειράζων (ekpeirásôn), comprova esta intenção. Trata-se de uma armadilha! Ainda que se transpareçam as “segundas intenções” do doutor da lei, a pergunta em si mesma era muito comum nos ambientes sinagogais. O discípulo interpelava o mestre (rabino) da seguinte maneira: “mestre, ensina-nos os caminhos da vida para que possamos merecer a vida futura”. O acento da pergunta está no “fazer” – na práxis – , o que é muito autêntico e original na cultura bíblica.

Jesus responde à pergunta do doutor com uma interrogação: “O que está escrito na Lei? Como lês? (v.26). Com isso, o mestre de Nazaré reorienta o doutor da lei à própria Lei, fazendo-o comprometer-se com aquilo que ensina aos outros, de modo a se enxergar no próprio texto, e no ensinamento nele contido, para confrontar-se em sua prática. Importante: o Senhor aponta para a Lei (Torá = Instrução), porque nela está contida toda a revelação da vontade do Deus de Israel, ou seja, é uma maneira de se dizer que não há necessidade nem espaço para novas formulações.

O Doutor lhe responde com a formula da profissão de Fé do povo de Israel – o Shemá (Escuta, ó Israel) – expressada em Dt 6,5: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua inteligência”. E acrescenta Lv.19,18: “E o teu próximo como a ti mesmo”. A junção das duas normativas acena para a implicação do modo coerente e exato de se ler e viver as escrituras, de modo a entrar no caminho para a vida, ou seja, através da relação vital e existencial com Deus verificada na relação com o próximo. Jesus aprova a resposta do doutor da Lei e não lhe acrescenta nenhum outro ensinamento, dizendo apenas “Faze isto e viverás”.

O amor ao próximo estava na pauta da pregação dos profetas, no Antigo Testamento, e por isso, previsto na Torá, na Palavra de Deus. Eles, em suas pregações e denúncias contra o povo infiel, condenavam as práticas religiosas (orações, cultos, sacrifícios, liturgias) desvinculadas da relação com o próximo. Após o retorno do exílio na Babilônia, o povo começou a dar mais ênfase as suas relações com YHWH pelas vias das práticas religiosas da oração, do culto e da liturgia. Eles pensavam que as liturgias, os incensos e os sacrifícios podiam aplacar a ira de Deus e compra-lo; que podiam tê-Lo nas palmas das mãos. Os profetas condenarão essa ideia e prática. Deus não se deixa comprar, nem se agrada com essa mentalidade; não se deixa levar por nada de aparente ou externo. Com Deus não há barganha. É o que Jesus revelará através de sua missão e o que o evangelista trata de transmitir à sua comunidade.

Agora entramos no segundo momento da narrativa: a parábola do Bom Samaritano. Jesus a conta em virtude da pergunta sem-jeito do doutor da Lei: “Quem é meu próximo?”. Pistas importantes para se compreender o ensinamento evangélico a partir daqui: 1) A parábola é aquele gênero literário sapiencial que se serve da realidade cotidiana simples para se transmitir um ensinamento. Ela chama a atenção do leitor-ouvinte, provoca-o, e o instiga a tomar uma atitude nova (diferente). 2) O termo “próximo” utilizado na pergunta do doutor da lei precisa ser compreendido: no judaísmo do tempo de Jesus os judeus só consideravam pessoas próximas a seus compatriotas. Quem não pertencesse ao povo não era considerado “próximo”. 3) a melhor forma de se entendera pergunta da personagem pode ser esta: “de quem devo me aproximar?”

Jesus começa a narrar que um homem (e pelo contexto judaico se pode intuir que seja um israelita) descia de Jerusalém para Jericó (v.30-36). No caminho caiu nas mãos de assaltantes violentos. Estes o deixam quase morto pelo caminho. Sobem pelo caminho um sacerdote e um levita (ambos especialistas da liturgia levítico-cultual) e passam pelo caído-ferido sem nem ao menos tocá-lo, para que não ficassem impuros para culto e para as orações, conforme previa a Lei mosaica. Mas um terceiro personagem aparece no relato. Um samaritano. Uma figura controversa.

Os Judeus não se davam com os samaritanos. A Samaria, bem como o norte de Israel, a Galileia das nações, eram tidos como pagãos e, portanto, impuros, desde a dominação do império assírio em 722 a.C, quando do primeiro exílio promovido por esse império. A política de dominação deles era muita perversa. Ao deportar e dispersar a população local para as diferentes regiões de seu império, os assírios colocavam no lugar destes povos locais outros povos, misturando-os consigo mesmos. Nesse sentido, o norte de Israel sofreu influência religiosa de outros povos, que se mesclavam com a fé judaica. Devido a essa miscigenação, os Judeus do sul (de Jerusalém) consideravam os samaritanos como impuros e hereges.

A esta altura, a parábola explicita seu elemento paradoxal, que visa chamar e prender a atenção do leitor: é um samaritano, que na parábola, cumpre perfeitamente a Lei de todos os israelitas; aquele que era considerado “herege”, pagão e estrangeiro cumpre com perfeição a Lei do Amor a Deus. Imagine com realismo a cena: um judeu, jamais tocaria numa pessoa ferida, devido a proibição de ter contato com o sangue alheio. Caso o fizesse, ficaria impuro, necessitando dos rituais de purificação realizados posteriormente, mesmo sendo um seu compatriota. O samaritano rompe com esta prescrição da lei de Moisés. Por isso, a sua atitude chama a atenção do leitor-ouvinte da parábola. E precisa incomodar.

O texto é bem claro, o samaritano, aproxima-se movido por compaixão e socorre o homem caído e ferido. O termo compaixão é traduzido por Misericórdia (σπλαγχνίζομαι/Splangnisomai). Ele traduz o termo hebraico Hesed (amor), que significa um amor visceral, entranhado. Por isso, compaixão/misericórdia não consiste em sentimento. É uma atitude: a capacidade de agir em favor do outro que sofre. Deus, diante do sofrimento dos pequenos e pobres, dos marginalizados e oprimidos, remexe-se no seu íntimo e intervém em favor deles; tem “dor de barriga” pelo sofrimento do outro e só assim é capaz de agir com misericórdia, com seu amor visceral. Lucas em sua catequese evangélica identifica a misericórdia de Deus em Jesus. Ele é o rosto e a personificação da Misericórdia de Deus. Jesus é a Misericórdia que se fez carne.

“Na tua opinião, qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” (v.36). Entramos na pragmática do Texto, sua intencionalidade e finalidade para a comunidade cristã daquela primeira hora, e para nós, a geração posterior. Jesus, ao perguntar ao doutor a opinião dele faz com que se posicione e reconheça-se também neste relato.

Para Jesus, não se deve questionar quem é ou quem pode ser objeto do amor misericordioso, mas como alguém pode tornar-se próximo do outro. O próximo é, então, todo aquele que se aproxima do outro com um amor operativo, e não com teorias. É aquele que transcende os limites socioculturais; que ultrapassa todo o senso de diferença (e socorre a diversidade). E aqui é que se distingue quem é autêntico discípulo-apóstolo de Jesus.

As comunidades cristãs, e de modo particular, a de Lucas compreenderam Jesus como o bom samaritano. Jericó pode simbolizar tudo aquilo que desumaniza o ser humano a ponto de fazê-lo perder sua dignidade de filho de Deus. O Senhor desce à Jericó da marginalização, da exclusão, da perda de sentido da vida. Ele é o estrangeiro galileu que realiza as tradições religiosas de seu povo até as últimas consequências. Aquele que se moveu no íntimo de suas entranhas devido aos sofrimentos dos outros, e por isso moveu-se exteriormente em atitudes humanizadoras. É precisamente assim que o discípulo do Reino deve se comportar.  

Uma bela interpretação alegórica proposta por Orígenes de Alexandria, escritor eclesiástico da virada do século I para o II, pode ajudar. Ele dirá que o caído da parábola simboliza o velho Adão, que desceu do paraíso (Jerusalém) para o mundo (Jericó), e o Samaritano é símbolo do Cristo. A hospedaria é símbolo da Igreja, comunidade do Ressuscitado, que tem por dever cuidar dos caídos pelo caminho. Ser verdadeiro hospital de campanha no meio do mundo, como disse o saudoso Papa Francisco. Deve ser ela casa da misericórdia, e cuidar para que todos tenham sua dignidade restituída.

O texto suscita perguntas: como temos lido a Palavra de Deus: com seu verdadeiro espírito e sentido, ou a partir de nossos próprios interesses e convicções? Sabemos, hoje, como discípulos e comunidade reconhecer os caídos e feridos deste mundo? Sabemos acolhê-los, com suas feridas e cuidá-los? Temos coragem de tocar-lhes as feridas, e nelas nos sujarmos, ou preferimos uma espiritualidade estéril, desvinculada das relações humanizadoras, desencarnadas da prática do amor-misericórdia?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 5 de julho de 2025

REFLEXÃO PARA O XIV DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 10,1-12.17-20:

 


O texto proposto para a liturgia do décimo quarto domingo do tempo comum é extraído do capítulo décimo do Evangelho segundo Lucas. Vale lembrar que já se iniciou em 9,51 a viagem de subida de Jesus para Jerusalém. Até o capítulo 19, o evangelista relata a peregrinação do mestre com seus discípulos para a cidade santa. Não se trata de uma viagem turística, como já se afirmou em outras ocasiões, mas de um itinerário formativo-catequético para aquele e aquela que deseja iniciar o seguimento ao Senhor.

Agora se pode adentrar no horizonte do texto e saboreá-lo. O v.1 introduz a narrativa informando o leitor que Jesus reuniu e escolheu para junto de si outros 72 (dependendo do manuscrito do evangelho segundo Lucas o número é 70), e os envia, dois a dois, à sua frente, a todas as cidades e lugares que Ele deveria percorrer, paralelamente à missão do grupo dos Doze.

O número 70 (72) é importante, e, na verdade, revela a intencionalidade do próprio Lucas. Ele recupera para a sua comunidade a narrativa de Gn 10, onde se encontra o elenco das nações. Faz lembrar, também, da narrativa contida em Nm 11,16, onde Deus infunde em setenta homens prudentes, o mesmo Espírito dado a Moisés e Aarão. Assim, o número setenta indica a universalidade. O tema da universalidade da salvação é muito querido por Lucas. A salvação é um convite que Deus faz à todos, e por isso ninguém deve ficar de fora. Tanto da salvação, como da missão. O Reino de Deus é a origem da missão cristã: todos são convocados a tomar parte na tarefa de anunciar a presença de Jesus, aquele que traz para dentro da história humana o projeto de Deus. O costume de se enviar em dupla se deve ao fato de que um testemunho ou anuncio só pode ser corroborado por mais de uma pessoa.

O original grego ajuda a captar com profundidade a orientação para que o discípulo vá a frente de Jesus. “E enviou-os, dois a dois, na sua frente”, pode ser melhor traduzido por “Enviou-os, dois a dois a partir de sua face” (πρὸ προσώπου αὐτοῦ/pró prosópou autoû). O discípulo é enviado para levar e anunciar a face de Jesus. Ou seja, a verdadeira imagem do Senhor. Através da missão do enviado fazer resplandecer a imagem daquele o enviou.

Jesus lhes ordena que rezem. Esta é, portanto, a primeira característica do discípulo do Reino. A oração, no evangelho de Lucas é sempre o indicativo de que tudo aquilo que o Senhor está para fazer corresponde com o querer do Pai, e fora discernido na oração. O que o Mestre faz vale, evidentemente, para seus discípulos, ou seja, deverão se colocar em relação à Deus através da oração. Ela se revela um pedido: que o Dono da messe (da colheita) envie mais operários. Esta oração, portanto, ressalta que a Missão é Graça de Deus. É um projeto Dele.

Outra característica do discípulo-missionário de Jesus é a revelada por ele no v.3. Os discípulos são pessoas que anunciam o Reino de Deus numa realidade conflituosa e que vive na contramão do projeto de Deus. “Eis que vos envio como ovelhas no meio de lobos”. A ovelha, na teologia do Novo Testamento, sempre é aplicada ao discípulo como sendo um símbolo para este. Ele deve ser como a ovelha, ou seja, sempre pertencente ao rebanho, na íntima relação com o seu pastor; deve ser sempre dócil, solícita e atenta ao que ele pedir; é, ainda, imagem da simplicidade e da paz. Devem sempre ter presente que possuem um pastor que as defende. Nesse sentido, os anunciadores do Reino não devem empregar os métodos violentos da sociedade que vai matar Jesus e perseguir seus discípulos. Assim, anuncia o Reino quem se despoja do poder. Mesmo sendo enviadas em meio aos lobos, que simbolizam todos aqueles que se servem do poder, da violência, da opressão e da maldade.

“Não leveis bolsa, nem sacola, nem sandálias, e não cumprimenteis ninguém pelo caminho!” (v.4). Uma terceira característica do discípulo do Reino é a sua entrega confiante à providência de Deus, caracterizada pela orientação de nada levar pelo caminho. O pobre bíblico não é somente aquele que nada tem, no sentido econômico apenas, mas também é aquele que não se fecha sobre o que possui. Nesse sentido, não tendo nada ou possuindo ainda pouco, o pobre é aquele que não se fecha nem naquele pouco, e, abrindo mão do que tem, entrega-se confiante nas mãos de Deus. Só pode ser discípulo e anunciador do reino quem se despoja do ter. A mensagem possui também um caráter urgente. É o que Jesus quer dizer no v. 4: “não cumprimenteis ninguém pelo caminho!”. Não é um incentivo a falta de educação ou a insensibilidade, mas um apelo para que não se perca tempo com conversas ou coisas fúteis no decorrer da missão. A tarefa é anunciar o Reino, e não falar ou dizer coisas sem sentido. O discípulo não poder perder tempo ou gastar energia em conversas ou em situações que não edificam.

Os discípulos-missionário do reino possuem mais uma característica importante: são pessoas que se preocupam por restaurar a dignidade perdida do outro: “Quando entrardes numa cidade e fordes bem recebidos, comei do que vos servirem, curai os doentes que nela houver e dizei ao povo: 'O Reino de Deus está próximo de vós.'” (v.8-9). Comer do que for servido significa a capacidade de se criar laços relacionais, uma vez que as relações cresciam e se fortaleciam no sentar-se à mesa para partilhar uma refeição. No caso dos enfermos, eles eram considerados pecadores por conta da doença que possuíam, segundo a mentalidade religiosa da época, que a considerava como castigo e fruto do pecado. Por isso, eram afastados do convívio social e religioso. Nos evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc) as curas que Jesus realiza revelam-no como enviado de Deus para anunciar o Reino. O Reinado de Deus é Ele mesmo agindo na história através de Jesus. Para que o anúncio seja pleno deve-se recuperar a dignidade dos que se encontram marginalizados e excluídos.

O anúncio nem sempre é acolhido. Sofre resistências. No v.11, Jesus profere uma sentença que merece ser bem compreendida. “Mas, quando entrardes numa cidade e não fordes bem recebidos, saindo pelas ruas, dizei: Até a poeira de vossa cidade, que se apegou aos nossos pés, sacudimos contra vós”. O gesto de sacudir a poeira não significa maldição da parte de Deus. Ele se torna um símbolo profético da recusa dos destinatários, e da ruptura, por parte dos discípulos, com a conduta daqueles que fizeram ouvidos de mercador ao anúncio do Reino. Todavia, alerta Jesus, “sabei que o Reino de Deus está próximo!” (v.11). 

Na sequência, a liturgia insere os vv.17-20. “Os setenta e dois voltaram muito contentes, dizendo: 'Senhor, até os demônios nos obedeceram por causa do teu nome” (v.17). Jesus declara a eles que, de fato, “viu Satanás cair do céu como um relâmpago” (v.18). O que significa este dito? Ele se serve de um versículo que se encontra em Is 14, “Como caíste do céu, Lúcifer, filho da aurora...” (Is 14,12). Para exprimir a vitória dos discípulos, o Senhor recorre à imagem com a qual o profeta descreve a queda da Babilônia e de seu rei. Nesse sentido, a expulsão de demônios por parte dos discípulos demonstra que eles têm a mesma missão de Jesus.

Com o anúncio do Reino, o poder de Satanás, que é um poder de dominação e de morte, termina. Satanás é símbolo para tudo aquilo que é antagônico ao projeto de Jesus e do Pai. Quando a comunidade age segundo o modelo da vida do Senhor, ela se coloca na contramão do anti-reino e declara a falência dele e de todas as forças, sistemas de morte e de alienação que atingem o ser humano e que o impedem de viver a liberdade do Reino.

“Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem. Antes, ficai alegres porque vossos nomes estão escritos no céu” (v.20). Jesus alerta para a tentação da comunidade de se embriagar pelo poder e pelo sucesso. O poder de vencer o mal lhes é dado pelo Senhor (“Eu dei a vocês o poder...”). Por isso, os discípulos precisam entender que o poder que o Mestre lhes delega como instrumento é para libertar as pessoas dos poderes que oprimem. Nesse sentido, a alegria dos discípulos é saber que são protagonistas da graça e da gratuidade do Deus que caminha no meio da história: “Fiquem alegres porque os nomes de vocês estão escritos no céu”.

O texto nos propõe perguntas: 1) no caminho (da vida e do discipulado) com Jesus, que ruma para Jerusalém, quais características do discipulado ainda precisam ser assimiladas por mim? 2) nossas comunidades têm assumido o projeto da missão de Jesus, sendo, de fato, uma comunidade discípula-missionária?

 

Que sigamos os passos do Senhor.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.