sábado, 7 de junho de 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE PENTECOSTES – At 2,1-11:

 


A Igreja celebra a conclusão do tempo pascal, o grande dia solene que o Senhor fez para o gênero humano e para toda a criação mediante a Páscoa de seu Cristo. O Pentecoste marca a plenitude do mistério pascal de Jesus, sua paixão, morte, ressurreição (ascensão). A nova criação (ou recriação) operada pelo Pai na páscoa do Filho atinge sua plenitude com a manifestação e doação do Espírito à toda a criação e a cada pessoa de modo que possam viver da mesma vida e dinamismo de amor de Deus.

A liturgia ilumina este dia solene com a riqueza e profundidade da Palavra de Deus. Como já estamos habituados com a leitura do evangelho de João (20,19-23), o qual, a seu modo, narra com sobriedade e imediatez a doação do Espírito pelo Ressuscitado à sua comunidade, nesta ocasião fazemos a opção de meditar At 2,1-11, o pentecostes lucano, com suas particularidades e simbolismos. Por isso, se faz necessário esclarecer uma notável diferença entre os dois relatos: a distância cronológica do evento.

O Quarto Evangelista, a partir de seu esquema teológico e catequético da superação das instituições do sistema levítico-cultual do judaísmo da época deseja ensinar à sua comunidade que todas as expectativas ou sistemas antigos foram superados pela obra de Jesus. Por isso, o dom do Espírito acontece no mesmo dia pascal. O Evangelista Lucas, por sua vez, motivado por uma teologia da história, que visa coincidir os eventos da história da salvação com a história humana, e seguindo, a seu modo, um estilo de narrar próprios aos autores antigos, prefere uma certa linearidade dos fatos no intuito de também gerar, através do fato narrado, uma superação. O terceiro evangelista faz coincidir o Pentecoste de Jesus – o Dom do Espírito – com o pentecoste judaico para transmitir uma mensagem profunda que veremos a seguir.

O texto começa situando o leitor/ouvinte do texto: “Quando chegou o dia de Pentecostes, os discípulos estavam todos reunidos no mesmo lugar” (v.1). Este primeiro versículo pode ser traduzido também da seguinte maneira: “Quando se completou o dia de Pentecostes”. O evangelista utiliza o verbo symplerousthai (gr. συμπληροῦσθαι) que comunica a ideia de plenitude/conclusão/completude. Deriva do verbo “pleroô” (gr. πληρόω), que é comumente utilizado por ele para dizer que um tempo ou ciclo chegou ao fim e o início de um novo. Lucas deseja assinalar que o pentecostes da antiga lei chegou ao fim, e o Pentecoste do novo povo de Deus tem agora o seu lugar.

O que era o pentecostes do Antigo Testamento? Era uma festa agrícola, dedicada à colheita e oferecimento destes primeiros dons da terra e dos animais à YHWH. Após a libertação de povo de Deus do Egito, ela adquiriu tons pascais. Exatamente cinquenta dias após a páscoa, o povo que caminhava no deserto chega ao Sinai e recebe de Deus, por intermédio de Moisés, as Palavras da Aliança, o decálogo. Portanto, o pentecostes judaico estava relacionado ao dom da Lei de Deus ao povo, através das tábuas de pedra.

Lucas, ao narrar o dom do Espírito feito pelo Senhor, o faz coincidir com os cinquenta dias após a páscoa dos judeus justamente para afirmar a superação e a novidade que acontece através deste evento. Trata-se de um novo, definitivo e pleno Pentecostes: o Espírito do Pai e de Jesus, o Espírito Santo, derramado nos corações humanos e em toda a criação. Ou seja, o dom de Pentecostes não é mais uma lei gravada em pedras. Mas, a partir do dom da vida do Filho, Deus escreve (inscreve) dentro do discípulo o Seu Espírito. O seu dinamismo vital. Seu projeto de amor e de vida. No dom da vida e da existência de Jesus, o Pai inscreve esta mesma vida plena na vida de seus filhos e filhas, seus discípulos e discípulas a fim de que possam viver desta novidade de vida num tempo que é e precisa ser novo.

Sinais deste tempo novo são os que Lucas descreve nos próximos versículos. Ele continua a narrativa servindo-se dos símbolos do patrimônio das escrituras de Israel ao narrar as manifestações divinas (teofanias). “De repente, veio do céu um barulho como se fosse uma forte ventania, que encheu a casa onde eles se encontravam. Então apareceram línguas como de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles” (v.3-4). O vento (a tempestade) e o fogo são elementos puramente simbólicos que já apareceram no primeiro Pentecostes, em Ex 19,26 e em Dt 4,36. O fogo não se relaciona com a destruição. Antes, com a purificação. Com um refazimento ou restauração. Ou seja, o fogo que simboliza a Força divina que vêm do Espirito de Deus é sinal da nova criação inaugurada em Cristo.

As línguas de fogo se repartem sobre os discípulos. Imagem bela e interessante. Ou seja, o Espírito não é um dom exclusivo para poucos, mas é doado a todos os que abraçam o projeto de Jesus. Aqui se evidencia um pouco mais do mistério da vida do Senhor a ser continuada pela comunidade dos discípulos: assim como sua vida e existência foi uma intensa e contínua doação e partilha de si, seu Espírito também, para continuar esta forma de vida e missão nos discípulos e na comunidade doa-se e é partilhado a todos. O Espírito não se divide para gerar divisão, mas para gerar amor, unidade, comunhão e vida. A ninguém é dado posse do Espírito, mas a graça de ser possuído, inhabitado, por Ele, a fim de se viver a mesma vida do Filho.

Lucas mostra o efeito desta experiência com o Espírito: “Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito os inspirava” (v.4). A língua de que fala o evangelista é muito conhecida pelo discípulo de Jesus: a própria vida do Senhor. Muito se tentou explicar este versículo de At 2,1-11pendendo para hipóteses um pouco forçadas. Uns apelavam para o fenômeno da glossolalia, muito comum nas comunidades entusiásticas do tempo de Paulo, e com as quais o Apóstolo das nações se confrontou, determinado que só se utilizasse este “dom carismático” se, e somente se, na comunidade houvesse algum interprete. Não é o caso. Também houve a tendência de interpretar este versículo a partira da tese da xenoglossia, a capacidade de falar línguas estrangeiras. A língua que os discípulos falavam a partir da experiência com o Espírito Santo consistia num idioma fundamental: a práxis do amor oblativo e incondicional do Senhor, da fraternidade, do serviço mutuo e solidário, da unidade, da comunhão e da paz. As pessoas que tomavam contato com Evangelho pregado pela comunidade dos discípulos viam e presenciavam este estilo de vida.

O v.11 conclui a narrativa com esta constatação: “todos nós os escutamos anunciarem as maravilhas de Deus na nossa própria língua!”. Lucas não economiza ao recorrer ao patrimônio das escrituras para falar do alcance deste novo tempo inaugurado por Jesus através da comunicação de Seu Espírito. Este, é um tempo e uma vida destinados para todos, após fazer o elenco das nações existentes naqueles idos dos anos 80 d.C, até mencionar Roma, a última fronteira que o Evangelho de Cristo deveria chegar e cruzar. O evangelista o faz para trazer uma vez mais um tema muito querido por ele, a universalidade da Salvação inaugurada e proposta por Jesus, o qual foi trabalhando ao longo de sua primeira obra, o evangelho. Este é o tempo novo que a comunidade dos discípulos deve anunciar e viver diante de todos; é a forma da vida de Filho que cada pessoa, marcada com o selo do Espírito, e por Ele inundado, precisa testemunhar. Quando isso acontece, todos e toda a criação podem escutar a Boa Nova de Deus que é a realização de Suas maravilhas, seu amor fiel e sua vida, na língua de cada um.

O dom do Espírito, neste novo Pentecostes, realiza o oposto de Babel em Gn 11,1-9. Lá, a humanidade foi dispersada e dividida depois da tentativa de construir um imperialismo religioso-político (a torre para se chegar até Deus); agora, é reunida pela força do Espírito que unifica os diferentes grupos humanos ou qualquer diferença, respeitando e promovendo as características culturais, das quais a língua é expressão. Nem a força ou a repressão, nem a planificação econômica ou política podem assegurar a unidade dos povos ou dos grupos humanos, mas sim o poder interior do Espírito de Jesus Ressuscitado, que promove com a liberdade e o amor novas relações e cria espaços alternativos de comunicação.

Temos vivido uma existência segundo o Espírito de Jesus? Quais novas línguas o Espírito nos inspira a falar hoje? A vida e obra do Senhor tem sido o nosso idioma? Nossas comunidades tem falado a linguagem do Espírito de Cristo, amor, fraternidade, serviço, unidade, comunhão e vida para todos?

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 31 de maio de 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR – Lc 24,46-53:

 


O tempo pascal encaminha-se para sua conclusão. A liturgia da Igreja celebra neste domingo a solenidade da Ascensão do Senhor, na qual a comunidade professa a plenitude da ressurreição do Senhor. Jesus Ressuscitado, ao retornar para o âmbito de Deus leva consigo a natureza humana. Ele não volta sozinho para o Pai, mas leva a nossa humanidade e a (re)orienta para o seu fim último e definitivo: a vida de Deus.

A liturgia nos propõe o texto de Lc 24,46-53. Estamos no último capítulo do evangelho segundo Lucas, que iniciou com o relato do anúncio da ressurreição às mulheres, seguido da manifestação do Senhor ressuscitado aos discípulos na estrada de Emaús (Lc 24,12); continuando, depois, a manifestação à Simão e à toda a comunidade (Lc 24,34ss), até chegar à conclusão narrativa que temos diante de nossos olhos para a meditação.

No v.46, o evangelista nos informa que Jesus explicou o sentido das escrituras aos discípulos, após comer com eles, recordando que o Messias/Cristo deveria sofrer e ressuscitar ao terceiro dia. Esta recordação/memória que o Ressuscitado realiza junto com os seus corrobora a fala do mensageiro celestial às mulheres logo na introdução do capítulo. Elas deveriam, juntamente com o grupo dos discípulos, recordar o que o Mestre havia dito acerca da plenitude de sua missão. Para se fazer a experiência com o vivente, a comunidade deve fazer a memória atualizadora de Sua vida e missão, atualizando Sua presença, assimilando na vida cotidiana a exemplaridade da vida Dele. Ainda que elas passem pela morte. O discípulo não pode ter medo de se deparar com esse fato. É necessário e, igualmente importante, que eles acolham o evento pascal – sua paixão e morte – como a realização e cumprimento das escrituras, para que possam proclama-lo como Messias.

Nos vv. 47-48, o Jesus de Lucas toca no tema da missão. A missão da comunidade consiste em oferecer e testemunhar a reconciliação realizada por Jesus a todos os povos. O evangelista trabalha aqui com um tema que lhe é muito caro, a universalidade da salvação: é um dom para todos, indistintamente. Ninguém pode ficar excluído dela. A missão consiste em testemunhar a misericórdia de Deus através do dom da vida de Jesus.

O v.47 apresenta uma sentença que precisa ser compreendida. O texto litúrgico diz que no nome do Messias seriam anunciados a conversão e o perdão dos pecados. Mas o original grego apresenta outra forma: “em seu nome será anunciado a conversão para o perdão dos pecados”. Para se receber o perdão dos pecados se faz necessário viver a experiência e o dinamismo da conversão, que a mudança da direção errada, do caminho contrário ao querer de Deus, mudança em relação às escolhas equivocadas, mudando a mentalidade. Ora, a vida e o evangelho de Jesus anunciados, quando acolhidos na vida e no coração têm o poder de transformar a pessoa, promovendo a conversão, a qual gerará o perdão dos pecados. O pecado não é uma sujeira ou uma mancha a ser limpa ou apagada, mas uma conduta de vida distante do projeto de Deus e de Jesus, é o afastamento e a ruptura da relação com o Pai. Esta é, portanto, a missão que o discípulo deverá viver e testemunhar: anunciar com a vida e com as palavras o evangelho de Jesus que gera conversão para que cada pessoa possa fazer experiência de vida plena com Deus, de modo a eliminar o pecado de sua vida.

Para que os discípulos e a comunidade vivam profundamente a existência de Jesus, devem ser revestidos da “força do Alto”: o Espírito Santo. O evangelista usa do termo grego dynamis / δύναμις. A força do Alto é o dinamismo de vida do próprio Deus e de Jesus que anima e move a vida dos discípulos e da comunidade para viver a vida e a missão de Cristo.

A vida de Jesus foi toda pautada e conduzida pelo Espírito de Deus. No Evangelho de Lucas, tudo o que Ele realiza e vive, o faz segundo o Espírito. No relato do Batismo, é o Espírito que o investe para missão. No deserto, é o Ele quem o conduz. Na Sinagoga de Nazaré, declara-se ungido pelo Espírito. É por este momento que os discípulos deverão esperar, pela vinda desta força do Alto.

A seguir, o evangelista descreve a cena da ascensão. Jesus conduz os discípulos para outro lugar, “levou-os para fora” da cidade, próximo à Betânia. Dois detalhes devem chamar nossa atenção. Lucas emprega um termo exsâgo (ἐξάγω) que alude ao tema do Êxodo. No relato da transfiguração (Lc 9), as duas personagens Moisés e Elias conversam com o Senhor acerca do êxodo que ele realizaria mediante o dom de Sua vida, de sua Páscoa. Agora, o evangelista mostra para a sua comunidade a realização deste caminho.

Outro detalhe é a localização, o Senhor os leva para perto de Betânia. Seguir na direção deste povoado significa tomar o caminho contrário à Jerusalém: o caminho da entrada triunfante de Jesus na cidade santa, na ocasião da Páscoa. Se, de Betânia Jesus marcha para sua paixão e morte de cruz, seu êxodo de morte e vida, agora, na direção contrária de Jerusalém ele marcha definitivamente para junto do Pai. Ao mesmo tempo, o evangelista pretende denunciar a resistência de Jerusalém, enquanto sede do sistema religioso da época, em relação à missão do Senhor. A cidade santa não corresponde mais ao projeto de Deus. Os discípulos precisam sair dela para serem formados e fortalecidos pelo sentido da vida de Jesus para retornarem a fim de evangeliza-la e renovar lhes as estruturas.

Em Betânia Jesus sempre foi muito bem acolhido pela família dos amigos Lázaro, Maria e Marta. Sempre desfrutou ali da hospitalidade, da amizade, da fraternidade. A casa desta família de Betânia é o símbolo da Comunidade Cristã que deve ser espaço de fraternidade e de vida. Será a partir do âmbito da vida comunitária que os discípulos serão chamados a reconstruir também as realidades que os rodeiam. A partir da fraternidade, do amor mutuo, da misericórdia e da compaixão, do serviço ao próximo.

Lucas, pele primeira vez mostra Jesus abençoando os seus. As mãos, na antropologia bíblica estão sempre relacionadas às ações (ao agir). O Senhor ao abençoar os discípulos está comunicando a eles toda a plenitude de seu agir. Como Ele agiu, gerando vida, revelando a face amorosa e misericordiosa de Deus, também eles e a Igreja deverão fazer o mesmo. A benção bíblica é, primeiramente, o ato de bendizer à Deus recordando seus feitos, aquilo que realizou em favor dos seus, para tornarem-se lugar da Sua presença. Ela assume uma dinâmica performativa, ou seja, realiza aquilo que diz, transmitindo uma força eficaz e irrevogável. Ela comunica a essência daquele que abençoa àqueles que são abençoados. Assim, os discípulos, que são abençoados, difundirão a plenitude da vida do Senhor Ressuscitado e do Pai e, através dela, farão novos discípulos.

Depois de abençoar os discípulos, Jesus foi elevado aos Céus. É necessário compreender a cosmologia da época, isto é, a concepção de universo, espaço e tempo do povo da bíblia. O céu é o lugar da habitação de Deus. É âmbito divino e expressa a condição divina. Aplicando essa imagem a Jesus, o evangelista pretende ensinar que Ele cumpriu plenamente a missão de revelar a face misericordiosa do Pai. Por ter sido fiel a ela, isso foi levado em conta por Deus, que o enalteceu ao entronizá-lo a sua direita. Ação de elevar o Filho é realizada pelo Pai (“foi levado para os céus” encontra-se na voz passiva, que indica que a ação em relação ao Filho foi realizada por Deus-Pai), assim como a ressurreição.

A elevação/ascensão de Jesus não é outra coisa que o retorno ao âmbito do divino. Aquele homem que havia sido condenado como blasfemo e morto pelas lideranças religiosas e políticas, agora está à Direita de Deus. Porque Ele mesmo assim o quis. É uma maneira que o evangelista encontra para dizer que o Crucificado pertence a esfera da divindade.

“Eles o adoraram. Em seguida voltaram para Jerusalém, com grande alegria. E estavam sempre no Templo, bendizendo a Deus” (vv.52-53). Adorar é a atitude típica do reconhecimento da soberania de Jesus. Os Seus discípulos sabem que Ele é realmente o salvador, e, por isso, da mesma forma que no início do Evangelho lucano os pastores se alegraram com o anúncio do nascimento do Messias (cf. Lc 2,10), os discípulos expressam uma “grande alegria”. A alegria é uma característica essencial do discipulado, na perspectiva de Lucas. Ela já foi antecipada no início da catequese também por Maria (cf. 1,47) e pelos anjos (cf. 2,8-20). E agora toca aos discípulos comunica-la ao mundo.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP


sábado, 24 de maio de 2025

REFLEXÃO PARA O VI DOMINGO DO TEMPO PASCAL – Jo 14,23-29:

 


Adentramos no sexto domingo do tempo pascal, seguindo com a leitura do testamento de Jesus no Quarto Evangelho, o qual constitui o Seu grande ensinamento sobre o mandamento (dinamismo) do amor, e sobre a entrega da própria vida através do gesto do Lava-pés. A liturgia propõe para a nossa meditação o texto de Jo 14,23-29. 

Antes de tomarmos o texto de hoje, se faz necessário recordar que nos versículos anteriores, Jesus prometeu o Espírito Santo aos discípulos. É o dinamismo de vida do Pai e do Filho, que, doado por ambos comunica vida, filiação e amor. É aquele que garante a continuidade da vida e da presença do Cristo para a comunidade, através da vivência do mandamento do Amor. Isso posto, podemos entrar no horizonte do texto.

Jesus continua seu discurso, dizendo: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada. Quem não me ama, não guarda a minha palavra. E a palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou”(vv.23-24). Jesus afirma a importância do amor e de guardá-lo como mandamento/Palavra. O amor é a plena adesão e identificação a Ele. Durante toda a sua vida pública, ministério e Obra, Ele tratou de revelar com gestos, atitudes e palavras a forma deste Amor: é uma conduta de vida, um estilo! É a capacidade de colocar a vida em relação ao outro na dinâmica do oferecimento de si, portanto, um Amor oblativo, que se doa sem esperar nada em troca. É um Amor gerador de vida.

Amar a Jesus é colocar a própria vida em sintonia com a Sua vida. E o critério para saber se o discípulo O ama é o fato de saber se a Sua Palavra é, de fato, guardada, ou seja, vivida. O verbo guardar (hbr. Shama) não significa reter para si, mas observar, no sentido de cumprir/viver. Só o amor pode motivar a adesão à Palavra/mandamento de Jesus. Só o amor tem a capacidade de tornar o discípulo em morada de Jesus e do Pai. Na medida em que este revive e reproduz em sua vida o mesmo sentido de vida do Senhor e guarda a Sua Palavra, se torna lugar através do qual Deus pode habitar e agir.

Jesus, até o momento, já havia entregado boa parte de seu testamento: o gesto profético do Lava-pés, que ilustra a forma radical de seu amor, e o mandamento novo do amor. Agora, para confirmar os discípulos nesta forma de vida, fala uma vez mais daquele que guardará a comunidade e os discípulos nesta missão: “o defensor, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele ensinará tudo e vos recordará tudo o que vos tenho dito” (v.25). Na teologia do Quarto Evangelho, o Espírito é o defensor; tem a função de ensinar e recordar. O termo que João emprega é παράκλητος/paraklétos (gr. Pará = junto de, ao lado de / kalein (kaleo) =  chamar), que significa “estar junto de”, ou “ser chamado para ficar ao lado”. Ao lado do discípulo e da comunidade, enquanto presença ativa e viva do próprio Senhor.

Outras duas funções são apresentadas por Jesus: ensinar e recordar. Ambas as funções querem dizer a mesma coisa: atualizar. Ora, o verbo “recordar”, na fé e tradição do Antigo Testamento remente à atitude da memória bíblica, isto é, tornar presente no hoje o ensinamento, a missão e a vida mesma de Jesus. O ensinar/recordar são duas atitudes imprescindíveis para a vida da comunidade. São as atitudes daqueles e daquelas que vivem a novidade do convite à vida ressuscitada de Jesus, e dela dão testemunho. O Espírito Santo é aquele que inscreve (escreve a partir de dentro) a vida mesma de Jesus em nós. Ele é a letra de Cristo que escreve no livro da vida humana a vida de Jesus.

“Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; mas não a dou como o mundo. Não se perturbe o vosso coração” (v. 27). Jesus fala da paz, outro dom em promessa que anuncia em seu testamento. É preciso entender que paz é esta. É aquela que, no Antigo Testamento está associada à posse da terra prometida. Mas ela é dom e garantia do tempo do Messias. Significa que a espera acabou e que a promessa foi cumprida.

Todavia, no Novo Testamento, a paz não se dá em virtude da conquista de um lugar geográfico, como a posse da terra da promessa, no AT. Ela se dá através da relação com Jesus. Nesse sentido, Ele é a promessa cumprida. Assim, para os discípulos, a Paz é um modo de ser e de existir. É ela qualidade de vida. Por isso, a paz que Jesus dá é Ele mesmo.

Qual a finalidade de Jo 14, 23-29 para a comunidade dos discípulos, para a geração posterior e para nós, hoje? Fundindo os horizontes da comunidade dos discípulos (tempo narrado, os anos trinta) e o da comunidade joanina (a geração posterior dos fieis, na qual inclui-se todo o fiel-discípulo e leitor do Evangelho, pelos idos dos anos noventa), a intenção do texto atinge seu ápice quando a comunidade cristã lê, assimila e adere ao testamento/ensinamento de Jesus como sendo seu modo de vida, pautando o seu agir e sua identidade no modo de vida Dele. Assim, o discurso de despedida que o Senhor deixa aos seus serve para que eles, e a geração seguinte, possam balizar seu ser, viver e agir na Sua ausência. Nesta perspectiva, a comunidade teria as ferramentas (os meios) para viver constantemente o convite e a realidade de uma vida ressuscitada garantida pelo dom do amor do Senhor e por seu Espírito, isto é, viver segundo o Filho de Deus, gerando Paz e vida.


Pe. Joao Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 17 de maio de 2025

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DO TEMPO PASCAL – Jo 13,31-35:

 


O evangelho deste Quinto Domingo do tempo pascal retoma a narrativa da ceia de despedida de Jesus, no Quarto Evangelho (Jo 13,1-38). Estamos ao interno do chamado Livro da Glória. O texto de Jo 13,31-35 situa-se após o gesto profético do lava-pés. Mas, no contexto da catequese joanina, este discurso encontra-se no bloco denominado testamento de Jesus (Jo 13 – 17), sendo quatro capítulos narrados ao redor da ceia. Esta, é o lugar da partilha e da comunhão de vida entre o anfitrião e os hospedes. Por isso, o testamento que Jesus deixa aos seus se dá ao interno desta ceia.

O testamento que Jesus entrega aos seus é a exemplaridade de Sua vida. O seu conteúdo é a revelação de Deus através da Sua vida, mediante a sua entrega, e o mandamento do Amor. É sobre ele que a comunidade de João e as gerações futuras deverão se debruçar. Por isso, a nível de catequese litúrgica, a Igreja oferece este texto para a meditação, a fim de que as comunidades de todos os tempos, tendo feita a experiência com Jesus ressuscitado, possam pautar a vida nos ensinamentos e no modo de vida do Senhor. Somente vivendo a partir do modo de vida de Jesus a comunidade continuará a experiência da ressurreição e prolongará sempre na história, a vida do Mestre.

No v.31 temos uma informação importante: a saída de Judas. Ele se decidiu por romper com Jesus, com seu projeto e com o grupo dos Doze. Optou em não aceitar a dinâmica do lavar os pés. Escolheu as trevas. Por isso, João ambienta o testamento e os acontecimentos finais da vida de Jesus no período noturno. Somente após a saída deste discípulo é que o mestre entrega o seu testamento aos demais. Só pode receber e assumir o testamento do Senhor aquele que estabeleceu uma comunhão com o Seu modo de vida.

O v.32 toca precisamente no tema da Glória (da glorificação) de Jesus. O tema da Glória no Quarto Evangelho é importante e perpassa a obra joanina do começo ao fim. Glória, aqui, não significa brilho/esplendor. O evangelista serve-se do pano de fundo do Antigo Testamento, trabalhando com o termo hebraico Kabod, o qual se traduz por Glória, mas no sentido de “presença/peso/substância”. Assim, a Glória de Deus outra coisa não é que a sua presença na história.

Na teologia do evangelho de João, a vida de Jesus torna-se o lugar no qual se dá a presença de Deus. Com efeito, a Glorificação do Filho do Homem, da qual está falando o mestre é o ato de manifestar a presença de Deus através do dom da sua própria vida, como veio fazendo, mas de modo mais denso e pleno na Cruz. Por isso, é na Cruz que Deus revela todo o seu poder, sua presença e seu Ser no Crucificado.

O evangelista, no texto grego serve-se da voz passiva, a qual indica Deus como o agente  realizador da ação (“passivo teológico ou divino”). O termo “glorificar” pode ser entendido, ainda, no sentido de “manifestação da glória”, revelação da presença divina: “Foi glorificado o filho do Homem, e Deus foi glorificado nele”. Ora, a glória de Jesus, enquanto Filho consiste em realizar o querer e a obra do Pai. A glória do Pai, por sua vez, é ver o Filho amando até o fim, isto é, plenamente. E sendo-lhe fiel. Mas só poderá tomar parte da glorificação de Deus em Jesus os que são tidos como “filhinhos”, ou seja, aqueles que aderiram e aderem ao projeto e à vida de Jesus: os iniciados na Fé.

“Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (v.34). Existem dois adjetivos que correspondem a “novo”: o primeiro deles, “néos” (gr. νέος) significa algo novo mas que se acrescenta ao que já existe; o segundo, kainós (gr. καινός) significa algo que substitui o que é velho, superando-o e fazendo-o desaparecer. É esse segundo termo que João se serve aqui. Portanto, o mandamento novo dado pelo Senhor é um acréscimo à antiga Lei, mas a sua completa superação, no sentido de leva-la à plenitude.

Jesus ao comunicar um “mandamento novo”, está a dizer para seus discípulos (e à nós) que sua vida e o modo do Seu amor superam (plenificam, conferem plenitude e cumprimento/realização) a Instrução/caminho, a Torá de Deus. O amor tem a capacidade de superar uma Lei; de aperfeiçoar um “caminho” (Torá/instrução). Quer dizer que, vivendo esse mandamento, a comunidade não necessita de nenhum outro. É esse o modelo de amor que ela deve assimilar e reproduzir.

Jesus não dá como testamento para sua comunidade um conjunto de normas ou ritos somente. Sim, é verdade que no "tomar e comer, e no tomar e beber", Ele nos dá a ordem de iteração "fazei isto em memória de mim", para que se celebre e se atualize sempre a sua vida através dos dons sacramentais. Mas a liturgia e o rito só adquirem a real eficácia quando verificados através do modo de vida de Jesus.

A vivência deste Amor de Jesus torna-se o critério para reconhecer as comunidades e os discípulos de Jesus, “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (v. 35). Assim, se faz necessário questionar-nos um pouco: 1) Será que poderemos nos reconhecer entre os filhinhos ou estamos ainda na dinâmica existencial de Judas, que rompeu com a comunhão e com projeto de vida e amor de Jesus? 2) Poderemos ser distinguidos e identificados através do Amor de Jesus que deve permear e performar a nossa vida? 3) Nossas comunidades se alimentam e se balizam pelo mesmo amor de Jesus, sendo sinais e testemunhas deste Amor?


Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 10 de maio de 2025

REFLEXÃO PARA O IV DOMINGO DA PÁSCOA – Jo 10,27-30:

 


O texto que a liturgia do quarto domingo da páscoa nos propõe encontra-se em Jo 10,27-30. O capítulo décimo do Quarto Evangelho apresenta a temática do pastoreio, com destaque para a alegoria do Pastor Exemplar, ou “Belo Pastor”, dos vv.11-18. Qual o sentido deste texto dentro desta escola pascal pela qual atravessamos? Orientar a Igreja para três atitudes fundamentais para que se possa fazer a experiência com a vida plena que o Ressuscitado oferece: escutar, conhecer e seguir.  

A imagem do pastor/pastoreio e do rebanho nutria a fé e o imaginário religioso do povo de Deus, bem como alimentava as expectativas acerca da manifestação do Messias. Primeiramente, o rebanho/ovelha é um símbolo aplicado ao povo. Já a imagem do pastor era atribuída ao próprio Deus. Mas, no decorrer do tempo foi sendo aplicada às lideranças, os reis e sacerdotes, a alcunha de pastores (guias). A história mostrou que esta função não foi desempenhada “segundo o coração de Deus (cf. Ez 34)” pelas mesmas lideranças.

O contexto imediato do texto é o da festa da Dedicação. O evangelista situa Jesus nos arredores do templo por ocasião da festa da dedicação. Ela foi estabelecida por Judas Macabeu em 165 a.C., para celebrar a vitória sobre a dominação grega e a nova dedicação do templo e do altar, profanado pelos selêucidas (cf. 1 Mc 4,36-59). A festa acontecia em Jerusalém e durava oito dias. Ela encontra seu substrato bíblico no texto profético de Ezequiel, no qual o profeta faz uma enfática denúncia aos maus pastores de Israel, que apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (cf. Ez 34,1-2). Por isso, de acordo com o profeta, Deus toma a iniciativa de destituir os maus pastores e cuidar ele mesmo do rebanho (cf. Ez 34,11).

No nível do contexto próximo (lugar literário onde o texto se encontra situado) é que também se deve lançar o olhar, a fim de compreender o discurso de Jesus. Por isso, devemos voltar para o capítulo nono, o sinal realizado por Ele na cura do cego de nascença. Este consiste na Sua revelação enquanto enviado (hbr. siloé) para trazer a Luz ao mundo. O cego de nascença é, ao mesmo tempo, instrumento através do qual o Senhor revela a Glória de Deus, e metáfora para as lideranças do povo, as quais estavam cegas, optando conscientemente em não querer ver a Luz de Deus que se manifestava em Jesus de Nazaré. Isso é atestado pela mesma postura destas lideranças judaicas. Elas, que deveriam cuidar, acolher, promover a vida e a dignidade, acabavam expulsando do meio deles a gente simples, aqueles que representavam-lhes alguma ameaça, ou, porque, simplesmente viviam fora de seus padrões. Sabendo disso, Jesus vai ao encontro do ex-cego (Jo 9,35-37). Neste sentido, na alegoria do Bom Pastor, no capítulo seguinte, o evangelista opera um contraste entre as lideranças judaicas, que agiam na contramão do projeto de Deus, e Jesus, que age segundo o coração (de pastor) do Pai, mostrando-se exemplar, realizando aquilo que as lideranças do povo deveriam fazer, e não faziam.

Agora, entrando no horizonte do texto. Nos versículos 24-26, ocorre um embate entre os chefes do povo (os judeus) e Jesus. Eles O interpelam no templo acerca de sua identidade: “Até quando nos deixarás em suspense? Se tu és o Cristo, dize-nos abertamente” (v.24). A resposta do Senhor, infelizmente omitida na liturgia, é que dará início ao texto dominical: “Eu já vos disse, mas vós não credes. As obras que eu faço em nome do meu Pai, dão testemunho de mim. Vós, porém, não credes, porque não sois das minhas ovelhas” (25-26).

No v. 27, Jesus declara: “As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem”. Ele indica aqui a condição para ser “ovelha” (discípulo) de Jesus: ouvir e segui-lo. Ao dizer as condições necessárias para ser discípulo e, portanto, participar do redil, Jesus denuncia que os líderes do povo não fazem parte de seu rebanho, porque não aceitam nem querem escutar, tampouco segui-lo.

Escutar e seguir são dois verbos importantes para a compreensão da mensagem de Jesus. O verbo “escutar”, no ambiente bíblico, não significa simplesmente a capacidade ou faculdade biológico-física da percepção de um som ou ruído, mas é acima de tudo dar adesão completa àquele que fala, deixar-se transformar e, consequentemente, conduzir-se pelas suas palavras. A atitude da escuta orienta para outra ação do discípulo, o seguimento. O seguimento a Jesus, como consequência da escuta, significa seguir os mesmos caminhos dele, com liberdade e disposição.

No v.28, Jesus garante que as suas ovelhas recebem o supremo dom que Ele pode doar, a “vida eterna”, a garantia de que elas jamais se perderão e que ninguém poderá tirá-las de suas mãos. O que seria esta vida eterna da qual fala Jesus? A vida que pertence ao âmbito de Deus. Não é a continuação desta mesma vida, mas um dom superior em qualidade e em dinamicidade que está em Deus mesmo. Todavia, ela não é um prêmio dado àquelas pessoas boas no futuro. A opção por Jesus e ao seu Evangelho simbolizada pela escuta da sua voz e o seguimento à sua pessoa, eterniza a vida. Não é uma vida pós-morte, mas é uma vida tão plena, tão cheia de sentido e autêntica, que se torna indestrutível. Logo, vida eterna é a vida de todo homem e toda mulher que escuta a voz de Jesus e abraça o seu seguimento, a sua vida, o seu projeto. Tem-se, em Jesus, e, a partir dele, a oportunidade de se viver uma vida em tons de eternidade, e, portanto, ressuscitada, desde já!

“Meu Pai, que me deu estas ovelhas, é maior que todos, e ninguém pode arrebatá-las da mão do Pai. Eu e o Pai somos um” (29-30). Nestes dois versículos Jesus declara que o que vale em relação ao Pai vale também em relação a si, ou seja, os dois constituem uma única realidade. Por isso, ninguém consegue arrancar as ovelhas da mão de Jesus (cf. v 28b) pois tudo o que está em suas mãos, está, igualmente, nas mãos do Pai. A mão, conforme a antropologia bíblica, é metáfora do poder e do agir protetor de Deus, de Sua força e dos Seus cuidados enquanto pai e mãe.

Por isso, o evangelho de hoje nos questiona: 1) Somos verdadeiras ovelhas de Jesus? 2) Temos ouvido (aderido) à voz (evangelho e vida) de Jesus e, portanto, seguido a exemplaridade da vida do Pastor Ideal?


Pe. João Paulo Sillio.

Pároco de São Judas Tadeu, Avaré /Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 3 de maio de 2025

REFLEXÃO PARA O III DOMINGO DA PÁSCOA – Jo 21,1-19 (1-15):



O terceiro domingo da Páscoa apresenta para a meditação o capítulo 21 do Quarto Evangelho, onde se narra o terceiro encontro de Jesus Ressuscitado com a comunidade que, processualmente, se coloca a fazer a experiência da Ressurreição e com o Vivente, o Senhor vencedor da morte. A liturgia traz para a celebração os dezenove versículos deste capítulo. Mas a reflexão se delimitará até o v.15. Não se fará a reflexão da reabilitação do discípulo Pedro (16-19) para não prolongar o texto e a explicação. Outra oportunidade haverá.

A terceira experiência com o Ressuscitado é narrada em contexto e lugar diverso daqueles apresentados no capítulo vinte pelo evangelista. O Senhor vai encontro dos seus no primeiro dia da semana, quando a comunidade estava fechada no medo. Oito dias depois, se coloca em meio aos discípulos, mas, agora, com a comunidade completa. O discípulo Tomé está ali. E ambos, comunidade e discípulo fazem a experiência com o Jesus, o Vivente, naquela experiência comunitária, religiosa, porque o primeiro dia da semana, o Domingo, é o dia em que as comunidades dos discípulos se reúnem para celebrar a memória, a missão e a vida do Senhor. Ora, os dois primeiros encontros com Ele se dão na realidade e no âmbito do sagrado. Mas, esta experiência com o Ressuscitado pode ser feita em outra realidade? Pode, deve e é feita!

O evangelista ambienta a experiência pascal dos discípulos com Jesus fora do âmbito da comunidade. Apresenta o cenário: “a beira do mar de Tiberíades” (v.1). Importante recolher as duas informações. O mar: símbolo de todas as forças contrárias ao projeto de Deus; lugar da realidade deformada pelo pecado e local de experiência de morte. É neste contexto que Jesus pediu que os discípulos lançassem as redes (Lc 5,1ss), e se tornassem pescadores de homens. Em Jo 6, o autor narra a caminhada do Senhor sobre o mar. O mar é símbolo da hostilidade e da impossibilidade de vida, mas é onde a missão da comunidade dos discípulos acontece. A cidade de Tiberíades foi construída por Herodes em homenagem a Tibério, imperador de Roma e “amigo” dos judeus. O local de sua construção é muito controverso: foi edificada sobre um antigo cemitério. Por isso, muitos rabinos do tempo de Jesus se recusavam a ir até ali, aconselhando o mesmo aos seus discípulos. Ora, o catequista ambienta o terceiro encontro com o Ressuscitado numa realidade profana, isto é, longe da esfera e do ambiente do sagrado. No âmbito da cotidianidade. Onde a vida também acontece. Precisamente na realidade do trabalho dos discípulos.

No v.2, o evangelista apresenta o grupo: Simão Pedro, Tomé, Natanael, Tiago e João (filhos de Zebedeu), e outros dois discípulos. Sete pessoas. Não é irrelevante. Há um significado simbólico que ajuda a captar a mensagem. É a imagem da comunidade cristã. Estão em sete e não em doze. O número 12 representa Israel. Mas o número 7 ou 70 indicam a universalidade das nações. A comunidade do Ressuscitado não se limita a um povo, mas é aberta a todos os povos, línguas e nações. O projeto de vida e amor anunciado por Jesus precisa ser levado a diante para todos e acolher a todos. Mas é importante lançar olhar para a composição desta comunidade. Pedro, o discípulo que mais apresenta dificuldade em relação ao seguimento e ao projeto do Mestre. Recusa, resistência e mentalidade equivocada em relação ao messianismo de Jesus, viciado pela lógica do poder e da grandeza. Tomé, o discípulo ativo, destemido, exigente, pede provas, mas que, num determinado momento de sua experiência com o Senhor, se afasta da comunidade. Natanael, homem autêntico e verdadeiro. É aquele que é sincero em relação à Jesus; não tem medo de se posicionar. Ao mesmo tempo é quem abraça com entusiasmo vontade e força o ensinamento do Senhor. É um discípulo com quem se pode fazer experiência de autenticidade. Os irmãos Zebedeu, Tiago e João, são os discípulos intolerantes e fanáticos; que tem sérias dificuldades em aceitar o diferente. São fundamentalistas e quase terroristas. Diante da recusa dos samaritanos esbravejam e pedem a Jesus que faça descer fogo dos céus para destruí-los. Evidentemente são repreendidos por Ele. E dois discípulos anônimos. São como espelhos. Conseguiu se identificar com algum deles?

Não há problema caso não tenha se encontrado neles. Pois se não conseguiu se identificar com nenhum dos cinco mencionados, pode ser que consiga com os dois anônimos. Um destes é o discípulo amado. O sétimo, pode ser você e eu.

No v. 3, Simão Pedro toma a iniciativa de ir pescar. Os outros aderem e vão. Embarcam na barca. Era noite. Evidentemente que João não está contando uma crônica, mas transmitindo uma mensagem de fé. A barca representa a comunidade cristã. A pesca simboliza a missão da comunidade. Pescar homens, ou seja, retirar da realidade da morte manifestada pelo mar, as pessoas. E a comunidade vai para pesca. A noite simboliza acena para a realidade das trevas, oposição e ausência da luz. Para o Quarto Evangelho, Jesus é a luz para o mundo. Ou seja, o autor pretende mostrar que a pesca (a missão) é feita sem Jesus. Quando ele não está presente, não há resultado. É a metáfora da vida e da missão dos discípulos e das discípulas que se esquecem do projeto e da pessoa e Jesus. Pensam que sozinhos darão conta. Pensam que seus projetos pessoais valem e salvam mais que o Senhor. Mas que não tem sucesso depois. Estão pescando errado. Lançam a rede na direção errada. Sem o Cristo perdem a direção e o rumo certo. Trata-se de uma advertência do evangelista para sua comunidade.

João apresenta a reviravolta da experiência. “Já tinha amanhecido e Jesus estava de pé na margem da”. Em contraste, os discípulos estão no mar. É interessante como o Senhor é apresentado, “em pé”, na margem. O Cristo é pé é a imagem utilizada pelo evangelista para se referir a condição ressuscitada de Jesus. É o Vivente. Sua vida é dotada de qualidade e plenitude. Nada a limita mais. Nem o fracasso dos discípulos que nada conseguiram na missão. O evangelista enfatiza que estava na margem, ou seja, na terra firme. Desejando comunicar a firmeza de sua vida a eles. Um diálogo acontece; o Ressuscitado pergunta se eles conseguiram algo para comer e estes devolvem em negativa. Então, a ação transformadora da cena: “Lançai a rede a direita da barca e achareis”. Lançaram e não conseguiam puxa-la. A rede estava cheia de grandes peixes.

Lançar a direita é o oposto de lançar a esquerda. A pesca não acontece se lançar as redes no lado errado. Não se consegue realizar pesca dos homens se só se vê ou valoriza o lado errado das pessoas. Isso significa lançar a rede no lado errado. Quando os discípulos escutam a voz do Senhor que está presente, e lançam para o lado certo, ou seja, olham para o lado positivo e para as qualidades dos outros conseguem tira-los das águas da morte. A pesca acontece e é abundante. A missão tem êxito. A experiência com o Ressuscitado tem condições de acontecer na dificuldade da vida, no lado errado da existência. Ali ele encontra o discípulo e a comunidade. E ali a comunidade também pode encontra-lo e reconhece-lo.

O discípulo amado reconhece Jesus: “É o Senhor!” (v.7). Este discípulo é aquele que desde o seu chamado, juntamente com André (Jo 1,18ss), abraça o caminho e a proposta de Jesus. Ele consegue assimilar o sentido da existência e da missão do Senhor. É aberto e disponível. Mais! Ele consegue entender o amor do Mestre, permite-se ser amado e, por isso, se põe a viver como o Ele. Por isso consegue reconhecer Jesus Ressuscitado. Ele faz a memória das palavras e da vida do Senhor, por isso está em condições de reconhece-lo.

Nos v.9-11, os discípulos, ao chegarem em terra viram algo curioso: Jesus lhes tinha preparado a refeição. Brasas acesas e sobre elas, pão e peixes. Mas de onde Ele tirara os peixes? Havia pescado? Sim, toda a Sua vida foi uma incessante pesca. Recorde-se que a pesca é símbolo da missão de tirar as pessoas da situação da morte e leva-las para a vida. O Senhor apresenta também a eles o resultado de sua pesca existencial, por exemplo, Nicodemos (Jo 3), a samaritana recuperada (Jo 4), o paralítico de Betesda (Jo 5), a multidão faminta em (Jo 6), o cego de nascença (Jo 9). Muitos são os peixes que Jesus pescou. Ele está mostrando aos discípulos que esta deve ser a pesca a realizar. Por isso pede a eles que também tragam o fruto de sua missão (v.11). Eram cento e cinquenta e três grandes peixes, ou seja, a humanidade recuperada através da missão da comunidade dos discípulos que é levada até Jesus.

“Jesus aproximou-se, tomou o pão e distribuiu-o por eles. E fez a mesma coisa com o peixe” (v.13).O evangelista narra um momento intenso entre Jesus ressuscitado e os discípulos. Uma refeição. A refeição era o momento e o lugar privilegiado da partilha e da comunhão de vida, do amor e do servir os irmãos, como nos faz recordar a ceia com os discípulos (cf. Jo 13). O pão preparado é Ele mesmo. João ressalta para a comunidade, através deste gesto de Jesus, a realidade da Eucaristia. No gesto singelo e profundo de uma refeição eles fazem a experiência com o ressuscitado.

A finalidade deste relato atinge sua intencionalidade, que é a de reconhecer o Senhor nas atividades concretas e cotidianas simbolizadas pela pesca (missão), e através da Eucaristia, partindo o pão (símbolo da Sua vida doada em amor). Jesus interage conosco nestes momentos da nossa vida. Ali a vida acontece. No cotidiano  reconhecer a Graça de Deus que transforma a mesmice em tempo de Salvação. Na realidade mais dura e difícil, na simplicidade de um trabalho até corriqueiro e rotineiro ver os sinais e a oportunidade de se fazer experiência com o Ressuscitado, a fim de retomar a missão e a vida, a fim de gerar vida para a humanidade.

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 26 de abril de 2025

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 20,19-31:

 


A liturgia deste segundo domingo de páscoa apresenta a leitura e meditação do belíssimo texto de Jo 20,19-31, onde se narra o encontro de Jesus Ressuscitado com a comunidade dos discípulos. Durante esta oitava pascal – um grande domingo vivido na semana – a Igreja teve a oportunidade de vivenciar uma série de encontros com o Senhor, após a experiência do sepulcro vazio. Esta narrativa que meditaremos a seguir é a imediata continuação do encontro de Madalena com o Cristo no jardim da sepultura (Jo 20,11-18). Trata-se de uma verdadeira página de catequese que deseja recuperar e transmitir uma força de ânimo para as comunidades e para os discípulos de todos os tempos e lugares. Na verdade, este trecho evangélico trata de mostrar a ressurreição da comunidade e do discípulo. Com efeito, o texto transmite o sentido pleno da ressurreição de Jesus: ela é a nova criação realizada por Deus para se gerar ressurreição nas pessoas.

Uma importante constatação: os relatos pascais, ou seja, que contém e transmitem a experiência com Jesus Ressuscitado são textos que narram o Encontro vivenciado entre a comunidade e Ele. Não são narrativas de aparições de um fantasma ou de uma alma desencarnada. Nada disso!

Há diferença entre aparição e encontro? Sim. Os textos evangélicos pós-pascais desejam afirmar que a iniciativa do encontro é do próprio Jesus. Sabendo das dificuldades que ela possui na assimilação do acontecido com Sua vida, Ele mesmo vai ao encontro dela. Esta, por sua vez, faz a experiência com o Senhor atualizando a memória e o sentido de Sua vida. Através desta dinâmica relacional, se pode fazer experiência com o Ressuscitado e com a ressurreição. Para ficar mais claro ainda, estes relatos são de Encontros porque Jesus não é uma alma penada (o que não existe); tampouco uma ideia ou memória psicológica; mas, um vivente. Somente com um vivo se pode experimentar encontros. Feitas estas considerações iniciais e a nível de contexto, se pode mergulhar com profundidade no texto.

O v.19 é denso: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam...” João nos situa no tempo e no espaço. A anotação que oferece, não é sem sentido pois ele deseja mostrar que o espaço e o tempo mudaram. Não é mais o amanhecer, mas o entardecer, o final daquele primeiro dia. A informação soa também como uma advertência: o dia avançou, e, com ele, se faz necessário que as consciências dos discípulos acerca do acontecido com Jesus tenham também avançado, e, portanto, mudado. Mesmo o dia tendo avançado, o cenário tendo mudado, a comunidade encontra-se fechada no medo.

O medo é o contrário da Fé. Ele, se não encarado, pode paralisar a pessoa. João pretende mostrar o estado de ânimo da comunidade frustrada pela morte de seu mestre: bloqueada na experiência do medo. Isso a impede de fazer a memória das palavras do Senhor que se disse vencedor do mundo. Há que se entender que não há mal em ter medo. Ele é um mecanismo natural da condição humana. Não se pode viver a vida de forma banal e destemida. Não é isso que o evangelho orienta e pede. Ao contrário, é necessário saber coexistir com ele, tomar a vida nas mãos e se aventurar a viver. Não cair na tentação de perder a vida por deixar-se bloquear pelo medo. No horizonte da vida daqueles primeiros discípulos, o medo era devido à captura do mestre, que poderia resultar na prisão também deles. Outra face que o medo oferece aos discípulos é aquela de assumir o sentido da vida do Senhor. E, agora, “sozinhos”, ou seja, sem a presença física do Cristo, terem de viver as consequências das escolhas.

“Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: ‘A paz esteja convosco’” (v.19b). A superação do medo se dá com a certeza da presença de Jesus Ressuscitado que lhes comunica uma plenitude da vida. A Paz (hbr. Shalon) que ele oferece aos discípulos tem esse significado de plenitude dos bens divinos; a certeza de que Deus agiu de forma definitiva. E a maneira através da qual ele agiu foi a forma da vida de Seu Filho, que se torna o realizador das promessas de Deus. Não há porque ficar preso no medo quando se tem a certeza que em Jesus Deus já nos deu as condições de viver; é como se ele dissesse “tudo está realizado; eu vos abri o caminho para a vida; tome a vida nas mãos e se coloque a vive-la”.

Um detalhe importante: o evangelista apresenta Jesus em meio aos discípulos. A intenção é a de ensinar que quando o Senhor está em meio, a comunidade e o discípulo podem fazer experiência com Sua vida plena. O centro da vida de ambos deve ser o Cristo. Quando ele está no meio não existe maior ou menor. Todos são iguais; todos estão referidos à uma única direção: o Vivente. Em Jesus, Deus não está acima ou distante de todos, mas próximo.

“Depois destas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (v.20). Esta informação é profunda e carregada de significado. Primeiro: o evangelista quer mostrar para a sua comunidade que o Ressuscitado traz consigo as marcas da sua paixão e morte, isto é, o Crucificado é o Ressuscitado. Não é um fantasma. Não é alguém diferente. Segundo: o sentido que o Senhor deu à Sua existência, pois na antropologia bíblica as mãos são símbolos do agir. Mostra-las aos discípulos significa fazê-los compreender qual foi o caminho pelo qual decidiu pautar a sua missão. Eles precisam fazer memória de quando e para quem Jesus utilizou as mãos; a quem elas tocaram, a quem reergueram e ajudaram, a quem e para onde apontaram caminhos. Tocaram e acolheram os pecadores, os enfermos, os excluídos. Este foi o sentido do agir do Senhor. Com isso, ele está a dizer: “Se olhares as minhas mãos, isto é, fizeres experiência com o sentido da minha vida, de minhas ações, de meus gestos e opções, então fareis experiência de vida; de ressurreição. Compreendereis que esta minha forma de viver corresponde à vida em plenitude, a vida eterna”

Mostrar o lado aberto significa indicar que este agir foi motivado por puro amor, pois o lado alude ao coração e este é imagem do amor existencialmente vivido. Se as mãos e o  lado dos discípulos forem semelhantes às do Senhor, então eles terão capacidade de gerar e promover ressurreição na vida das pessoas.

No v.21, ao conceder a Sua paz, Jesus abre os discípulos para o horizonte da missão: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio". O evangelista deseja ensinar para a sua comunidade que a obra e missão do Senhor tem origem no querer divino do Pai. Há uma comunhão de vida entre eles. Desta comunhão de plenitude de vida, ele deseja tornar participante o discípulo e a comunidade. Enviados pelo Cristo estarão em unidade e em comunhão com o Pai.

Depois de enviar os discípulos, Jesus realiza um gesto muito profundo e carregado de significado, que o evangelista soube recordar e transmitir: “soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (v.22). O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus soprou nas narinas do vivente seu sopro de vida. O verbo soprar (gr. έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. No seu gesto, Jesus recria a comunidade e, através dela, a humanidade inteira, e, por isso, na Sua ressurreição acontece uma nova Criação. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida.

“A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor do Senhor é espalhado pelo mundo. Note-se, que este dinamismo de vida e amor – o Espírito – é dado à toda a comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. O Senhor não está dando um poder exclusivo aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo; transformar as realidades.

A comunidade eclesial tem a missão de eliminar o Pecado da realidade do mundo, porque ele não foi criado em Pecado, muito menos para o pecado. Todas as vezes que o discípulo e a comunidade conseguem retirar o irmão da situação de morte e fazê-lo viver, tirando da vida dele qualquer situação de pecado estará dando espaço para a ressurreição e a vida na existência daquela pessoa.

A comunidade não está completa. Falta um certo Tomé, que, diga-se de passagem, precisa ser compreendido bem. Ele não se encontra ali, naquele ambiente fechado. O que pode acenar para o fato de que ele não compartilha da mesma mentalidade.  Dídimo (gr. διδυμος), cujo significado é gêmeo, era seu nome. Esta personagem, na verdade, é um convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a toma-lo como seu gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e convicto; mas reconhecer também suas dificuldades.

Tomé não estava com eles porque não tinha medo (oposição da Fé), e, por isso, não se deixou paralisar diante da experiência negativa. Portanto, circulava livremente e sem temor algum. Oito dias depois (que continua sendo o primeiro da semana, o dia da Memória do Ressuscitado), Jesus novamente se pões no meio deles, deseja-lhes a Paz; se dirige a Tomé. Convida-o a realizar o gesto que havia pedido como prova. Todavia, ao invés de tocar o Senhor, o discípulo formula uma confissão de fé de valor incomparável: “Meu Senhor e meu Deus!” O título de Senhor (Kyrios) é o que cabe àquele que entrou na glória de Deus. João reserva este título para Jesus ressuscitado. O título “Deus” aplicado a Jesus retoma a dupla menção no Prólogo (Jo 1,1.18), a qual tem a intenção de afirmar a identidade do Mestre.

Aqui, revela-se a intencionalidade do texto. A bem-aventurança proclamada por Jesus: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos: muito questionadores, chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. O evangelista responde a essa realidade: não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar por excelência de manifestação do Ressuscitado.

Quais são os medos que ainda podem nos paralisar e à nossa comunidade? O Cristo tem ocupado o centro de nossas vidas e de nossas comunidades? Nossas comunidades conseguem aponta-lo aos que necessitam desta experiência de vida plena? Quais dimensões em mim precisam ser recriadas pelo Senhor?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

 

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP


sexta-feira, 18 de abril de 2025

TRÍDUO PASCAL – SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO DO SENHOR: Jo 18,1 – 19,42.

 


A narrativa da paixão no evangelho joanino é diferente das contidas nos sinótcos (Mc, Mt e Lc). O evangelista segue um fio narrativo de Mc (o primeiro evangelho escrito), porém distancia-se e muito na forma de narrar e de apresentar a personagem principal da “opera”, por assim dizer. Trata-se de um relato que vai a fundo ao apresentar e revelar a Glória de Deus em Jesus. O catequista bíblico não economiza ao mostrar a realeza de Jesus. Pode-se dizer com toda a segurança que, ao interno da narrativa da paixão em João, e somente nesta seção narrativa, Jesus é mostrado como soberano; é rei. Devido ao fato da extensão do relato joanino da paixão, opto por apresentar esta reflexão a partir das personagens: quem são, o que fazem e quais finalidades possuem ao interno do relato, a fim de transmitir a mensagem salvífica que o texto contém e que o autor quer entregar para a sua comunidade e para as gerações futuras dos discípulos. Contudo, é importante situar o texto ao interno do contexto litúrgico, isto é, na sequência do texto da quinta-feira santa da ceia do Senhor. Ora, somente o discípulo que segue Jesus até à “bacia, o Jarro e à mesa”, poderá tomar parte da hora da glorificação.

 

Chegou a Hora de Jesus. Durante toda a primeira parte do evangelho joanino – o livro dos sinais – os gestos simbólicos operados por ele possuem a finalidade de revela-lo como enviado do Pai, Aquele que realizará sua obra, como também aprontar o discípulo para a Hora da Glória (seu enaltecimento/elevação). Um esclarecimento importante: a Glória da qual fala o evangelista João não pode ser entendida como um brilho ou algo resplandecente. No vocabulário do evangelista, que é todo proveniente da tradição bíblica do Antigo Testamento, a palavra “glória” (hbr. Kabod) é traduzida por “presença”. Logo, ao se falar da “Glória de Deus” (Ez 10; Ez 43,1-27), está se referindo à presença (ao peso) de Deus. A glória, portanto, da qual o Jesus joanino fala é a realidade da presença de Deus mesmo no dom da Sua vida, existência e obra. Quando se revela a Glória de Jesus? Na Hora da Cruz. Ela revela a que a vida de Jesus é o [novo] lugar/santuário da presença de Deus na história. Agora podemos tomar o texto a partir das personagens.

 

No Jardim (Jesus e Judas) – Jo 18,1-12:

 

O evangelista chama a atenção do discípulo-leitor para Jesus. Na teologia do Quarto Evangelho, João o apresenta sempre consciente e onisciente. Na ceia (13,4), o havia relatado ciente de que havia chegado a sua Hora, e de que tudo o Pai havia posto em suas mãos.  Não seria diferente na narrativa da paixão. Ele não é vitimizado pela situação. Não permite que ninguém, exceto o Pai, tenha a Sua vida nas mãos. É um homem senhor-de-si.  Por isso, não é surpreendido por Judas e pelas pessoas que vieram prendê-lo. Note-se que Ele mesmo vai ao encontro do traidor (Jo 18, 4). Típica ironia joanina, o evangelista nos conta que Judas vem equipado com lanternas e tochas, que são iluminações artificiais. Recordemos que na ceia Judas já havia feito sua opção pelas trevas à luz que veio no mundo (3, 19). Ao sair do convívio com Jesus na ceia já era noite fechada (13, 30). O evangelista quer mostrar que este discípulo fez a opção contrária à luz; cindiu com ela. E agora, ele é quem precisa de luz artificial. Esta personagem contrasta com Jesus na medida em decide-se por agir contra o projeto e o querer de Deus que se realiza através do Filho. Judas é o modelo que o verdadeiro discípulo deve rejeitar, ou se distanciar na medida em que vai relacionando-se com Jesus.

 

 

 

Anás, Pedro e o discípulo amado - Jo 18,13-27:

 

O evangelista apresenta três personagens. Anás, sogro de Caifás, o sumo sacerdote em exercício. O segundo personagem é Pedro. Notemos um contraste operado pelo evangelista entre Pedro e Jesus: enquanto este está demonstrando sua inocência naquele interrogatório viciado, seu mais conhecido seguidor está mostrando fraqueza. Pedro, durante a narrativa da ceia se mostra todo resistente. Esta personagem serve ao discípulo que lê o Evangelho de João como símbolo daquele que precisa assimilar verdadeiramente o sentido da vida de Jesus, para poder fazer a sua opção pró-Jesus. Emerge uma outra personagem, presumivelmente “o discípulo que Jesus amava”. Não há fundamento em identificá-lo com João, o autor do Quarto Evangelho (o que seria demasiado simplista). Mas, fato é, ele está à frente de Pedro e contrasta com ele. Ele é sempre mais rápido ao ver, ao compreender e em acreditar, precisamente porque fez a experiência com o amor de Jesus, que é uma marca da verdadeira condição de discípulo

 

 

 

Jesus diante de Pilatos – Jo 18, 28-42:

 

O evangelista apresenta uma personagem confusa. Um camaleão. Um amedrontado Pilatos. Soma-se a isso a alternância dos cenários externos e internos. Nesse vai-e-vem, Pilatos vai mudando e assimilando as imagens de seus ambientes. Ao interno do palácio ocorre a alternância entre luz (externo) e trevas (interno). Na maneira como João dispõe a narrativa, o inquérito acontece ao interno do palácio, para revelar esta oposição típica de seu evangelho: luz / trevas. A intenção (ainda que através de sua ironia) é revelar Jesus, mesmo solitário e recluso no palácio, como Luz diante de Pilatos, envolvido em dúvidas e trevas.

 

O diálogo entre eles revela muito, de acordo com o evangelista. Na intenção dele está para começar o processo de Jesus contra o Mundo, representado pelo Império. João disse no prólogo do evangelho que “O mundo não o conheceu (Jesus), e os seus não O acolheram”. Jesus está diante do procurador romano, que o interroga com base naquilo que ouviu. “Tu és o rei dos judeus?” A resposta de Jesus soa desafiadora: “Estas dizendo isso por ti mesmo, ou outros te disseram isso de mim?” Jesus não responde nem que sim, nem que não. Ele deixa que o próprio Pilatos tome sua decisão e tire suas conclusões. Ao insistir na culpabilidade de Jesus, emerge, pois, uma declaração muito importante acerca de Jesus, de sua vida e obra. Ele responde: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui”. O que o Jesus joanino quer dizer com essa reposta?

 

Se faz necessário tomar o texto dos originais, em grego, para captar o sentido da resposta de Jesus, que se expressa assim: “o meu reino não vem deste mundo ( gr. Ἡ βασιλεία ἡ ἐμὴ οὐκ ἔστιν ἐκ τοῦ κόσμου τούτου / ek tou kosmou tuotou)”. A realeza de Jesus não provém das realidades mundanas, das estruturas de poder, domínio, opressão. Vem do alto. Jesus declara, pois, que sua realeza depende e está estritamente relacionada à Deus. A autoridade que ele exerce, só a faz porque é da vontade do Pai. As palavras “meu reino não é daqui (= deste mundo)”, portanto, não dão margem para sugerir uma fuga do mundo, da realidade, da história humana, nem justificam qualquer tipo de alienação. Pelo contrário, convocam o discípulo a uma lucidez superior. Aderir ao reino de Jesus é aderir à verdade daquele que, em tudo o que faz, é palavra de Deus e que liberta de toda escravidão, e que restaura o mundo, enquanto realidade criada por Deus.

 

Mas neste diálogo emerge mais uma novidade muito profunda e marcante. Pensemos. Pela lógica do inquérito, Pilatos faz as vezes do juiz que interroga, questiona e apura os fatos para dar cabo de uma sentença. Entretanto, a partir das respostas eloquentes que Jesus dá aponta para uma revelação importante: o juiz não é Pilatos. No inquérito, quem assume a figura do juiz é Jesus, deixando para Pilatos o papel de investigado. Mais uma vez, a finalidade é mostrar Jesus superior a realidade e a trama que o circundam, porque só quem autoridade sobre sua vida é o Pai. E mesmo assim, é através de sua liberdade enquanto homem que Jesus vive sua fidelidade ao projeto de vida plena, em amor até o fim, ao Deus que chama de Abá-Pai. Porque este Abá não exige do seu Filho qualquer sacrifício de sangue, ou mesmo uma morte expiatória.

 

 

 

A morte (19,28-37):

 

Após um caminho longo, Jesus chega ao lugar da crucifixão. Depois de tomar o vinho azedo, Jesus exclama: “Tudo está consumado” (mesma expressão do v. 28), inclina a cabeça e “entrega o espírito”. Nestes versículos 28-30 ocorre duas vezes o verbo teléo, “consumar/levar ao fim” (vv. 28 e 30). O dito “Tudo está consumado” acena para a realidade de que toda a vida de Jesus, através de suas obras e Palavra refletem a vontade de Deus. Significa, ainda, que a vida e obra de Jesus atingem a Plenitude. Mas também revela a superação dos sistemas antigos dos sacrifícios levítico-cultuais. João faz coincidir a morte de Jesus no calvário com o exato momento em que se imolavam os cordeiros no templo, por ocasião da festa da pascoa. Jesus supera, com o dom de sua vida em amor, os antigos sacrifícios e se torna, pois, o único mediador entre a humanidade e Deus. Não são mais a observância da Lei, nem das prescrições cultuais os meios necessários para se ter acesso a Deus, mas a humanidade, a vida e a obra de Jesus. Esta vida, Ele a entrega nas mãos do Pai.

 

O “entregar o espírito” (a existência) acena para aquela onisciência e senhorio de Jesus, de que se falou a pouco. O verbo grego paradidomai (entregar/doar) percorre toda a narrativa da paixão, mas aqui ele revela e, ao mesmo tempo, afirma o domínio de Jesus diante da situação: quem entrega sua vida é ele mesmo, sabendo que tem o poder de retomá-la novamente. Ele livremente a doa, para que o Pai reconheça esta mesma vida como salvífica e redentora, dizendo a última palavra sobre a vida deste seu Filho.

 

A morte de Jesus, de maneira tão crua, só pode ser entendida à luz de sua vida vivida, através de seu ministério. Ela é a consequência e o resultado da vida, das opções, decisões, vividas à luz do amor fiel ao Pai e aos irmãos, mesmo em face às hostilidades dos chefes do povo. Isso não é fazer uma leitura política da vida de Jesus. Sua vida era conflituosa pelas questões que provocava e pelos interesses que abalava. Isto vê-se no seu modo de viver, na sua práxis escandalosa, não facilmente aceita, principalmente no tocante a Sua opção pelos últimos. Nesse sentido, a pregação de Jesus foi uma inversão de valores. Rompeu com os esquemas estabelecidos. Assim, a condenação de Jesus é uma rejeição a sua pessoa e a tudo o que Ele faz durante sua vida.

 

 

 

O relato de hoje nos deixa diante de duas perguntas: 1) Com quais personagens me identifico? 2) Como tenho vivido minha existência cristã e meu discipulado? A chave e o modo para viver o discipulado é a forma da Paixão. Não existe discipulado que não seja perpassado pela Cruz. Mas Ela não será a última palavra.

 

Pe. João Paulo Sillio.

 

Santuário São Judas Tadeu (Avaré-SP) / Arquidiocese de Botucatu - SP


quinta-feira, 17 de abril de 2025

TRÍDUO PASCAL – QUINTA-FEIRA SANTA DA CEIA DO SENHOR: Jo 13,1-15.

 


A Quinta-feira Santa nos faz cruzar o limiar (das celebrações) do Mistério Pascal de Cristo. Gosto de pensar naquela pergunta que o filho mais novo faz para seu pai, ao iniciar a ceia pascal judaica: “Por que esta noite é diferente das outras noites?” E o pai, com toda a delicadeza de uma pedagogia tanto ritual como existencial se coloca a narrar a libertação do povo de Israel, operada por Deus: “Porque nesta noite fomos arrancados da casa da escravidão no Egito, e agora somos livres”. Esta noite começa a ser para nós, povo da Nova Aliança, uma noite diferente, que culminará na grande e solene noite da Vigília Pascal. Nesta noite recebemos a oportunidade de termos nossos pés lavados a fim de podermos tomar parte / comungar do mesmo gesto de Jesus.

 

Somos convidados a meditar nos gestos de Jesus na ceia com os seus, o que ele realizará na oferta da própria vida na Cruz. A última ceia carrega consigo, portanto, profecia e testemunho. Profecia, porque ela se torna antecipação da entrega de Jesus mediante o gesto de lavar os pés dos seus; e testemunho, porque convida, interpela e questiona a conduta e a atitude do discípulo de todos os tempos, provocando-o a “seguir o exemplo” do mestre e Senhor, num fazer memória de Seu gesto, que institui o sacramento do amor serviçal (Ministério Ordenado), e do sacramento de seu Mistério Pascal, presente entre nós (Eucaristia). O “fazei isto em memória de mim” (1Cor 11,24), alcança sua plenitude histórico-salvífica quando estreitamente vinculado ao “dei-vos o exemplo para que façais como eu fiz” (Jo 13,15). Isto posto, podemos meditar o texto desta noite santa retirado do Quarto Evangelho, Jo 13,1-15.

 

O leitor-discípulo é convidado, agora, neste capítulo 13, a tomar parte do Ensinamento Final de Jesus; chamado a entrar na dinâmica da sua Glória, através dos sinais realizados por Ele na primeira parte do evangelho Joanino, os quais preparam para esta Hora, a revelação da Glória de Deus em Jesus. Estes últimos ensinamentos constituem, ao interno do Quarto Evangelho, o bloco literário que contém o chamado Testamento Senhor (Jo 13 – 17). Um testamento é aquilo de muito precioso que é deixado ou dado para quem se ama.

 

O autor do Quarto Evangelho situa a narrativa no tempo: “Era antes da festa da pascoa” (v.1). Diferentemente da tradição sinótica (Mc, Mt e Lc), o evangelista situa a ceia de Jesus na véspera da solenidade pascal. De modo que a ceia pascal seja celebrada no dia seguinte (coincidentemente no Sábado, aquele ano). Por que? O evangelista não pretende negar o contexto pascal no qual Jesus ceou com seus discípulos, mas diferenciar para mostrar a superação dela: a páscoa do Senhor já não é mais a mesma do templo. Celebrando antes, Jesus a substitui e a supera. A dele não exige ofertas e sacrifícios, não é instrumento de exploração como se praticava no templo. Naquela, o centro das atenções é a morte, o sangue derramado com a imolação dos cordeiros. Na do Cristo com sua comunidade se celebra o triunfo da vida na forma do amor, a mais eficaz manifestação visível do serviço; nessa, não há morte, há doação de vida por amor. Com essa introdução, o evangelista alerta para uma novidade: Jesus inaugura uma páscoa subversiva; é essa que a comunidade cristã deve celebrar.

 

O v.1 anuncia a chegada da hora, que vinha sendo preparada desde os primeiros sinais realizados por Jesus, e, que, agora, começa a ser levada a termo. É a hora de glorificar ao Pai, não com ritos, mas com a doação livre da sua própria vida. Esta forma solene com a qual João inicia o versículo primeiro, aponta para a finalidade da missão do Senhor: manifestar o amor do Pai até o fim para os seus, que estavam no mundo. A expressão “Amou-os até o fim” pretende indicar a plenitude e a intensidade do gesto de Jesus.

 

O evangelista coloca o seu leitor diante de personagens que servirão de espelhos para a comunidade. Primeiro, focaliza-se internamente a personagem de Judas Iscariotes, ao informar que “o Diabo (o divisor; o opositor)” o havia seduzido para que entregasse Jesus (cf. Jo13,2). João, ao focalizar a consciência diabólica (cindida / dividida) de Judas realiza um contraste com a consciência livre e orientada para o projeto de Deus que Jesus possui: a de que o Pai, “tudo” (semitismo para Todos) havia colocado nas mãos de Jesus (lit. “o Pai colocou Tudo e Todos nas mãos do Filho”) (v.3), e de que a partir daquele momento começava seu retorno para Deus, afim de prestar contas de sua missão, enquanto Seu enviado.

 

Com tal consciência, Jesus levanta-se da mesa. Depõe seu manto. Um gesto simbólico: ao depor o manto está, na verdade, despojando-se da imagem de mestre e de sua dignidade enquanto pessoa. Estava sentado, ocupando a posição privilegiada de mestre que ensina. Cinge-se com uma toalha à cintura. Era muito comum, antes de se executar alguma tarefa, amarrar a veste na altura da cintura e dos rins, para que ela não atrapalhasse o serviço. Portanto, cingir os rins significa a atitude de estar de prontidão para o serviço. Em seguida derrama água na bacia e começa a lavar os pés dos discípulos (v.4-5). Compreendamos o peso e a dramaticidade do gesto realizado por Jesus. Tal era realizado por um escravo; quando não, pelos filhos ou pela esposa, e, numa demonstração de profunda estima, pelo próprio anfitrião. Todavia, continuava sendo um gesto de muita humilhação. Certos rabinos até orientavam escravos judeus a não realizarem este gesto para com seus patrões. Para Jesus, os distintivos de sua comunidade e de seus discípulos são o amor e o serviço! Esta é a sua real e mais essencial identidade. Estes símbolos servem para explicar o gesto de Jesus: uma transfiguração às avessas! Jesus depõe a sua imagem de Senhor, e assume a forma de servo (Fl 2,7). Ele não veste os paramentos sagrados dos sumos sacerdotes, mas os do serviço; não as alfaias da casta sacerdotal, mas o avental dos servos.

 

Agora, desloquemos o olhar para outro personagem que o evangelista faz aparecer na narrativa: Pedro. Consciente da conotação humilhante daquele gesto, ele protesta: “Senhor, tu me lavas os pés?”(v.6). Para o discípulo pescador de Betsaida e para os demais, tal gesto é incompreensível. E, de fato, o é para aqueles que ainda não conheceram em profundidade o mistério do Filho de Deus. Por isso, Jesus afirma, que, por hora, eles não sabem o significado daquele gesto (isto só acontecerá à luz do enaltecimento na cruz e mediante o dom do Espírito de Jesus Ressuscitado). Para aqueles que pensam em termos de hierarquia, o mundo vira de pernas para o ar quando o superior se torna inferior! “Tu não me lavarás os pés, nunca!” (v.8), declara o discípulo. O que o discípulo não quer aceitar e, demora a assimilar, é que a originalidade do gesto de Jesus reside na inversão dos valores; de que o mestre se faça servo; que o senhor se torne escravo. Não aceita para não se comprometer. Porque, uma vez que se deixa lavar os pés deverá fazer o mesmo.

 

Mas Jesus retruca, dizendo “que não terá parte com ele, caso não deixe lavar os pés” (v.8b). Em termos joaninos, “não ter parte” com o Senhor significa não participar da plenitude e inteireza de sua vida, que atingirá a qualidade de uma vida eterna. Ter parte com Jesus, significaria, por outro lado, ter em si a vida de Jesus, e torná-la existencialmente vivida de novo, através da vida do discípulo e da comunidade. Não é possível comungar da vida do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço radical.

Se Pedro (e qualquer outro discípulo) não aceitar o gesto de Jesus, não participará do efeito da obra messiânica de Jesus. A profundidade de seu gesto reside no fato de que ele é símbolo e profecia da entrega / doação da própria vida. O gesto de lavar os pés acena para o que Ele realizará mais adiante: sua vida consumada na cruz.

 

O Jesus joanino, depois da incompreensão demonstrada por Pedro, volta à mesa, retoma sua condição de mestre e explica-lhes, então, o gesto. De fato, os discípulos reconhecem-no como Mestre e Senhor. Mas se Ele, nesta condição lhes lava os pés, devem também eles fazer a mesma coisa: lavar os pés uns dos outros, tornando-se servidores uns dos outros pelo amor fraterno. Não há como sentar-se à mesa (tomar parte da ceia do Senhor, comungando de sua vida, corpo e sangue) sem que se tenha lavado os pés dos irmãos. Não há Eucaristia sem lava-pés!

 

O texto suscita algumas perguntas para nós mediante este Sagrado Tríduo: 1) Com qual das personagens me identifico: Judas, que não mais se identifica com Senhor, a ponto de tornar-se adversário do projeto de Jesus e de seu Pai, ou com Pedro, que reluta ainda em assimilar a forma servidora de Jesus? 2) Tenho me deixado lavar os pés por Jesus (e com isso aceitado o Seu Dom-Salvação), para poder lavar os pés dos irmãos (através do serviço do amor/doação fraterno)? 3) Tenho crescido na consciência de que ao comungar da Vida do Senhor (através de seu Corpo e Sangue), devo igualmente comungar (assimilar e realizar) no lava-pés do Senhor? Não há Eucaristia sem lava-pés!

 

Pe. João Paulo Sillio.

 

Santuário São Judas Tadeu  / Arquidiocese de Botucatu – SP.