sábado, 26 de abril de 2025

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 20,19-31:

 


A liturgia deste segundo domingo de páscoa apresenta a leitura e meditação do belíssimo texto de Jo 20,19-31, onde se narra o encontro de Jesus Ressuscitado com a comunidade dos discípulos. Durante esta oitava pascal – um grande domingo vivido na semana – a Igreja teve a oportunidade de vivenciar uma série de encontros com o Senhor, após a experiência do sepulcro vazio. Esta narrativa que meditaremos a seguir é a imediata continuação do encontro de Madalena com o Cristo no jardim da sepultura (Jo 20,11-18). Trata-se de uma verdadeira página de catequese que deseja recuperar e transmitir uma força de ânimo para as comunidades e para os discípulos de todos os tempos e lugares. Na verdade, este trecho evangélico trata de mostrar a ressurreição da comunidade e do discípulo. Com efeito, o texto transmite o sentido pleno da ressurreição de Jesus: ela é a nova criação realizada por Deus para se gerar ressurreição nas pessoas.

Uma importante constatação: os relatos pascais, ou seja, que contém e transmitem a experiência com Jesus Ressuscitado são textos que narram o Encontro vivenciado entre a comunidade e Ele. Não são narrativas de aparições de um fantasma ou de uma alma desencarnada. Nada disso!

Há diferença entre aparição e encontro? Sim. Os textos evangélicos pós-pascais desejam afirmar que a iniciativa do encontro é do próprio Jesus. Sabendo das dificuldades que ela possui na assimilação do acontecido com Sua vida, Ele mesmo vai ao encontro dela. Esta, por sua vez, faz a experiência com o Senhor atualizando a memória e o sentido de Sua vida. Através desta dinâmica relacional, se pode fazer experiência com o Ressuscitado e com a ressurreição. Para ficar mais claro ainda, estes relatos são de Encontros porque Jesus não é uma alma penada (o que não existe); tampouco uma ideia ou memória psicológica; mas, um vivente. Somente com um vivo se pode experimentar encontros. Feitas estas considerações iniciais e a nível de contexto, se pode mergulhar com profundidade no texto.

O v.19 é denso: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam...” João nos situa no tempo e no espaço. A anotação que oferece, não é sem sentido pois ele deseja mostrar que o espaço e o tempo mudaram. Não é mais o amanhecer, mas o entardecer, o final daquele primeiro dia. A informação soa também como uma advertência: o dia avançou, e, com ele, se faz necessário que as consciências dos discípulos acerca do acontecido com Jesus tenham também avançado, e, portanto, mudado. Mesmo o dia tendo avançado, o cenário tendo mudado, a comunidade encontra-se fechada no medo.

O medo é o contrário da Fé. Ele, se não encarado, pode paralisar a pessoa. João pretende mostrar o estado de ânimo da comunidade frustrada pela morte de seu mestre: bloqueada na experiência do medo. Isso a impede de fazer a memória das palavras do Senhor que se disse vencedor do mundo. Há que se entender que não há mal em ter medo. Ele é um mecanismo natural da condição humana. Não se pode viver a vida de forma banal e destemida. Não é isso que o evangelho orienta e pede. Ao contrário, é necessário saber coexistir com ele, tomar a vida nas mãos e se aventurar a viver. Não cair na tentação de perder a vida por deixar-se bloquear pelo medo. No horizonte da vida daqueles primeiros discípulos, o medo era devido à captura do mestre, que poderia resultar na prisão também deles. Outra face que o medo oferece aos discípulos é aquela de assumir o sentido da vida do Senhor. E, agora, “sozinhos”, ou seja, sem a presença física do Cristo, terem de viver as consequências das escolhas.

“Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: ‘A paz esteja convosco’” (v.19b). A superação do medo se dá com a certeza da presença de Jesus Ressuscitado que lhes comunica uma plenitude da vida. A Paz (hbr. Shalon) que ele oferece aos discípulos tem esse significado de plenitude dos bens divinos; a certeza de que Deus agiu de forma definitiva. E a maneira através da qual ele agiu foi a forma da vida de Seu Filho, que se torna o realizador das promessas de Deus. Não há porque ficar preso no medo quando se tem a certeza que em Jesus Deus já nos deu as condições de viver; é como se ele dissesse “tudo está realizado; eu vos abri o caminho para a vida; tome a vida nas mãos e se coloque a vive-la”.

Um detalhe importante: o evangelista apresenta Jesus em meio aos discípulos. A intenção é a de ensinar que quando o Senhor está em meio, a comunidade e o discípulo podem fazer experiência com Sua vida plena. O centro da vida de ambos deve ser o Cristo. Quando ele está no meio não existe maior ou menor. Todos são iguais; todos estão referidos à uma única direção: o Vivente. Em Jesus, Deus não está acima ou distante de todos, mas próximo.

“Depois destas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (v.20). Esta informação é profunda e carregada de significado. Primeiro: o evangelista quer mostrar para a sua comunidade que o Ressuscitado traz consigo as marcas da sua paixão e morte, isto é, o Crucificado é o Ressuscitado. Não é um fantasma. Não é alguém diferente. Segundo: o sentido que o Senhor deu à Sua existência, pois na antropologia bíblica as mãos são símbolos do agir. Mostra-las aos discípulos significa fazê-los compreender qual foi o caminho pelo qual decidiu pautar a sua missão. Eles precisam fazer memória de quando e para quem Jesus utilizou as mãos; a quem elas tocaram, a quem reergueram e ajudaram, a quem e para onde apontaram caminhos. Tocaram e acolheram os pecadores, os enfermos, os excluídos. Este foi o sentido do agir do Senhor. Com isso, ele está a dizer: “Se olhares as minhas mãos, isto é, fizeres experiência com o sentido da minha vida, de minhas ações, de meus gestos e opções, então fareis experiência de vida; de ressurreição. Compreendereis que esta minha forma de viver corresponde à vida em plenitude, a vida eterna”

Mostrar o lado aberto significa indicar que este agir foi motivado por puro amor, pois o lado alude ao coração e este é imagem do amor existencialmente vivido. Se as mãos e o  lado dos discípulos forem semelhantes às do Senhor, então eles terão capacidade de gerar e promover ressurreição na vida das pessoas.

No v.21, ao conceder a Sua paz, Jesus abre os discípulos para o horizonte da missão: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio". O evangelista deseja ensinar para a sua comunidade que a obra e missão do Senhor tem origem no querer divino do Pai. Há uma comunhão de vida entre eles. Desta comunhão de plenitude de vida, ele deseja tornar participante o discípulo e a comunidade. Enviados pelo Cristo estarão em unidade e em comunhão com o Pai.

Depois de enviar os discípulos, Jesus realiza um gesto muito profundo e carregado de significado, que o evangelista soube recordar e transmitir: “soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (v.22). O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus soprou nas narinas do vivente seu sopro de vida. O verbo soprar (gr. έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. No seu gesto, Jesus recria a comunidade e, através dela, a humanidade inteira, e, por isso, na Sua ressurreição acontece uma nova Criação. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida.

“A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor do Senhor é espalhado pelo mundo. Note-se, que este dinamismo de vida e amor – o Espírito – é dado à toda a comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. O Senhor não está dando um poder exclusivo aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo; transformar as realidades.

A comunidade eclesial tem a missão de eliminar o Pecado da realidade do mundo, porque ele não foi criado em Pecado, muito menos para o pecado. Todas as vezes que o discípulo e a comunidade conseguem retirar o irmão da situação de morte e fazê-lo viver, tirando da vida dele qualquer situação de pecado estará dando espaço para a ressurreição e a vida na existência daquela pessoa.

A comunidade não está completa. Falta um certo Tomé, que, diga-se de passagem, precisa ser compreendido bem. Ele não se encontra ali, naquele ambiente fechado. O que pode acenar para o fato de que ele não compartilha da mesma mentalidade.  Dídimo (gr. διδυμος), cujo significado é gêmeo, era seu nome. Esta personagem, na verdade, é um convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a toma-lo como seu gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e convicto; mas reconhecer também suas dificuldades.

Tomé não estava com eles porque não tinha medo (oposição da Fé), e, por isso, não se deixou paralisar diante da experiência negativa. Portanto, circulava livremente e sem temor algum. Oito dias depois (que continua sendo o primeiro da semana, o dia da Memória do Ressuscitado), Jesus novamente se pões no meio deles, deseja-lhes a Paz; se dirige a Tomé. Convida-o a realizar o gesto que havia pedido como prova. Todavia, ao invés de tocar o Senhor, o discípulo formula uma confissão de fé de valor incomparável: “Meu Senhor e meu Deus!” O título de Senhor (Kyrios) é o que cabe àquele que entrou na glória de Deus. João reserva este título para Jesus ressuscitado. O título “Deus” aplicado a Jesus retoma a dupla menção no Prólogo (Jo 1,1.18), a qual tem a intenção de afirmar a identidade do Mestre.

Aqui, revela-se a intencionalidade do texto. A bem-aventurança proclamada por Jesus: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos: muito questionadores, chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. O evangelista responde a essa realidade: não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar por excelência de manifestação do Ressuscitado.

Quais são os medos que ainda podem nos paralisar e à nossa comunidade? O Cristo tem ocupado o centro de nossas vidas e de nossas comunidades? Nossas comunidades conseguem aponta-lo aos que necessitam desta experiência de vida plena? Quais dimensões em mim precisam ser recriadas pelo Senhor?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

 

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP


sexta-feira, 18 de abril de 2025

TRÍDUO PASCAL – SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO DO SENHOR: Jo 18,1 – 19,42.

 


A narrativa da paixão no evangelho joanino é diferente das contidas nos sinótcos (Mc, Mt e Lc). O evangelista segue um fio narrativo de Mc (o primeiro evangelho escrito), porém distancia-se e muito na forma de narrar e de apresentar a personagem principal da “opera”, por assim dizer. Trata-se de um relato que vai a fundo ao apresentar e revelar a Glória de Deus em Jesus. O catequista bíblico não economiza ao mostrar a realeza de Jesus. Pode-se dizer com toda a segurança que, ao interno da narrativa da paixão em João, e somente nesta seção narrativa, Jesus é mostrado como soberano; é rei. Devido ao fato da extensão do relato joanino da paixão, opto por apresentar esta reflexão a partir das personagens: quem são, o que fazem e quais finalidades possuem ao interno do relato, a fim de transmitir a mensagem salvífica que o texto contém e que o autor quer entregar para a sua comunidade e para as gerações futuras dos discípulos. Contudo, é importante situar o texto ao interno do contexto litúrgico, isto é, na sequência do texto da quinta-feira santa da ceia do Senhor. Ora, somente o discípulo que segue Jesus até à “bacia, o Jarro e à mesa”, poderá tomar parte da hora da glorificação.

 

Chegou a Hora de Jesus. Durante toda a primeira parte do evangelho joanino – o livro dos sinais – os gestos simbólicos operados por ele possuem a finalidade de revela-lo como enviado do Pai, Aquele que realizará sua obra, como também aprontar o discípulo para a Hora da Glória (seu enaltecimento/elevação). Um esclarecimento importante: a Glória da qual fala o evangelista João não pode ser entendida como um brilho ou algo resplandecente. No vocabulário do evangelista, que é todo proveniente da tradição bíblica do Antigo Testamento, a palavra “glória” (hbr. Kabod) é traduzida por “presença”. Logo, ao se falar da “Glória de Deus” (Ez 10; Ez 43,1-27), está se referindo à presença (ao peso) de Deus. A glória, portanto, da qual o Jesus joanino fala é a realidade da presença de Deus mesmo no dom da Sua vida, existência e obra. Quando se revela a Glória de Jesus? Na Hora da Cruz. Ela revela a que a vida de Jesus é o [novo] lugar/santuário da presença de Deus na história. Agora podemos tomar o texto a partir das personagens.

 

No Jardim (Jesus e Judas) – Jo 18,1-12:

 

O evangelista chama a atenção do discípulo-leitor para Jesus. Na teologia do Quarto Evangelho, João o apresenta sempre consciente e onisciente. Na ceia (13,4), o havia relatado ciente de que havia chegado a sua Hora, e de que tudo o Pai havia posto em suas mãos.  Não seria diferente na narrativa da paixão. Ele não é vitimizado pela situação. Não permite que ninguém, exceto o Pai, tenha a Sua vida nas mãos. É um homem senhor-de-si.  Por isso, não é surpreendido por Judas e pelas pessoas que vieram prendê-lo. Note-se que Ele mesmo vai ao encontro do traidor (Jo 18, 4). Típica ironia joanina, o evangelista nos conta que Judas vem equipado com lanternas e tochas, que são iluminações artificiais. Recordemos que na ceia Judas já havia feito sua opção pelas trevas à luz que veio no mundo (3, 19). Ao sair do convívio com Jesus na ceia já era noite fechada (13, 30). O evangelista quer mostrar que este discípulo fez a opção contrária à luz; cindiu com ela. E agora, ele é quem precisa de luz artificial. Esta personagem contrasta com Jesus na medida em decide-se por agir contra o projeto e o querer de Deus que se realiza através do Filho. Judas é o modelo que o verdadeiro discípulo deve rejeitar, ou se distanciar na medida em que vai relacionando-se com Jesus.

 

 

 

Anás, Pedro e o discípulo amado - Jo 18,13-27:

 

O evangelista apresenta três personagens. Anás, sogro de Caifás, o sumo sacerdote em exercício. O segundo personagem é Pedro. Notemos um contraste operado pelo evangelista entre Pedro e Jesus: enquanto este está demonstrando sua inocência naquele interrogatório viciado, seu mais conhecido seguidor está mostrando fraqueza. Pedro, durante a narrativa da ceia se mostra todo resistente. Esta personagem serve ao discípulo que lê o Evangelho de João como símbolo daquele que precisa assimilar verdadeiramente o sentido da vida de Jesus, para poder fazer a sua opção pró-Jesus. Emerge uma outra personagem, presumivelmente “o discípulo que Jesus amava”. Não há fundamento em identificá-lo com João, o autor do Quarto Evangelho (o que seria demasiado simplista). Mas, fato é, ele está à frente de Pedro e contrasta com ele. Ele é sempre mais rápido ao ver, ao compreender e em acreditar, precisamente porque fez a experiência com o amor de Jesus, que é uma marca da verdadeira condição de discípulo

 

 

 

Jesus diante de Pilatos – Jo 18, 28-42:

 

O evangelista apresenta uma personagem confusa. Um camaleão. Um amedrontado Pilatos. Soma-se a isso a alternância dos cenários externos e internos. Nesse vai-e-vem, Pilatos vai mudando e assimilando as imagens de seus ambientes. Ao interno do palácio ocorre a alternância entre luz (externo) e trevas (interno). Na maneira como João dispõe a narrativa, o inquérito acontece ao interno do palácio, para revelar esta oposição típica de seu evangelho: luz / trevas. A intenção (ainda que através de sua ironia) é revelar Jesus, mesmo solitário e recluso no palácio, como Luz diante de Pilatos, envolvido em dúvidas e trevas.

 

O diálogo entre eles revela muito, de acordo com o evangelista. Na intenção dele está para começar o processo de Jesus contra o Mundo, representado pelo Império. João disse no prólogo do evangelho que “O mundo não o conheceu (Jesus), e os seus não O acolheram”. Jesus está diante do procurador romano, que o interroga com base naquilo que ouviu. “Tu és o rei dos judeus?” A resposta de Jesus soa desafiadora: “Estas dizendo isso por ti mesmo, ou outros te disseram isso de mim?” Jesus não responde nem que sim, nem que não. Ele deixa que o próprio Pilatos tome sua decisão e tire suas conclusões. Ao insistir na culpabilidade de Jesus, emerge, pois, uma declaração muito importante acerca de Jesus, de sua vida e obra. Ele responde: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui”. O que o Jesus joanino quer dizer com essa reposta?

 

Se faz necessário tomar o texto dos originais, em grego, para captar o sentido da resposta de Jesus, que se expressa assim: “o meu reino não vem deste mundo ( gr. Ἡ βασιλεία ἡ ἐμὴ οὐκ ἔστιν ἐκ τοῦ κόσμου τούτου / ek tou kosmou tuotou)”. A realeza de Jesus não provém das realidades mundanas, das estruturas de poder, domínio, opressão. Vem do alto. Jesus declara, pois, que sua realeza depende e está estritamente relacionada à Deus. A autoridade que ele exerce, só a faz porque é da vontade do Pai. As palavras “meu reino não é daqui (= deste mundo)”, portanto, não dão margem para sugerir uma fuga do mundo, da realidade, da história humana, nem justificam qualquer tipo de alienação. Pelo contrário, convocam o discípulo a uma lucidez superior. Aderir ao reino de Jesus é aderir à verdade daquele que, em tudo o que faz, é palavra de Deus e que liberta de toda escravidão, e que restaura o mundo, enquanto realidade criada por Deus.

 

Mas neste diálogo emerge mais uma novidade muito profunda e marcante. Pensemos. Pela lógica do inquérito, Pilatos faz as vezes do juiz que interroga, questiona e apura os fatos para dar cabo de uma sentença. Entretanto, a partir das respostas eloquentes que Jesus dá aponta para uma revelação importante: o juiz não é Pilatos. No inquérito, quem assume a figura do juiz é Jesus, deixando para Pilatos o papel de investigado. Mais uma vez, a finalidade é mostrar Jesus superior a realidade e a trama que o circundam, porque só quem autoridade sobre sua vida é o Pai. E mesmo assim, é através de sua liberdade enquanto homem que Jesus vive sua fidelidade ao projeto de vida plena, em amor até o fim, ao Deus que chama de Abá-Pai. Porque este Abá não exige do seu Filho qualquer sacrifício de sangue, ou mesmo uma morte expiatória.

 

 

 

A morte (19,28-37):

 

Após um caminho longo, Jesus chega ao lugar da crucifixão. Depois de tomar o vinho azedo, Jesus exclama: “Tudo está consumado” (mesma expressão do v. 28), inclina a cabeça e “entrega o espírito”. Nestes versículos 28-30 ocorre duas vezes o verbo teléo, “consumar/levar ao fim” (vv. 28 e 30). O dito “Tudo está consumado” acena para a realidade de que toda a vida de Jesus, através de suas obras e Palavra refletem a vontade de Deus. Significa, ainda, que a vida e obra de Jesus atingem a Plenitude. Mas também revela a superação dos sistemas antigos dos sacrifícios levítico-cultuais. João faz coincidir a morte de Jesus no calvário com o exato momento em que se imolavam os cordeiros no templo, por ocasião da festa da pascoa. Jesus supera, com o dom de sua vida em amor, os antigos sacrifícios e se torna, pois, o único mediador entre a humanidade e Deus. Não são mais a observância da Lei, nem das prescrições cultuais os meios necessários para se ter acesso a Deus, mas a humanidade, a vida e a obra de Jesus. Esta vida, Ele a entrega nas mãos do Pai.

 

O “entregar o espírito” (a existência) acena para aquela onisciência e senhorio de Jesus, de que se falou a pouco. O verbo grego paradidomai (entregar/doar) percorre toda a narrativa da paixão, mas aqui ele revela e, ao mesmo tempo, afirma o domínio de Jesus diante da situação: quem entrega sua vida é ele mesmo, sabendo que tem o poder de retomá-la novamente. Ele livremente a doa, para que o Pai reconheça esta mesma vida como salvífica e redentora, dizendo a última palavra sobre a vida deste seu Filho.

 

A morte de Jesus, de maneira tão crua, só pode ser entendida à luz de sua vida vivida, através de seu ministério. Ela é a consequência e o resultado da vida, das opções, decisões, vividas à luz do amor fiel ao Pai e aos irmãos, mesmo em face às hostilidades dos chefes do povo. Isso não é fazer uma leitura política da vida de Jesus. Sua vida era conflituosa pelas questões que provocava e pelos interesses que abalava. Isto vê-se no seu modo de viver, na sua práxis escandalosa, não facilmente aceita, principalmente no tocante a Sua opção pelos últimos. Nesse sentido, a pregação de Jesus foi uma inversão de valores. Rompeu com os esquemas estabelecidos. Assim, a condenação de Jesus é uma rejeição a sua pessoa e a tudo o que Ele faz durante sua vida.

 

 

 

O relato de hoje nos deixa diante de duas perguntas: 1) Com quais personagens me identifico? 2) Como tenho vivido minha existência cristã e meu discipulado? A chave e o modo para viver o discipulado é a forma da Paixão. Não existe discipulado que não seja perpassado pela Cruz. Mas Ela não será a última palavra.

 

Pe. João Paulo Sillio.

 

Santuário São Judas Tadeu (Avaré-SP) / Arquidiocese de Botucatu - SP


quinta-feira, 17 de abril de 2025

TRÍDUO PASCAL – QUINTA-FEIRA SANTA DA CEIA DO SENHOR: Jo 13,1-15.

 


A Quinta-feira Santa nos faz cruzar o limiar (das celebrações) do Mistério Pascal de Cristo. Gosto de pensar naquela pergunta que o filho mais novo faz para seu pai, ao iniciar a ceia pascal judaica: “Por que esta noite é diferente das outras noites?” E o pai, com toda a delicadeza de uma pedagogia tanto ritual como existencial se coloca a narrar a libertação do povo de Israel, operada por Deus: “Porque nesta noite fomos arrancados da casa da escravidão no Egito, e agora somos livres”. Esta noite começa a ser para nós, povo da Nova Aliança, uma noite diferente, que culminará na grande e solene noite da Vigília Pascal. Nesta noite recebemos a oportunidade de termos nossos pés lavados a fim de podermos tomar parte / comungar do mesmo gesto de Jesus.

 

Somos convidados a meditar nos gestos de Jesus na ceia com os seus, o que ele realizará na oferta da própria vida na Cruz. A última ceia carrega consigo, portanto, profecia e testemunho. Profecia, porque ela se torna antecipação da entrega de Jesus mediante o gesto de lavar os pés dos seus; e testemunho, porque convida, interpela e questiona a conduta e a atitude do discípulo de todos os tempos, provocando-o a “seguir o exemplo” do mestre e Senhor, num fazer memória de Seu gesto, que institui o sacramento do amor serviçal (Ministério Ordenado), e do sacramento de seu Mistério Pascal, presente entre nós (Eucaristia). O “fazei isto em memória de mim” (1Cor 11,24), alcança sua plenitude histórico-salvífica quando estreitamente vinculado ao “dei-vos o exemplo para que façais como eu fiz” (Jo 13,15). Isto posto, podemos meditar o texto desta noite santa retirado do Quarto Evangelho, Jo 13,1-15.

 

O leitor-discípulo é convidado, agora, neste capítulo 13, a tomar parte do Ensinamento Final de Jesus; chamado a entrar na dinâmica da sua Glória, através dos sinais realizados por Ele na primeira parte do evangelho Joanino, os quais preparam para esta Hora, a revelação da Glória de Deus em Jesus. Estes últimos ensinamentos constituem, ao interno do Quarto Evangelho, o bloco literário que contém o chamado Testamento Senhor (Jo 13 – 17). Um testamento é aquilo de muito precioso que é deixado ou dado para quem se ama.

 

O autor do Quarto Evangelho situa a narrativa no tempo: “Era antes da festa da pascoa” (v.1). Diferentemente da tradição sinótica (Mc, Mt e Lc), o evangelista situa a ceia de Jesus na véspera da solenidade pascal. De modo que a ceia pascal seja celebrada no dia seguinte (coincidentemente no Sábado, aquele ano). Por que? O evangelista não pretende negar o contexto pascal no qual Jesus ceou com seus discípulos, mas diferenciar para mostrar a superação dela: a páscoa do Senhor já não é mais a mesma do templo. Celebrando antes, Jesus a substitui e a supera. A dele não exige ofertas e sacrifícios, não é instrumento de exploração como se praticava no templo. Naquela, o centro das atenções é a morte, o sangue derramado com a imolação dos cordeiros. Na do Cristo com sua comunidade se celebra o triunfo da vida na forma do amor, a mais eficaz manifestação visível do serviço; nessa, não há morte, há doação de vida por amor. Com essa introdução, o evangelista alerta para uma novidade: Jesus inaugura uma páscoa subversiva; é essa que a comunidade cristã deve celebrar.

 

O v.1 anuncia a chegada da hora, que vinha sendo preparada desde os primeiros sinais realizados por Jesus, e, que, agora, começa a ser levada a termo. É a hora de glorificar ao Pai, não com ritos, mas com a doação livre da sua própria vida. Esta forma solene com a qual João inicia o versículo primeiro, aponta para a finalidade da missão do Senhor: manifestar o amor do Pai até o fim para os seus, que estavam no mundo. A expressão “Amou-os até o fim” pretende indicar a plenitude e a intensidade do gesto de Jesus.

 

O evangelista coloca o seu leitor diante de personagens que servirão de espelhos para a comunidade. Primeiro, focaliza-se internamente a personagem de Judas Iscariotes, ao informar que “o Diabo (o divisor; o opositor)” o havia seduzido para que entregasse Jesus (cf. Jo13,2). João, ao focalizar a consciência diabólica (cindida / dividida) de Judas realiza um contraste com a consciência livre e orientada para o projeto de Deus que Jesus possui: a de que o Pai, “tudo” (semitismo para Todos) havia colocado nas mãos de Jesus (lit. “o Pai colocou Tudo e Todos nas mãos do Filho”) (v.3), e de que a partir daquele momento começava seu retorno para Deus, afim de prestar contas de sua missão, enquanto Seu enviado.

 

Com tal consciência, Jesus levanta-se da mesa. Depõe seu manto. Um gesto simbólico: ao depor o manto está, na verdade, despojando-se da imagem de mestre e de sua dignidade enquanto pessoa. Estava sentado, ocupando a posição privilegiada de mestre que ensina. Cinge-se com uma toalha à cintura. Era muito comum, antes de se executar alguma tarefa, amarrar a veste na altura da cintura e dos rins, para que ela não atrapalhasse o serviço. Portanto, cingir os rins significa a atitude de estar de prontidão para o serviço. Em seguida derrama água na bacia e começa a lavar os pés dos discípulos (v.4-5). Compreendamos o peso e a dramaticidade do gesto realizado por Jesus. Tal era realizado por um escravo; quando não, pelos filhos ou pela esposa, e, numa demonstração de profunda estima, pelo próprio anfitrião. Todavia, continuava sendo um gesto de muita humilhação. Certos rabinos até orientavam escravos judeus a não realizarem este gesto para com seus patrões. Para Jesus, os distintivos de sua comunidade e de seus discípulos são o amor e o serviço! Esta é a sua real e mais essencial identidade. Estes símbolos servem para explicar o gesto de Jesus: uma transfiguração às avessas! Jesus depõe a sua imagem de Senhor, e assume a forma de servo (Fl 2,7). Ele não veste os paramentos sagrados dos sumos sacerdotes, mas os do serviço; não as alfaias da casta sacerdotal, mas o avental dos servos.

 

Agora, desloquemos o olhar para outro personagem que o evangelista faz aparecer na narrativa: Pedro. Consciente da conotação humilhante daquele gesto, ele protesta: “Senhor, tu me lavas os pés?”(v.6). Para o discípulo pescador de Betsaida e para os demais, tal gesto é incompreensível. E, de fato, o é para aqueles que ainda não conheceram em profundidade o mistério do Filho de Deus. Por isso, Jesus afirma, que, por hora, eles não sabem o significado daquele gesto (isto só acontecerá à luz do enaltecimento na cruz e mediante o dom do Espírito de Jesus Ressuscitado). Para aqueles que pensam em termos de hierarquia, o mundo vira de pernas para o ar quando o superior se torna inferior! “Tu não me lavarás os pés, nunca!” (v.8), declara o discípulo. O que o discípulo não quer aceitar e, demora a assimilar, é que a originalidade do gesto de Jesus reside na inversão dos valores; de que o mestre se faça servo; que o senhor se torne escravo. Não aceita para não se comprometer. Porque, uma vez que se deixa lavar os pés deverá fazer o mesmo.

 

Mas Jesus retruca, dizendo “que não terá parte com ele, caso não deixe lavar os pés” (v.8b). Em termos joaninos, “não ter parte” com o Senhor significa não participar da plenitude e inteireza de sua vida, que atingirá a qualidade de uma vida eterna. Ter parte com Jesus, significaria, por outro lado, ter em si a vida de Jesus, e torná-la existencialmente vivida de novo, através da vida do discípulo e da comunidade. Não é possível comungar da vida do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço radical.

Se Pedro (e qualquer outro discípulo) não aceitar o gesto de Jesus, não participará do efeito da obra messiânica de Jesus. A profundidade de seu gesto reside no fato de que ele é símbolo e profecia da entrega / doação da própria vida. O gesto de lavar os pés acena para o que Ele realizará mais adiante: sua vida consumada na cruz.

 

O Jesus joanino, depois da incompreensão demonstrada por Pedro, volta à mesa, retoma sua condição de mestre e explica-lhes, então, o gesto. De fato, os discípulos reconhecem-no como Mestre e Senhor. Mas se Ele, nesta condição lhes lava os pés, devem também eles fazer a mesma coisa: lavar os pés uns dos outros, tornando-se servidores uns dos outros pelo amor fraterno. Não há como sentar-se à mesa (tomar parte da ceia do Senhor, comungando de sua vida, corpo e sangue) sem que se tenha lavado os pés dos irmãos. Não há Eucaristia sem lava-pés!

 

O texto suscita algumas perguntas para nós mediante este Sagrado Tríduo: 1) Com qual das personagens me identifico: Judas, que não mais se identifica com Senhor, a ponto de tornar-se adversário do projeto de Jesus e de seu Pai, ou com Pedro, que reluta ainda em assimilar a forma servidora de Jesus? 2) Tenho me deixado lavar os pés por Jesus (e com isso aceitado o Seu Dom-Salvação), para poder lavar os pés dos irmãos (através do serviço do amor/doação fraterno)? 3) Tenho crescido na consciência de que ao comungar da Vida do Senhor (através de seu Corpo e Sangue), devo igualmente comungar (assimilar e realizar) no lava-pés do Senhor? Não há Eucaristia sem lava-pés!

 

Pe. João Paulo Sillio.

 

Santuário São Judas Tadeu  / Arquidiocese de Botucatu – SP.


sábado, 5 de abril de 2025

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DA QUARESMA – Jo 8, 1-11:


 

O evangelho proposto para o quinto domingo da quaresma é retirado do Quarto Evangelho, Jo 8,1-11, conhecido como episódio da “mulher adúltera”.O texto é rico de significado. Ele é uma página de misericórdia. E, pode-se dizer, uma cena de ressurreição. Por isso, a liturgia quaresmal se detém sobre ele neste último domingo. Por se tratar de uma intensa catequese, a liturgia deseja oferecer uma plena preparação para as celebrações do Mistério Pascal do Senhor. Na semana passada, fora proposta a parábola do Pai misericordioso como exemplo a ser imitado pelo discípulo. A dinâmica interna do texto convidava o leitor-ouvinte da Palavra a permitir ser abraçado por um Pai rico em misericórdia e assimilar esta mesma pedagogia em seu agir e em suas relações. Neste domingo, a liturgia convida os fiéis a uma experiência de ressurreição a partir do texto a ser meditado.

Uma primeira constatação importante: o texto em questão foi, até o século IV, recusado pelas comunidades cristãs. Motivo: a temática do perdão para um pecado que era considerado gravíssimo tanto na tradição judaica, como para a tradição cristã, o adultério. O episódio narra Jesus perdoando uma mulher em flagrante adultério. Nos primeiros séculos da tradição cristã, existiam três gravíssimos que exigiam a confissão e a prática da penitência pública: homicídio, adultério e apostasia. O segundo era, tanto quanto os outros dois, repudiado ao interno das comunidades cristãs pois representava um atentado grave ao corpo eclesial de Cristo, do qual a mulher era imagem/símbolo. Aqui, a tradição cristã mantém continuidade com a sua matriz judaica, que considerava o adultério um atentado e uma ruptura da Aliança. Devido a uma rígida disciplina penitencial em voga na Igreja primitiva, os onze primeiros versículos deste texto foram alvos de recusa. Imagine se um texto em que aparece uma ação “progressista” de Jesus em relação ao pecado do adultério pudesse ser bem recebida? Evidentemente que não. E, muito provavelmente, em decorrência da institucionalização do cristianismo, com suas lideranças masculinas, reproduzindo o ambiente machista e patriarcal da sociedade naquele contexto.  Quando os escritos já se encontravam consolidados, era prática comum que as comunidades fizessem um intercâmbio entre si dos textos, para um enriquecimento continuo da fé. A narrativa da mulher adúltera foi um destes texto que circulou avulsamente pelas comunidades cristãs até o século III.

Seguramente, o episódio pertence à Lucas e não à João. Pois o terceiro evangelista narra a ação misericordiosa de Jesus diante de uma mulher, ou seja, dois temas pertencentes à catequese lucana: a misericórdia e a presença e atuação das mulheres; bem como o vocabulário próprio que o texto de Lucas possui. Ora, o tema da misericórdia já foi ilustrado de modo realista através da parábola do Pai misericordioso (Lc 15). Mas onde, precisamente, este texto se encaixa ao interno do evangelho segundo Lucas? Muito seguramente no capítulo vinte e um, após Lc 21,37-38, onde se diz que, “Durante o dia ele ensinava no templo, mas à noite saía e pernoitava no chamado monte das Oliveiras. De manhã cedo, todo o povo ia até ele, no templo, para ouvi-lo”.

Uma segunda e importante constatação a nível de contexto é em relação à protagonista, a mulher adúltera. Ela foi identificada equivocadamente com Maria de Magdala (Madalena), fato que não tem fundamento algum. A personagem feminina deve ser mantida anônima. As personagens que não recebem nome nas narrativas funcionam como um expediente do autor. Estas se tornam um convite ao leitor-ouvinte a identificar-se com ela.

Os dois primeiros versículos nos situam na cena: “Jesus foi para o monte das Oliveiras. De madrugada, voltou de novo ao Templo. Todo o povo se reuniu em volta dele. Sentando-se, começou a ensiná-los” (v.1-2). De acordo com a cronologia joanina, Jesus se encontra em Jerusalém em virtude da festa das tendas. Uma festa importante para a fé judaica. Ela era alimentada com a expectativa da revelação do Messias. Daí o motivo do Senhor estar no monte das oliveiras. O local era usado pelos peregrinos que não encontravam hospedagem na cidade. A indicação “de madrugada” não é um dado apenas cronológico. Antes, teológico. Ela indica a transição da noite para o dia; a noite no Quarto Evangelho representa as trevas que envolvem o mudo e o discípulo. O dia, simboliza a luz. A madrugada significa a ruptura com as trevas, o surgimento de um novo dia; é um aceno à ressurreição, pois é o momento em que as mulheres descobrirão o sepulcro vazio de Jesus (cf. Lc 24,1). O texto quer acenar para alguma situação de ressurreição que acontecerá no decorrer da narrativa.

Jesus, durante seu ensinamento é bruscamente interrompido pelos escribas e fariseus, que trazem uma mulher, pega em flagrante adultério (cf. v.3). Este grupo era opositor a Jesus. Tratava-se da elite e liderança religiosa do judaísmo. Os peritos na lei (escribas) e os mestres da época (fariseus). Eles entabulam um diálogo com o Senhor: “Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Moisés, na Lei, mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu?”  (vv. 4-5). São irônicos; chamam-no de Mestre, mas sem, de fato, reconhece-lo. E, pretendendo dele uma solução para um caso da lei, tentam enredá-lo numa armadilha. O autor do texto usa o termo peirâzo (gr. πειράζω), que significa tentação, provação. E essa atitude está sempre ligada ao inimigo e opositor de Deus. Nesse sentido, as autoridades religiosas estão agindo como colaboradoras do tentador. Agem diabolicamente para tirar de Jesus alguma resposta que o possa desmoralizar e desacreditar. Dependendo da resposta, Ele poderia perder toda a sua credibilidade como pregador e homem da misericórdia de Deus; se ele der uma resposta que contrarie a lei, poderia correr o risco de imediatamente ser preso, pois estava dentro do templo e não poderia ali ensinar doutrinas contrárias.

Aqui, se faz necessária uma terceira constatação. E essa, ajudará a compreender na totalidade e profundidade o gesto e o ensinamento de Jesus. A dinâmica do casamento e o adultério no costume da época. O casamento judaico acontecia em duas partes. A primeira, a promessa. Durante essa etapa – que durava um ano – o rapaz, com dezoito anos, desposava a menina (isso mesmo, menina) de doze anos, ficando ela prometida em casamento. E durante um ano preparavam-se para a segunda parte do casamento, as núpcias, quando a família da noiva (com treze anos) a levava para a casa do noivo. Em caso de adultério, o Talmude (livro que contém as interpretações da lei de Moisés) orientava dois procedimentos: 1º) se ocorrido na primeira etapa do casamento, a promissão, o adúltero e adúltera deveriam ser levados diante do tribunal (cf. Dt 22,23-24), com mais duas testemunhas, e serem ambos sentenciados à lapidação, que se realizava da seguinte forma: colocava-se a pessoa deitada num buraco escavado com dois metros de profundidade; em seguida, as duas testemunhas tomariam uma pedra de mais ou menos cinquenta quilos e deixavam cair sobre a pessoa fosso a dentro. Caso ela ainda sobrevivesse, então a plateia lançava sua pedra sobre dentro daquele buraco. 2º) Se o adultério acontecesse após a segunda etapa, a das núpcias, a mulher seria estrangulada.

Por que sublinhar isso? Justamente para quebrar aquela imagem, muitas vezes romantizada pelas tradições populares, de que esta mulher fosse mais velha. Não. Os lideres do povo falam de apedrejamento. E, tal execução, em caso de adultério, só era previsto para a primeira fase. Logo, a personagem é apenas uma menina; uma jovem entre seus doze ou treze anos. E a dúvida que não quer calar: onde está o homem que adulterou com ela? Que, no mínimo, deve tê-la forçado? O fato de somente a mulher ser acusada e exposta revela o machismo enraizado na sociedade e na religião da época. O homem, provavelmente considerado um “bom religioso”, não é mencionado.

Qual a atitude de Jesus, sabedor de tudo isso, frente aos chefes religiosos do povo? Com uma refinada ironia, Jesus se inclina e simula escrever no chão do templo. Em primeira análise está indiferente a eles. Mas, na verdade, ele está discernindo que resposta dar. O gesto de escrever no chão remete ao profeta Jeremias, capítulo dezessete, no qual o profeta diz que os pecados de Judá estão gravados na pedra e nas tábuas, porque se esqueceram do Senhor. Jesus, com esse gesto profético, denuncia a dureza do coração deles. Ele está a dizer que aqueles homens se tornaram semelhantes às pedras do chão do templo, duras e frias.

“Como persistiam em interrogá-lo, Jesus ergueu-se e disse: ‘Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra” (v. 7). Jesus não toma lado na discussão. Não problematiza a acusação. Ao dizer para atirar a pedra, ele está jogando na cara dos chefes que eles sabem o que deve ser feito; como devem começar o processo. Jesus devolve para eles a responsabilidade quanto a interpretação daquela lei. É como que se ele dissesse, “comecem vocês mesmos o processo da lapidação”. Porém, com uma condição previa e importantíssima, que constitui a reviravolta que o texto dá: a de examinarem-se primeiro: “Quem dentre vós estiver sem pecado...”

Jesus os chama, primeiramente, a um exame de consciência, faz a eles um apelo para a mudança daquela mentalidade, em outras palavras, convite à conversão. Convida a cada um a olhar para si próprio, apelando para o tribunal da consciência. Com essa resposta, o Cristo desarticula os acusadores da mulher, os falsos moralistas daquele e de todos os tempos. E, acima de tudo, salva uma vida.

Dos vv.8-9, o autor mostra a atitude dos escribas e fariseus. Desconcertados e, com certeza, furiosos, deixam o recinto e a mulher no meio da multidão com Jesus, começando pelos mais velhos. No local, o Senhor e a jovem ficam sozinhos. E, com um tom solene, Ele se levanta e começa o diálogo com ela, tratando-a com significativo respeito: “Mulher” (v.10). Na sociedade daquele tempo isso é um tratamento de honra para com a mulher. Ao passo que as autoridades do povo se dirigiram a ela diante dele com total desprezo (Pegamos essa mulher). Ao contrário, o Senhor devolve-lhe a dignidade; refaz-lhe a vida, ressuscita a sua dignidade e sua feminilidade. Pela primeira vez ela tem voz, e responde que ninguém a havia condenado.

Então, o relato é coroado pela fala de Jesus: “Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante não peques mais” (v.11). Como entender este dito de Jesus? Não se trata de uma advertência. Mas de um incentivo diante da vida recuperada e nova que essa jovem readquire a partir da misericórdia que o Senhor exerce para com ela. Diante da vida devolvida e recuperada, Ele a encoraja a viver.

O texto de hoje, apresenta questões importantes para a nossa vida cotidiana e de fé. Nos coloquemos na cena, imaginemos ser aquelas pessoas que se encontram ao redor de Jesus e presenciam o desenrolar da cena e nos questionemos. Em que Deus nós cremos, no deus legalista, punitivo, vingativo, violento, cobrador? Ou num Deus que, de fato, é amor, misericórdia, doador de vida? A qual imagem de Deus nos apegamos e transmitimos, a dos escribas e fariseus, ou a de Jesus?

A forma e o modo como cremos e nos relacionamos com Deus determinam nossa forma e modo de relação com o irmão. Com Jesus, devemos estar dispostos a recuperar a vida dos irmãos e encoraja-los a viver esta vida ressuscitada; ao invés de lançar a pedra para derrubar, estender a mão para levantar e ressuscitar.


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP