quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Os desafios para combater a violência doméstica e garantir a segurança e os direitos das mulheres no Brasil

A violência contra as mulheres é uma realidade assustadora no Brasil. Ainda mais, quando praticada na esfera do lar, um ambiente que deveria ser lugar de acolhimento, proteção, desenvolvimento sadio das humanas potencialidades, mas subvertidos em verdadeiros campos de concentração, que respiram morte e impossibilidade de vida. Ironicamente, um pais altamente religioso é recordista neste quesito, desembocando, via de regra, no feminicídio. A sociedade brasileira, imbuída da cultura machista e misógina é devedora da sociedade patriarcal dos primórdios da humanidade e do tempo colonial, onde a mulher era considerada mercadoria e objeto. Acaba reproduzindo ainda hoje estas mesmas características em todas as suas esferas. Hoje tornou-se comum a veiculação de notícias e manchetes que denunciam a realidade nefasta de mulheres agredidas e violentadas desde o seio da vida familiar. Diante deste cenário surgem os desafios: combater este estigma desumano e garantir segurança e direitos.


A análise da realidade brasileira se faz necessária. Uma pesquisa feita pelo Instituto de pesquisa Datasenado, pertencente ao Senado Federal mostrou que só em 2025 3,7 milhões de mulheres sofreram algum tipo de violência domestica ou familiar. Só no primeiro semestre do corrente ano foram registrados 718 casos de feminicídio, 33.999 casos de estupro, média de 187 por dia. E o alarmante ainda é o fato de que para quase 60% das vítimas a violência ocorreu em menos de seis meses, indicando recorrência no ato. É interessante notar que em 70% dos casos os atos criminosos ocorreram na presença de outras pessoas, as quais foram incapazes de manifestar qualquer resistência ou defesa, revelando um cenário de cumplicidade e de medo estrutural. O perigo deste corporativismo de morte só legitima ainda mais a figura do agressor. Eis um primeiro desafio. A ruptura com esta zona de morte, perigo e medo. O segundo, consiste na situação socioeconômica da vítima, que muitas vezes não tem como se manter longe do amparo financeiro que o companheiro lhe oferece. Criam-se algemas de dependência e a ruptura torna-se quase impossível, o que alimenta ainda mais a influência do violador sobre si. Outro desafio que emerge, e aqui adentrando ainda mais na seara da psicologia, seria a culpabilização da  vítima. É dilacerante se deparar com a situação de uma mulher que internalizou em si a crença de que ela seja a culpada pela agressão recebida. Outro desafio é a "manutenção das aparências", onde a vítima deseja manter a relação para mostrar que está tudo bem e que tudo é perfeito, seja diante dos filhos, dos familiares, dos amigos ou da sociedade. 


Frente ao exposto se faz necessário pensar mecanismos de ação que visam garantir o amparo e a dignidade das mulheres. Marco fundamental foi a criação e promulgação da lei Maria da Penha (Lei 11.340, de 2006), considerada uma referência mundial na legislação que visa proteger a mulher. A lei tipifica diversas formas de violência domestica, a saber: física, psicológica, moral, sexual, patrimonial. Esta instituição visa garantir que mulheres em situação de violência sejam assistida com medidas protetivas, tais como o afastamento do agressor, proibindo aproximação em relação à vítima e aos seus familiares, suspensão do porte de arma (no caso de possuir). A lei, para sustentar-se como marco legal de fundamental importância, ainda prevê penas mais severas, superiores à três anos de detenção, e penas alternativas, como o pagamento de cestas básicas. Outro benefício que este dispositivo apresentou foi a criação de juizados especializados em violência contra a mulher para viabilizar todos os tramites processuais decorrentes dos crime dessa natureza, bem como a determinação da pensão e da guarda dos filhos. Ela prevê a assistência social, encaminhando as mulheres à atendimentos médicos, psicológicos e capacitação para o mercado de trabalho, visando gerar nelas a promoção humana. O amparo existe. Todavia, seguem casos de subnotificação ou falta de informação, ou mesmo a propagação de fakenews que desinformam acerca do tema, e isso necessita ser rigorosamente combatido.


A lei cumpre seu papel. Entretanto, se fazem necessárias novas formas e frentes de trabalho para se assegurar a integridade e a dignidade da mulher, bem como seus direitos diante do cenário da violência domestica. Por exemplo, organizar e fortificar a sua participação na política e nas instâncias de poder e de decisão. Grandes mulheres já se apoderaram destes cenário e, foram neles empoderadas. Digno de nota são Rosa Weber e Carmem Lúcia, ambas ministras do Supremo Tribunal Federal, que nos últimos anos deram voz e vez ao tema da violência contra a mulher. Esta inserção deve ser constante, de modo a favorecer a visibilidade delas. Há que se promover espaços de fala e de debate em todas as esferas da sociedade brasileira. Outra medida importante deve ser a valorização da mulher no mercado de trabalho, a fim de que possam ter salários iguais ou superiores aos homens, de modo a se sustentarem sem qualquer dependência emocional, afetiva ou financeira. Ou seja, o empoderamento sempre constante da mulher. Atrelado a este, deve estar a atitude do acolhimento, da escuta de suas dores e feridas, por meio de um sólido amparo psicológico, ou seja, o cuidado para com a saúde mental. Assim sendo, valorizar sua presença. Como diria a filósofa Simone de Beauvoir, em sua obra "O Segundo Sexo (1949)","No dia em que for possível à mulher amar em sua força, não em sua fraqueza, não para fugir de si mesma, mas para encontrar-se, não para se demitir, mas para se afirmar, nesse dia o amor se tornará para ela fonte de vida e não perigo mortal".  


A guisa de conclusão, o presente texto visou pontuar o tema da violência contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, realizando uma visão de conjunto, servindo-se de uma análise da sociedade brasileira, machista e misógina, mediante a observação de dados estatísticos. Apresentou também os desafios sofridos pelas mulheres neste contexto, bem como os recursos e as ferramentas necessárias para lhes assegurar a dignidade, tais como o marco legal 11.340, de 2006, a lei Maria da Penha, a inserção delas nas instâncias de atuação sócio-políticas que podem contribuir no combate à violência, ao mesmo tempo em que se cuida de sua dignidade e promoção humana.

sábado, 29 de novembro de 2025

REFLEXÃO PARA O I DOMINGO DO ADVENTO – Mt 24,37-44:

 


Um novo ano litúrgico se inicia na vida da Igreja universal com o primeiro domingo do advento. A partir de hoje, a liturgia proporá como alimento os textos do Evangelho segundo Mateus. Este tempo é marcado pelas dinâmicas da espera, da vigilância e pelo constante apelo à conversão. Ele se divide em dois ciclos: de hoje até 17 de dezembro. Os dois primeiros domingos, e, consequentemente, as duas primeiras semanas são marcadas pela temática da segunda vinda do Senhor. Portanto, um advento escatológico.

A escatologia é uma linguagem teológica para se falar da renovação definitiva desta realidade histórica, do mundo e do universo. Enquanto linguagem – isto é, forma de se dizer e expressar algo – ela assume um amplo vocabulário simbólico. Nesse sentido, todos os textos bíblicos a serem utilizados pela Igreja nestas duas primeiras semanas são enriquecidos de símbolos que precisam ser decifrados e entendidos, e, jamais interpretados de modo fundamentalista, ao pé da letra. É recolher a mensagem através da imagem, e não sua literalidade.

O tempo do advento tem a intenção pedagógica de ensinar, a partir dos dois primeiros domingos que tratam da segunda vinda de Cristo que é para esta segunda vinda que devemos esperar e nos empenhar. Isto posto, podemos iniciar a meditação do texto evangélico de hoje.

O texto que a liturgia propõe é um pouco difícil. Não por sua interpretação, mas devido ao fato de que ele está fora de seu contexto próximo. Sempre se correrá o risco de interpretar equivocadamente o texto quando retirado do seu contexto, traindo, inclusive, as intenções do próprio evangelista. A perícope situa-se no capítulo vinte e quatro, o início do chamado “discurso escatológico/discurso final” da catequese mateana, através do qual, o catequista bíblico tratará de recuperar o ensinamento do Cristo para seus discípulos acerca dos eventos relacionados ao fim. Por isso, discurso final. O tema do fim do mundo, da história e da realidade devem ser sempre refletidos e entendidos não como fim catastrófico ou trágico, mas como um convite a uma nova história. O fim na bíblia nunca é fim de um mundo, mas fim de uma época/era a fim de que outra, totalmente nova, possa surgir. Para falar do surgimento desta nova era (no sentido mais positivo do termo), os autores sagrados se servem sempre de uma linguagem com um vocabulário carregado de elementos e termos simbólicos. Contextualização feita, se pode, agora, mergulhar no horizonte do ensinamento bíblico de hoje.

Nos versículos anteriores, Jesus dirigiu palavras duras contra o templo, contra a cidade santa (cf. 24,1-25), e causou desconforto nos discípulos com as mesmas palavras simbólicas referentes aos sinais cósmicos e terrestres (26-34). Isto provocou neles a expectativa acerca do momento em que tudo isso se realizaria. Diante disso, em Mt 24,35, o Senhor advertiu a seus discípulos que aquela geração não passaria sem que tudo isso acontecesse, mesmo tendo passado o céu e a terra. E, tranquilizando a inquietação deles declarava no v.36 que, sobre aquele dia, somente o Pai teria conhecimento. É, precisamente, sobre este tema que Ele quer trabalhar com seus discípulos, isto é, o modo (o “como”) através do qual deverão balizar e pautar a vida, e não sobre o “quando”.

“A vinda do Filho do Homem será como no tempo de Noé” (v. 37). Jesus recuperar para seus ouvintes a realidade vivida nos tempos desta personagem importante do Antigo Testamento. O que representa este elemento simbólico do dia de Noé? Ele faz referência ao dilúvio. Este, não pode ser interpretado como o fim do mundo, mas o surgimento de uma nova humanidade, em Gn 6 – 7. Nesse sentido, a vinda do filho do homem acontece para propor uma nova forma de vida, uma humanidade renovada. Já se sabe que esta personagem “filho do homem” pertence ao capítulo sétimo do Livro de Daniel, e se trata de um ser (humano) que realiza o querer divino na história com sua própria vida; é aquele que executa o projeto de Deus; que leva a termo o senhorio e o juízo divinos. Filho do Homem não significa a natureza humana apenas, mas a humanidade marcada pela condição divina. Com esta personagem também, é que Jesus se assemelhará para viver a sua missão.

“Nos dias, antes do dilúvio, todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. E eles nada perceberam até que veio o dilúvio e arrastou a todos” (v.38). Jesus fala das atitudes de comer, beber e casar-se. E esse dito precisa ser bem entendido, de modo a evitar interpretações moralizantes e desconectadas da vida. O casamento e as refeições eram, no tempo da sociedade daquela época, acontecimentos comuns e normais. Ele está evocando, portanto, a normalidade, a cotidianidade, o comum enquanto lugar do acontecimento do agir de Deus, indo contra a lógica do extraordinário, do tremendo, do fascínio, do chamativo e gritante. É no “aí e no agora” que Deus acontece. Sabiamente dizia Santa Teresa de Jesus (Ávila, Espanha – Séc. XVI): “Deus está entre as panelas também”.

Jesus ilustra a sua catequese, agora, com a imagem do trabalho, onde dois homens e duas mulheres estarão realizando seus afazeres. Dois serão levados, enquanto que dois serão deixados. Deve se ter presente que a expressão “ser levado(a)” não se refere a algo negativo ou castigo. Ela precisa ser compreendida da seguinte maneira: “ser levado(a)” significa ser “tomado(a)” por Deus. Então, as duas personagens são “levadas” ou tomadas pelo próprio Deus. Significa que elas estão sendo acolhidas por Ele porque souberam acolhê-lo em meio à vida.

Para que a novidade de Deus agindo em meio a essa história, isto é, ser tomado por parte de Deus possam ser percebidas, se faz necessária a vigilância, a qual é e sempre será uma das virtudes do discípulo. “Portanto, ficai atentos! porque não sabeis em que dia virá o Senhor” (v.42). A vigilância  bíblica (também trabalhada na parábola do dono da casa alerta contra o ladrão) não é uma espera passiva e descomprometida, mas ativa/operante, daquele que sabe esperar cooperando com o projeto do Reino através de suas atitudes. É a capacidade da leitura da realidade unida à ação transformadora de Deus através de seus filhos e filhas. Significa romper com a tentação dos braços cruzados, do sentar e esperar cair dos céus, ou do “tudo está garantido”. Ela serve de lente histórica para ajudar a pessoa a enxergar a chegada e a presença deste Deus que vem para tomar-nos para si.

Diante desta vinda do Senhor (sacramentalmente celebrada e vivida através da Palavra e da liturgia) estejamos vigilantes, e não indiferentes como os do tempo de Noé.


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 22 de novembro de 2025

SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO: Lc 23,35-43:

 


A Igreja vive a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo neste último domingo do tempo comum. Com esta celebração, encerra-se o ciclo litúrgico C, dedicado à leitura e meditação da catequese evangélica de Lucas. Por isso, nos é apresentada para a meditação eclesial o texto do “proprium” lucano das narrativas acerca da Paixão e Morte do Senhor.

A pergunta incômoda, “como é possível um celebrar a realeza de uma pessoa a partir do fracasso?”, ou “Por que não mostrar a realeza de Jesus com outros textos que falam do seu retorno glorioso, ao invés destes textos que o mostram crucificado?” É bem verdade que a leitura do ciclo litúrgico A apresenta para esta solenidade o discurso escatológico de Mt 25, através do qual o evangelista pretende mostrar como será o reinado definitivo de Deus. Há um motivo, evidentemente.

O texto litúrgico começa a partir do v.35, situando-nos no contexto imediato, isto é, o calvário e a crucifixão. Os julgamentos diante do sinédrio (processo judaico) e o inquérito diante da autoridade romana, o procurador Pôncio Pilatos, se encarregaram de levar Jesus para ser torturado e sentenciado à pena de morte dos prisioneiros políticos, aqueles que pudessem representar algum perigo para o Império, à crucifixão. Aos pés da cruz encontram-se os chefes religioso do povo, os soldados responsáveis pela manutenção da ordem de execução, e, crucificados junto com ele, outras duas companhias, os malfeitores. É importante ler os versículos seguintes em unidade.

“Os chefes zombavam de Jesus dizendo: A outros ele salvou. Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Escolhido! Os soldados também caçoavam dele; aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre, e diziam: Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo! Acima dele havia um letreiro: Este é o Rei dos Judeus. Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!” (v.v35-39). Os insultos que Jesus que recebe na cruz são um eco das tentações sofridas no deserto, no início de seu ministério. Por isso, eles só podem ser entendidos a partir de Lc 4,1-13.

As tentações foram seduções oferecidas pelo Diabo, com o propósito de fazer com que Jesus se desviasse do projeto de Deus, lhe fosse infiel, e usasse seu messianismo para benefício próprio; elas tinham a intenção de causar a divisão, a cisão, a ruptura entre Ele e o Pai. O caminho mais fácil; a lógica do ser e do ter, do domínio, da submissão e do prestígio. Quando o tentador percebe que nada afastará o Senhor da fidelidade a YHWH, em 4,13, o autor narra: “Tendo acabado toda a tentação, o diabo o deixou até o tempo oportuno”.

Lucas coloca o calvário e a cruz como o tempo oportuno para a última tentação de Cristo. Nesse sentido, os chefes religiosos, os soldados e o malfeitor com suas zombarias e troças, personificam e amplificam a figura do tentador nos momentos finais da vida de Jesus. Assim, a Sua última tentação se dá no calvário e na cruz. Os insultos, são, na verdade, a tentação de se servir de um messianismo fácil, sedutor, poderoso, espetacular; diametralmente oposto ao caminho do Messias encarnado por ele enquanto justo (Sl 22; 33; 69) e servo sofredor (Is 49 – 55). Diante da tentação de salva-se ele se oferece ao Pai, não respondendo através do caminho mais fácil. Torna-se, pois, rei de si mesmo e de suas vontades.

No meio daquele vozerio, alguém fala com consciência: um malfeitor, que provavelmente, para estar ali, deveria ter cometido um delito muito sério, que lhe custasse a vida. Ao censurar a fala do outro bandido, reconhece em Jesus o Justo, aquele que realizou durante toda a sua vida a vontade e o querer de Deus; que, ali, naquele injusto sofrimento, padece com confiança total na silenciosa presença de Deus. O Justo, na sagrada escritura é aquela pessoa que cumpre o querer de Deus; que padece sofrimentos por conta de sua fidelidade, permanecendo fiel à Deus. Assim é reconhecido Jesus pelo malfeitor: “Mas o outro o repreendeu, dizendo: Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal. E acrescentou: Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado” (v.v. 40-42).

Jesus lhe responde com a absoluta certeza de quem confia plenamente no Deus do Reino que ele anunciou durante toda a sua vida: “Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (v.43). Só neste versículo, dois temas se entrelaçam, se correspondem e se tornam plenos: a salvação universal que Deus oferece indistintamente e o “hoje” salvífico de Deus. O reinado de Deus em Jesus é este: o agir amoroso e misericordioso de Deus, sempre inclusivo e acolhedor, humanizador e gerador de novas e plenas possibilidades de vida.

Igualmente importante é o tema do Hoje salvífico de Deus: esta salvação, dom e graça, oferecida a todos, sem distinções, acontece sempre no hoje da história pessoal do indivíduo. Por isso, a vida de todo aquele se abre para acolher a vida e a história de Jesus de Nazaré, do Reino anunciado por Ele, transforma-se num encontro salvífico constante com o Deus e Pai de Jesus.

Assim é o reinado de Deus em Jesus: amor, misericórdia, salvação universal, acolhimento. Assim é Jesus Rei, que, paradoxalmente, não reina de um trono ou de um palácio, envolvido pelas ideologias imperiais e monárquicas; não reina a partir do poder, do prestígio, da fama, da glória e da vaidade. Reina desde a cruz, expressão máxima da doação da própria vida; de que o seu reinado, seu agir em nome do Deus que chama de Pai, foge dos esquemas e da lógica mundana.

O discípulo que quiser tomar parte deste reinado deverá estar disposto a assimilar e assumir esta mesma lógica e dinâmica de vida de Jesus.

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 25 de outubro de 2025

REFLEXÃO PARA O XXX DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 18,9-14:

 


A liturgia deste trigésimo domingo do tempo comum apresenta a continuidade do capítulo dezoito do evangelho de Lucas, com um texto muito desconcertante: a parábola do fariseu e do publicano (Lc 18,9-14). Ela traz em sua sentença final, uma provocação absolutamente questionadora que vai além da lógica humana, a qual tem a intenção de conduzir o leitor/ouvinte à uma mudança de mentalidade acerca do modo se relacionar com Deus – não o deus da religião, mas o Deus e Pai de Jesus – e com as pessoas. Nesse sentido, a pergunta desconcertante se expressaria assim: “Seria possível continuar ou viver uma situação considerada pecaminosa pela religião ou pela moral, e ser igualmente amado por Deus? 

A fim de compreender a mudança radical na relação com Deus, Jesus narra a parábola do fariseu e do publicano, destinando-a àqueles que pensam ser perfeitos, graças aos seus esforços, ou, na linguagem do evangelista, “aqueles que confiavam na própria justiça” (v.9). A parábola começa assim: “Dois homens subiram ao Templo para rezar: um era fariseu, o outro cobrador de impostos” (v.10). As personagens já são apresentadas: duas pessoas com condutas opostas.

O fariseu era o observador zeloso da Lei, conhecendo-a nas suas minucias e em suas virgulas. Cumpria rigorosamente as 613 prescrições da lei de Moisés. Pessoas leigas e piedosas, profissionais do sagrado. Mais religiosas que os chefes da religião. Assim, considerava-se justo diante de Deus, e, com isso, separavam-se do povo. O publicano era um judeu que trabalhava para o Império, cobrando impostos de sua própria gente. Eram considerados como traidores e, nesse sentido, piores pessoas e pecadores públicos. Para estes não haveria nenhuma esperança de salvação. Nesta personagem, Jesus apresenta uma pessoa cuja a situação não consegue mudar!

“O fariseu, de pé, rezava assim em seu íntimo” (v. 11). Jesus mostra a atitude e o conteúdo da oração do fariseu. Interessante, ele rezava em pé (para ser visto) e em seu íntimo. A tradução grega é melhor, pois mostra com realismo o modo com que ele rezava, “voltado para si mesmo”. Este homem se coloca diante do Senhor, mas permanece voltado para si, ainda que as palavras que saíssem de sua boca fossem direcionadas à Deus; um monólogo de sua própria santidade: fala para si mesmo e sobre si mesmo.

O fariseu, por sua vida separada, fazia da sua santidade a medida para julgar os outros: “Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos (v.12a)”.  Jesus denuncia a incoerência do fariseu, que através da sua mania de ostentar a sua justiça diante dos homens, na realidade serve somente para mascarar a profunda e real injustiça que existe diante de Deus. Ele, no templo, ao exaltar e se gloriar de sua dignidade e santidade, ao incensar suas práticas, não faz outra coisa senão usurpar o lugar de Deus. É o pecado da idolatria, porque ao glorificar-se com a mesma glória devida a Deus, se coloca como ídolo de si. Tal é a convicção equivocada dele, que a sua atitude de lançar um olhar de desprezo ao publicano lhe denuncia a insensatez e o desprezo: “não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos”.

A concepção equivocada do fariseu em relação à Deus é ainda mais acentuada na parábola, quando elenca as suas atitudes: “Eu jejuo duas vezes por semana, e dou o dízimo de toda a minha renda” (v.12b). São centradas nas práticas da piedade judaica. Entretanto, nenhuma delas voltadas às relações com o próximo. Todas relacionadas ao cumprimento do dever religioso em relação à Deus, mas totalmente desinteressadas do bem ao outro. Por exemplo, a prática do jejum. Na tradição de Israel era prescrita uma única vez ao ano, no chamado Yon Kippur (dia da expiação/perdão). Mas, a tradição religiosa acrescentou mais quatro, aludindo às quatro grandes catástrofes nacionais do povo.

Os fariseus, para destacarem-se dos demais, jejuavam às quintas e às segundas-feiras, porque a quinta-feira era o dia em que Moisés, conforme a tradição, havia subido ao Sinai, e a segunda-feira, o dia em que ele havia descido da montanha. Este jejum bi-semanal era o seu distintivo. Pagavam o dizimo de tudo o que possuíam, e não somente sobre o que era exigido pela Lei, isso porque queria estar seguro de não transgredir nenhuma norma ou prescrição. Assim, faziam muito mais do que era estabelecido. Apresentavam a lista de seus pretensos méritos diante de Deus.

Agora, é importante lançar o olhar para o publicano. Ele vai ao templo com a intenção de rezar, mas não arrisca em fazê-lo. Jesus mostra muito bem a discrepância existente entra as duas personagens. “O cobrador de impostos, porém, ficou à distância, e nem se atrevia a levantar os olhos para o céu” (v.13). Ele tem consciência de sua indignidade; sabe que não pode entrar numa casa de um judeu piedoso, muito menos no templo de Deus, porque poderia tornar impuro todos os que se aproximavam.

A forma e o conteúdo da oração do publicano é, por demais, reveladora, conforme narra Jesus: “batia no peito, dizendo: 'Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!” (v.13). Duas personagens num contraste abissal entre si, mas com atitudes iguais em relação à Deus: o fechamento. O fariseu, enquanto ídolo e deus de si mesmo, se fecha ao Senhor, que pede amor e não sacrifício; o publicano, que convive cotidianamente com o engano e com o roubo. Mas somente este é consciente de sua impureza, de sua indignidade. Mais curioso ainda, ele não promete a Deus mudar de vida porque não lhe é possível. Mas suplica para que lhe seja mostrada a misericórdia, mesmo em sua impureza: “Senhor, veja a vida desgraçada que levo. Não posso fazer outra coisa, não posso voltar atrás. Mesmo assim mostrai-me vossa misericórdia”.

A parábola, como dissemos no início, termina de uma forma inexplicável, com uma sentença desconcertante de Jesus, que faz refletir: “Eu vos digo: este último voltou para casa justificado, o outro não. Pois quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será elevado” (v.14). O publicano retorna para a sua casa justificado, ou seja, em paz e capaz de Deus. Mas isso é inquietante: o que esse fariseu fez de errado? Cumpria e realizava tudo o que ordenava a Lei, e muito mais. O seu erro consiste no fato de ter enaltecido a si mesmo, isto é, tomar o lugar de Deus. Fez se deus de si através da mercadoria de troca que seus méritos representavam. O que fez o publicano ser justificado? Apenas suplicou e confiou na misericórdia e no amor de Deus que lhe exige nada. Nem mesmo faz o propósito de mudar de vida, mas ser receptivo à misericórdia de Deus. 

A parábola de Jesus pretende mostrar como é a lógica do Reino de Deus: nesta nova realidade que Ele propõe, o Reino, não se torna grande e amado por de Deus quem se apoia em seus próprios méritos, mas é amado por Ele devido às suas necessidades. Méritos, ninguém os tem. Agora, necessidades, todos possuem. Então, a moral deste trecho precioso é esta: Deus ama, sem impor a mudança de vida; a comunhão com Deus não depende da conduta religiosa e dos méritos do homem, mas no acolhimento do amor e na vivência dele.

Quem somos, diante deste espelho do texto? O fariseu, mais religioso que os líderes (mais cristãos que o próprio Cristo; mais católicos que o papa; mais padres que os próprios padres)? Ou o publicano, consciente de ser indigno diante de Deus, ciente de não poder ter ou apresentar algum mérito? Como está nossa oração, dado que ela é o modo de se estabelecer uma relação com Deus: é uma relação que se baseia no mérito, enquanto “moeda de troca”; uma oração voltada a si? Ou uma relação que sabe ser grata e gratuita, e, portanto, livre diante de Deus, o qual nos ama livre e gratuitamente, sem esperar de nós os méritos?


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

domingo, 19 de outubro de 2025

REFLEXÃO PARA O XXIX DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 18,1-8:

 


O evangelho proposto para a meditação do vigésimo nono domingo do tempo comum, é retirado do capítulo dezoito, o qual encerra a seção dos ensinamentos sobre o tema da fé dos discípulos, iniciado no capítulo anterior – Lc 17,1-10 – com o pedido para que Jesus lhes aumentasse a fé, seguido do relato da purificação dos dez leprosos, dentre os quais, um samaritano, que, ao retornar para agradecer honra o Senhor com sua fé (Lc 17,11-19), que não pode ser lido no domingo anterior devido à Solenidade da Senhora Aparecida. Por isso, o texto de hoje conclui este ensinamento. A fé dos discípulos deve ser perseverante e orante.

A fé, nos mostrou o capítulo dezessete, é a capacidade de relação com Deus. É e sempre será a resposta que o homem e a mulher, o discípulo e a discípula de Jesus de todos os tempos e lugares oferece a Deus, diante de seu amor, sua misericórdia e seu perdão. Ela habilita o discípulo a se relacionar com Ele segundo a forma e a condição de Filho, e ser reconhecido como discípulo do Reino. Mas esta relação-resposta deve ser sempre conservada a partir da perseverança e da constância, mesmo diante dos desafios e das dificuldades no seguimento a Jesus. É o que o discípulo-leitor do evangelho deve procurar absorver do texto deste domingo, Lc 18,1-8, a parábola do Juiz iníquo e da viúva, personagens simbólicas a serem compreendidas e aplicadas à dois grupos.

Para compreender o texto de hoje é necessário compreender o contexto da comunidade de Lucas (e de todas as comunidades no Século I). Cresce e acirra-se a perseguição contra o movimento de Jesus por parte do Império, pelo imperador Domiciano, e da parte do judaísmo da época. A violência, o insulto, a rejeição, a exclusão e marginalização dos cristãos dos dois lados da sociedade geravam desânimo nos primeiros cristãos e até desistências. Sob este clima é que Lucas tece o relato parabólico que inicia o capítulo dezoito. Este episódio é exclusivo do evangelista, que soube redigir bem o texto, apropriando-se do ensino de Jesus e das personagens, articulando-as a fim de transmitir uma mensagem de ânimo, de encorajamento e de esperança para suas comunidades para fortalecer lhes a Fé, mesmo em tempos de crise.

O texto começa apresentando a intenção do Senhor, a qual revela-se a finalidade do ensinamento que vem a seguir: “Jesus contou aos discípulos uma parábola, para mostrar-lhes a necessidade de rezar sempre, e nunca desistir...” (v.1). Na verdade, o Senhor já trabalhou o tema da oração no capítulo 12 da catequese lucana. Por isso, este não pode ser considerado o tema central deste capítulo, embora apareça novamente. E, para que recordemos sempre: a repetição dos temas é um artifício do evangelista para mostrar as dificuldades que os discípulos-leitores estão apresentando na assimilação dos mesmos. No entanto, se faz importante recorrer ao contexto da comunidade uma vez mais, ou seja, os anos 80. Ela era composta, na sua maioria, por estrangeiros e pagão, os quais não tinham a prática e o costume da oração. Por serem de origem grega, a maioria estava habituada ao costume religioso grego dos sacrifícios apresentados nos templos, aos ritos.

A parábola apresenta duas personagens absolutamente opostas. Um juiz e uma viúva. Com muita precisão  são mostradas as características da personagem do magistrado: “um juiz que não temia a Deus, e não respeitava homem algum” (v.2). É um homem arrogante, autossuficiente, prepotente. Não temer a Deus significa que ele não o reverenciava. O temor bíblico não é sinônimo para o medo. Muito pelo contrário. É a atitude de reverência e de reconhecimento da dependência em relação ao divino. Este homem, mediante suas características, revela-se descomprometido com Deus e com outro (“não respeitava homem algum”).

A segunda personagem que Lucas apresenta como contraste é a viúva. É importante relembrar que esta classe, dentro da tradição religiosa do povo de Israel, devia ser protegida. Mas isso não era feito. Quando a mulher ficava viúva, sem herdeiros, e, não tendo ninguém que a amparasse, todos os seus bens e propriedades podiam ser dados ao templo, aos sacerdotes. Com isso, corria o risco de ficar na miséria, na mendicância, vivendo na marginalização. Muito provavelmente, esta viúva da parábola ao apresentar-se com insistência diante do juiz,  não tinha ninguém por ela. A sua característica é a insistência; a perseverança. Mesmo sabendo que o juiz poderia ser injusto com ela. Via de regra, no AT, as figuras dos magistrados das cidades eram sempre denunciadas pelos profetas por deixarem se corromper por seus próprios privilégios e vantagens, desfavorecendo os pobres que iam a eles pedindo justiça.

Não é o que acontece. O juiz se incomoda com a insistência da viúva. Ele expressa bem sua intenção: “Eu não temo a Deus, e não respeito homem algum. Mas esta viúva já me está aborrecendo. Vou fazer-lhe justiça, para que ela não venha a agredir-me!” (v.4-5). A tradução está equivocada: o juiz não teme a agressão. Primeiro, porque Jesus jamais incentivaria essa atitude, tampouco os evangelistas inspirariam este comportamento para suas comunidades, que já sofriam por demais com a violência. A tradução literal é esta: “Vou fazer-lhe justiça, para que ela não me coloque os olhos negros”. Trata-se de uma figura de linguagem que pretende aludir para o medo de ter sua reputação manchada. Ora, é claro que o juiz injusto não estava pensado no bem daquela viúva ao lhe exercer justiça, mas na sua própria imagem. Ele pensa em si mesmo, tão somente. Não pensa na justiça que pode fazer porque sua preocupação não é o outro. Por isso, quem simbolizam estas personagens?

O juiz injusto é símbolo para a mentalidade e atitude do Império Romano, imbuídos de seus esquemas e sistemas de domínio, opressão, coação, injustiça, violência e morte. Em primeiro lugar, a viúva é na tradição judaica símbolo para o próprio povo de Deus, quando se encontrava oprimido. Para a geração de Lucas, a viúva insistente se torna símbolo para a comunidade cristã, ameaçada nesta história. Ela se torna exemplar e modelo para os discípulos por sua perseverança na fé, mesmo em tempos difíceis; mesmo onde a crise e a dificuldade tomam conta e parecem reinar. É o exemplo da fé insistente e perseverante que a viúva tem que o discípulo precisa assimilar. Sua conduta orante deve imitar à desta mulher. Ora, a oração é aquele momento de intimidade com Deus, de relação pessoal com Ele. Nela se discerne a vida, as opções, as ações. Através dela se pode assimilar o que Deus pede e propõe. A oração é a atitude de colocar os olhos nos olhos do Pai e do Senhor Jesus para ver a direção para a qual eles apontam. No caso, a oração insistente serve para que o discípulo possa saber o momento oportuno para agir e resolver os problemas a partir da ótica de Deus. É, então, esta personagem que deve servir de modelo para a comunidade ou para o discípulo que balança na fé.

Jesus, conclui a parábola chamando a atenção dos discípulos para a conduta injusta deste juiz, para oferecer a eles a certeza de que ainda que aquele magistrado agisse assim, Deus age diferente. Com justiça, e esta é amor e misericórdia para salvar os seus. Nunca um juízo de condenação. O Pai não é como aquele juiz, que se posiciona ao lado de suas próprias convicções e bem-estar, agindo por seus próprios interesses. Pelo contrário, através da parábola, Jesus mostra que o Pai toma um lado na história: o dos  despossuídos, marginalizados e excluídos; ao lado das minorias.

Jesus coloca uma pergunta: “Mas o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?” (v.9). Diante do fato do Senhor assegurar a constante ação de Deus em favor de todos os seus eleitos (o seu povo), Ele coloca a pergunta de modo a provocar os discípulos: diante da fidelidade de Deus, o homem permanecerá fiel à sua relação-em resposta à Deus? Será perseverante? Este será o desafio a ser vivido por aquele que deseja, de fato, seguir o projeto de Deus, tornar-se discípulo de Jesus.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 11 de outubro de 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO APARECIDA – Jo 2,1-11:

 


A Igreja no Brasil celebra a solenidade de sua padroeira, Nossa Senhora da Conceição Aparecida. E propõe para a meditação eclesial o evangelho das Bodas de Caná, Jo 2,1-11. Episódio este contido na catequese do evangelho joanino. O Quarto Evangelho é constituído de duas partes. A primeira, o Livro dos Sinais, que inicia em Jo,1,18 e conclui-se em 12,51, e do livro da Glória, Jo 13 – 20. 

Os Sinais, na perspectiva de João, são gestos simbólicos de Jesus que apontam para a realidade profunda e essencial de sua identidade. Que Nele existe e desponta a novidade (escatológica, da ultimidade, da plenitude) de Deus agindo na história. Mas não devem ser vistos e meditados em si mesmos, e sim orientados para a Hora da Glória de Jesus. Esta é o momento do Seu enaltecimento, sua revelação como Filho de Deus e Messias. Por isso, só pode avançar para a contemplação da hora da Glória o discípulo que percorreu o itinerário descrito nesta primeira parte do evangelho.

O capítulo 2 do Evangelho segundo João apresenta o primeiro sinal realizado por Jesus. Ele o realiza em Caná, na Galileia, no terceiro dia de sua semana inaugural. Não é à toa que esse dado aparece. O episódio 2,1-11 parece dar sequência ao contexto de 1,19-51. Se “no terceiro dia” (2,1) faz soma com os quatro dias de 1,19-51, o episódio de Jo 2,1-11 completa uma “semana inaugural”. Portanto, o sétimo dia. Devemos recordar que o Quarto Evangelho é escrito para pessoas que já foram evangelizadas numa primeira vez, por isso a expressão “terceiro dia” alude ao dia da ressurreição. No horizonte da narrativa, no sétimo dia desta semana acontece um casamento em Caná. Todavia é preferível para esse episódio o termo “bodas”.

As bodas fazem parte do imaginário do povo de Israel. A imagem do casamento serve de metáfora/símbolo para a Aliança (relação) com Deus. Mais ainda, nas expectativas do povo, as bodas seriam o momento da inauguração da era messiânica. Ela representa, nesse sentido, a alegria e a expectativa das núpcias messiânica, que, a partir da mentalidade dos discípulos de Jesus Ressuscitado, se dará através das núpcias do Cordeiro. Adentrando no horizonte do texto, a personagem que encabeça a narrativa é uma mulher; a mãe do Senhor, primeiramente. Ambos foram convidados. Ora, a organização das festas geralmente ficava sob o cuidado das mulheres, as mães de família. Os homens ficavam ali como figuras decorativas. Mas o evangelista elenca também a presença dos discípulos.

A figura da mãe de Jesus deve ser compreendida, de modo a reorientar o olhar para Ele e sua atuação. O texto não tem a mais remota intenção de colocar ênfase na mulher. Um detalhe importante, ela não é mencionada pelo seu nome (é óbvio que o evangelista saiba, mas isso não ocupa lugar para a finalidade da narrativa). Sabe-se, que quando uma personagem aparece de forma anônima, na verdade, o autor está fazendo um convite para que os leitores/ouvintes se identifiquem com esta. Portanto, o texto das Bodas de Caná não pode ser interpretado em chave de leitura da intercessão de Maria.

A “mãe” é símbolo do Israel fiel à Aliança e submetido à Lei. Ou seja, esta personagem ainda está presa ao regime da lei mosaica e ao sistema religioso-cultual da época. O evangelista João propõe para seus leitores/ouvintes, fieis de sua comunidade, a superação e a substituição de todo o sistema religioso e cultual judaico a partir da pessoa de Jesus. Há que se superar estes sistemas antigos para se tomar parte da novidade de Deus presente na história. 

O vinho vem a faltar. A mãe de Jesus nota o fato. Uma festa de núpcias sem vinho! O vinho simboliza a alegria e o amor. Mas para a tradição de Israel, o vinho alude para a inauguração da era messiânica. A mãe se dirige à Jesus, conta-lhe o que está acontecendo e ele responde algo que dá a entender que isso não é assunto dele (lit: “O que há para mim e para ti?”. v.2). Soaria como um “Não é problema nosso”. Com efeito, em seguida, acrescenta Jesus algo que soa igualmente intrigante: “Minha hora ainda não chegou”. De que hora Jesus está falando? De qualquer maneira, ainda não é sua hora, mas o que acontecerá imediatamente será um sinal que encaminhará para este acontecimento.

A mãe diz aos que estavam servindo (lit. diáconos), “fazei o que Ele vos disser”. Aqui tem-se a transformação desta personagem. Recordemos que ela foi estabelecida como símbolo para o Israel fiel. Ao dizer aos servos para colocarem toda a atenção sobre o agir e a palavra de Jesus, ela reconhece Nele a novidade da presença de Deus. O Israel fiel à Deus e Sua Aliança saberão reconhecer Deus mesmo agindo de modo novo através de Jesus. Agora sim, esta mulher começa a fazer parte da Novidade escatológica apresentada pelo Senhor, e passa, então, a símbolo para a Comunidade dos fiéis.

O evangelista nos informa que ali estavam seis talhas de pedras, de mais ou menos cem litros, utilizadas para a purificação ritual (e higiênica) que os judeus costumavam fazer. Elas estavam vazias. Estão ali inutilizadas; já não servem mais, a não ser para o que serviam antes. Mas após a ordem de Jesus para enche-las, a atitude dos servos é de completa-las até a borda (lit. até o alto). Eram feitas de pedra. Foi sobre duas tábuas de pedra que, no Sinai, Moisés recebeu a Lei. No simbolismo judaico, a água é associada à Torá. Essa não falta, vinho sim — falta a alegria messiânica. Por isso, o número seis aparece. Na teologia bíblica, seis indica imperfeição, incompletude (contrário do número sete, que simboliza a perfeição). O narrador denuncia a inutilidade das práticas religiosas judaicas que, diante da novidade de Jesus, encontram-se superadas. Elas devem ser enchidas até a borda. Emerge aqui a ideia da abundância. Assim foi feito. Trazem as talhas ao Senhor, que pede para que as levem até o mestre-sala. O qual prova (v.9).

O mestre de cerimônias chama o noivo, que até agora tinha ficado incógnito. “Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!” (v.10). Esta última parte do versículo adquire um peso devido ao adverbio de tempo “agora”. Ele expressa a realidade de que o “agora” está ai. Este “agora” é a novidade, que é marcada pela abundância do vinho bom, como recorda o profeta Amós no capítulo nono de seu livro, ao dizer que das colinas destilaram vinho em abundância. João recorda também a profecia de Isaias, que profetiza e celebra a abundância vivenciada no tempo messiânico (Is 61; 63; 66).

Qual é o verdadeiro noivo para o qual deveria ter sido dito isto? Jesus, que não deixa faltar o vinho novo e bom. Porque, ao mesmo tempo, o noivo e o vinho melhor são Ele mesmo. Assim, há um “noivo escondido” na história, que vem realizar as núpcias de Deus com a humanidade.

A mensagem final, no v.11 é sumamente importante: “Este foi o início dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galiléia e manifestou a sua glória, e seus discípulos creram nele” (v.11). Notemos que o Quarto Evangelista sublinha que este foi o princípio dos sinais (gr. ἀρχὴν τῶν σημείων/arché tón semeion). Arché (gr. ἀρχὴν / princípio , origem) faz um arco narrativo com o prólogo do Evangelho, quando o catequista bíblico inicia a obra com um solene “No princípio”, que remete ao primeiro dia da criação em Gn 1,1, com a conclusão provisória desta semana inaugural, que remete à nova criação.

Qual é a força de sentido deste texto do evangelho joanino para a Solenidade de Nossa Senhora da Conceição Aparecida? Apresentar Maria como aquela que, entre os processos da vida, sabe reconhecer e apontar o sentido da vida para todos os discípulos do Reino: “Fazer tudo o que Ele disser”, ou seja, a Pessoa de Jesus e a forma de sua existência. Ao mesmo tempo, indicar atitudes ternas e responsáveis dela que podem ser imitadas: a atenção com os acontecimentos ao redor de si (o discípulo precisa estar atento à realidade); o cuidado para com as necessidades dos outros (zelo para com os outros); a prontidão para se colocar a serviço (serviço); a cooperação na solução de um problema (ser presença solidária). Atitudes que podem sempre ser aprimoradas na vida e nos processos pessoais do discípulo e da discípula do Reino.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 4 de outubro de 2025

REFLEXÃO PARA O XXVII DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 17,5-10:

 


A boa leitura do texto bíblico sempre levará em conta a absorção do seu contexto amplo, isto é, o lugar onde a narrativa se encontra. Isso serve para iluminar a compreensão, quando ele parece trazer temáticas diversas. Como parece ser o caso do evangelho deste vigésimo sétimo domingo do tempo comum, retirado do capítulo dezessete do Evangelho segundo Lucas (Lc 17,5-10). Porém, é preciso retomar a leitura dos cinco versículos anteriores.

Nos v.v1-2, o evangelista começa o capítulo falando da eventualidade e da inevitabilidade dos escândalos no meio da comunidade. Isto é, todas as situações que impedem que o discípulo que está iniciando na fé cresça e progrida na vivência desta mesma fé, que é relação com Jesus e com o Pai. O evangelista usa o termo σκάνδαλον (gr. schândalon), que alude à impedimento, ou literalmente, obstáculo.

Na comunidade dos discípulos não deve haver espaço para obstáculos que se interponham ao processo pessoal do indivíduo em se tornar discípulo do Reino e reconhecer-se filho de Deus. Jesus dirá que aquele que produz o escândalo, o obstáculo, deve amarrar uma pedra de moinho no pescoço e ser atirado ao mar.

A pedra de moinho pesava mil e quinhentos quilos. O mar nas Escrituras é símbolo de tudo o que é contrário ao projeto de vida sonhado por Deus. “Ser lançado ao mar”, na verdade, é forma simbólica de se denunciar que a pessoa causadora do obstáculo e do impedimento está na contramão do querer de Deus. Entendamos que o fato de Jesus dar essa ordem não significa que ele esteja fazendo apologia à exclusão. É preciso recordar que o mar é, também, o primeiro ambiente missionário do Senhor e dos primeiros discípulos. Ele convida Simão à vocação de pescar homens dos mares do mundo, fazendo-os começar a dinâmica do discipulado. Nesse sentido, “lançar ao mar” significa proporcionar à pessoa a tomada de consciência de que ela precisa recomeçar a caminhada. É, portanto, uma orientação e inciativa pedagógica que Jesus oferece à comunidade para que a pessoa recupere a sua condição de discípulo, e, mais ainda, reconheça-se filho de Deus.

Jesus toca no tema do perdão, nos vv.3-4, ensinado que o perdão deve ser constante e o distintivo da comunidade dos discípulos. A ordem de perdoar sete vezes não está ligada à quantidade, mas à qualidade. Sete na teologia bíblica indica plenitude/perfeição. O discípulo e a comunidade distinguem-se pelo perdão. Esta é a condição para ser reconhecido enquanto filho de Deus. Estes versículos, então, preparam o texto de hoje. Feitas estas considerações e contextualizações iniciais, agora podemos mergulhar na compreensão da narrativa e extrair dela o ensinamento que Jesus quer transmitir aos discípulos e à nós.

No v.5, após os ensinamentos anteriores de Jesus acerca do escândalo e da qualidade do perdão pedem algo: “aumenta a nossa fé”. Algo estranho. Por isso o Senhor responde de outra maneira no v.6, não dando a resposta que os discípulos querem e pedem: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: Arranca-te daqui e planta-te no mar, e ela vos obedeceria”. A amoreira/sicômoro eram arvores que possuíam raízes tão profundas, que se tornavam difíceis de serem extraídas. O que o Mestre pretende dizer? Que não importa a quantidade da fé, mas a qualidade dela. Ele a compara a um grão de mostarda, uma pequena semente.

Jesus pretende ensinar a seus discípulos que não importa uma fé gigante em termos de quantidade, mas enquanto disponibilidade de relação. Se esta disponibilidade relacional, esta resposta existir da parte do homem e da mulher, eles podem se relacionar com Deus na condição de filhos. Assim, a fé não é algo que o Pai dá. Ela é uma resposta/atitude que parte do ser humano, e não de Deus. Ela não é algo que precisa ser aumentada, acrescentada, mas uma relação a ser vivida e trabalhada pelo ser humano. A imagem paradoxal da árvore arrancada e plantada no mar traduz plasticamente a força da confiança total em Deus

A comparação da qual Jesus se serve, o grão de mostarda, pequena semente, mostra para os discípulos que esta fé não idealizada (grande, qualitativa, ou, mesmo perfeita), mas real, perpassada pelos desafios, pelos obstáculos e dificuldades da vida. A fala do Mestre é uma denúncia: os discípulos não possuem a fé; não estão respondendo ao dom do amor de Deus; não estão se relacionando com Ele na forma e no modo de filhos, que abraçam ao amor e a misericórdia e frutificam este amor e esta misericórdia na relação com os outros.

Jesus propõe, pois, uma alternativa, através da parábola do patrão e do servo (v.v. 7-10). Ela ilustra a atitude verdadeira do discípulo dentro da comunidade e em sua relação com Deus e com os irmãos. O serviço em toda a sua amplitude deve ser sempre desinteressado e gratuito. Quando isso acontece se anula toda pretensão humana de tentar servir-se de Deus e do outro, ou condicioná-los através de uma relação religiosa de tipo contratual ou contabilizável. Ser servo inútil, ou simplesmente servo é papel do discípulo-missionário do Reino, que, no decorrer de sua vida, vai se assemelhando ao Deus servidor e Pai de Jesus Cristo, e a ele mesmo. Eles são o modelo de serviço a serem imitados. Não são senhores, tampouco patrões. O patrão e senhor dos servos (os discípulos) é povo de Deus visibilizado pela Comunidade de Fé, a Igreja, de modo especial, os mais necessitados. Esta deve ser a conduta do discípulo que vive genuinamente sua relação/resposta à Deus e a Jesus, a qual chamamos fé.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 27 de setembro de 2025

REFLEXÃO PARA O XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 16,19-31:

 


O evangelho deste domingo ainda se detém sobre o capítulo dezesseis, após parábola do administrador desonesto (Lc 16,1-13). Ao final, Jesus censura a postura dos fariseus (v.14), os quais zombavam de Seu ensinamento acerca da impossibilidade de servir à Deus e ao dinheiro, pois eram “amigos do dinheiro”. O texto proposto para a meditação já parte do v.19, mas ainda dirigido aos fariseus, com a parábola do rico e do pobre Lázaro.

Versículos antes, Jesus declarou a impossibilidade de um rico entrar no Reino, sendo mais fácil e possível um camelo passar pelo buraco da agulha (v.15). Afirmação que deve ser mantida na sua originalidade, isto é, a de provocar o ouvinte-leitor. No Reino de Deus, segundo perspectiva de Lucas, há lugar para todos, inclusive para os “senhores”, mas não para os ricos. Qual a diferença? O rico é aquele que tem e detém para si. O senhor é aquele que dá e partilha com os outros. Para o Jesus lucano, os ricos são considerados doentes terminais de egoísmo para os quais não existiria, então, esperança.

Nesse sentido, Jesus termina a seção contando a parábola do homem rico e do pobre Lázaro. “Havia um homem rico, que se vestia com roupas finas e elegantes e fazia festas esplêndidas todos os dias” (v.19). Note-se como o evangelista consegue, ao recuperar o ensinamento do Mestre, captar bem as dinâmicas psicológicas do rico. Ele exterioriza aquilo que lhe falta internamente através das roupas finas. Revela, ainda, a partir do detalhe dos banquetes dados cotidianamente, a fome, que nada mais seria do que a ausência de algo que pudesse preenche-lo. Ou seja, este rico é um homem completamente vazio e raso, superficial e pobre; que através das extravagancias revela aquilo que mais lhe falta. É pobre interiormente e necessita mostrar sua riqueza através da exterioridade. Necessita mostrar que tem algo. Não é por menos que Jesus direciona a parábola, em primeiro lugar, para os fariseus.

Quem muito precisa mostrar, aparentar, ostentar e fazer é porque muito lhe falta. Ou pode faltar tudo. Este dinamismo nada mais é do que uma forma/atitude de compensação. Com isso, perde o senso da realidade a sua volta. Não consegue enxergar as reais necessidades das pessoas que estão ao seu lado. Miram e projetam-se a si mesmos.

A outra personagem, que, pela primeira vez no ensinamento em parábolas de Jesus recebe nome, é o pobre: Lázaro (hbr. “Deus ajuda”). Muita atenção na forma em que ele é descrito por Jesus: “um pobre (...), cheio de feridas, estava no chão à porta do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E, além disso, vinham os cachorros lamber suas feridas” (v.20-21). Lázaro é pobre, está coberto de feridas, e vive das migalhas – das eventuais sobras – que caiam da mesa do rico. Conforme a mentalidade da época, sua descrição corresponde a de um pecador. A pobreza e enfermidade (estar coberto de feridas) eram tidas como consequências do pecado cometido. Chama mais ainda a atenção, o fato dos cães que se aproximavam e lambiam suas feridas. Numa primeira análise, é possível pensar que a saliva dos cães servisse de curativo para as feridas do pobre Lázaro. Mas é verdade que também os cachorros eram tidos como animais impuros. Jesus carrega a mão ao descrever a condição deste pobre: impuro por sua pobreza e enfermidade, a ponto de atrair para si mais impurezas, simbolizadas pelas figuras dos cães. Talvez o exagero narrativo seja mais próprio do evangelista que gosta do recurso da hipérbole.

A intenção da parábola é mostrar que ambos vivem em mundos diferentes e separados. Todavia, o destino existencial dos dois foi o mesmo: morreram. Jesus tem uma perspicácia tremenda que o evangelista consegue captar e trabalhar ao seu modo, pois no v.22 se encontra a informação: “Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado”. Lázaro morre e vai para junto de Abraão carregado pelos mensageiros celestiais; do rico, ao contrário, só se diz que foi enterrado. Recorde-se que o Senhor destina a parábola aos fariseus, e, por isso, ele tem a necessidade de falar-lhes servindo-se do contexto deles. Havia um livro apócrifo chamado Livro de Henoc, o qual era lido pelos fariseus do tempo de Jesus. Nele continham descrições (frutos da imaginação do autor, obviamente) acerca do chamado “seio de Abraão”, localizado nos subterrâneos da terra. Os que estivessem mais acima, seriam os privilegiados, e os que se encontrassem nas profundezas dessa mansão, os mais desgraçados.


Jesus, ainda se servindo das categorias teológicas dos fariseus estabelece bem as diferenças: Lázaro, que antes era um amaldiçoado, impuro, metáfora para o pecador, encontra-se, agora, na luz, junto do patriarca Abraão; torna-se, portanto, um bendito. O rico, bem de vida, abençoado com a riqueza, passa, então, para o tormento, a ausência da paz e de Deus. Mas é importante compreender que ele não se condenou por sua postura extravagante, mas pelo fato de não ter levado em consideração o pobre que se sentava em sua porta todo o dia. Foi a indiferença diante da situação de Lázaro que acentuou ainda mais a distância abissal entre eles. Eram próximos fisicamente, mas viviam em mundos distantes. Um grande abismo já existia entre eles. Abismo de indiferença frente às necessidades dos outros.

“Na região dos mortos, no meio dos tormentos, o rico levantou os olhos e viu de longe a Abraão, com Lázaro ao seu lado. Então gritou: 'Pai Abraão, tem piedade de mim! Manda Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque sofro muito nestas chamas” (vv.23-24). Agora, na hora do aperto, o rico se dá conta da existência de Lázaro. Mas Jesus mostra que o comportamento e a atitude da personagem não mudaram. Ela pensa em seus próprios interesses; nutre a mentalidade de que todos lhe devem obrigações, que tudo deve ser para si em primeiro lugar. E, pior ainda, como se não bastasse, concebe relações de domínio e submissão: “manda (ordena) que Lázaro molhe o dedo com água, e venha me refrescar!” Agora que se recordou de Lázaro, o quer somente para sanar as suas necessidades. Não suplica, pretende; não pede, manda. Aquele comportamento típico dos que se acham superpoderosos.

“Mas Abraão respondeu: Filho, lembra-te que tu recebeste teus bens durante a vida e Lázaro, por sua vez, os males. Agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado. E, além disso, há um grande abismo entre nós: por mais que alguém desejasse, não poderia passar daqui para junto de vós, e nem os daí poderiam atravessar até nós” (vv.25-26). Jesus fixa-se no diálogo entre Abraão e o rico. O patriarca denuncia então a atitude que levou o rico até aquele lugar: não dividiu seus bens; não partilhou; ignorou o pobre. Com isso, Jesus pretende dizer também para os fariseus que todo e qualquer tipo de divisão e de abismo que se cria e se alimenta no aqui e no agora, se prolonga depois. É um alerta para eles.

“Pai, eu te suplico, manda Lázaro à casa do meu pai, porque eu tenho cinco irmãos. Manda preveni-los, para que não venham também eles para este lugar de tormento” (vv. 27-28). Não pensa nos outros; olha para os seus, apenas. Não se abre a possibilidade de que o convite à uma mudança de vida e de mentalidade pudesse ser interessante a todos. Está fixado em seus cinco irmãos; em sua família. Quer somente para si. Isso basta! A resposta de Abraão na parábola é taxativa: “Eles têm Moisés e os Profetas, que os escutem!” (v.29). Atenção! Jesus, com essa fala do patriarca, chama a atenção para o fato de que Moisés e os profetas sempre se posicionaram em favor dos pobres. O primeiro deixou muito claro que no meio do povo não deveria existir necessitados. A não reproduzir os mesmos sistemas de morte e desigualdade vividos na escravidão do Egito. Já os profetas, sempre direcionavam suas pregações e denúncias contra os interesses egóicos dos ricos, que se apropriavam inclusive dos bens da gente simples, e chamavam a atenção do povo para o acolhimento aos pobres. Ainda sobre a expressão “Moisés e os profetas”, ela sintetiza toda a Sagrada Escritura, isto é, a Palavra deve ser escutada. Ela deve ser o norte para o discípulo do Reino.

O rico da parábola protesta uma vez mais, dizendo que se um morto voltar e advertir seus irmãos, talvez possam se converter e não passar pelo mesmo tormento. E eis a sentença final de Jesus dirigida aos fariseus: “Mas Abraão lhe disse: Se não escutam a Moisés, nem aos Profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos” (v.31). O Senhor denuncia a atitude dos doutores da Lei e dos fariseus: eles não escutam a Moisés e os profetas. Tampouco crerão na ressurreição dos mortos. Mas como compreender esse dito?

Enquanto não forem capazes de dividir e partilhar o pão com os famintos não conseguirão crer no Cristo ressuscitado, que no evangelho de Lucas se faz reconhecível no partir do Pão com os discípulos de Emaús (Lc 24). Somente quem é generoso em vida poderá fazer a experiência do Senhor Ressuscitado em sua existência.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP. 


REFLEXÃO PARA O XXV DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 16,1-13:

  


O evangelho deste vigésimo quinto domingo do tempo comum continua ambientado no contexto do caminho de Jesus com seus discípulos para a cidade de Jerusalém, onde viverá a consumação do seu ministério, com os eventos da paixão e morte na cruz. O texto lido hoje – Lc 16,1-13 – é considerado um dos ensinamentos mais difíceis e surpreendentes de Jesus, e até contraditório, pelas razões que mostraremos a seguir. Trata-se da chamada parábola do “administrador infiel” ou “desonesto” (vv. 1-8a), seguida de algumas sentenças de estilo sapiencial (vv. 8b-13), que visam explicar o sentido da parábola, tornando-a menos contraditória, pelo menos. A parábola é exclusiva do Evangelho de Lucas, enquanto parte das sentenças que a seguem encontram paralelismos no Evangelho de Mateus. A maioria dos estudiosos consideram esta parábola a mais difícil de todas as parábolas da Bíblia, pois, à primeira vista, Jesus parece apresentar um homem desonesto como a modelo a ser imitado pelos discípulos. Aqui, vale lembrar que o caminho, no Evangelho de Lucas, é o programa formativo de Jesus para seus discípulos, mais do que um percurso físico e geográfico. Geralmente, as parábolas propõem um personagem exemplar, um modelo a ser imitado pelos discípulos de Jesus, mas nesta de hoje nenhum dos personagens serve de paradigma: nem o patrão, nem o administrador, embora seja louvável a sua capacidade de tomar uma decisão acertada no momento mais crítico da vida.

 

Ainda a nível de contexto, é importante recordar que este texto faz parte de um capítulo todo dedicado à reflexão sobre o uso dos bens materiais e das riquezas. Trata-se do capítulo dezesseis de Lucas, que começa com a parábola do administrar infiel (vv. 1-8a) e termina com a do “pobre Lázaro e o rico avarento” (Lc 16,19-31). Isso mostra a importância que o tema do uso dos bens materiais tem na obra de Lucas. Como se vê, no programa formativo dos discípulos ele dedica um espaço bastante considerável a essa temática. Além da relevância do tema, esse dado revela as prováveis dificuldades da comunidade na vivência desta dimensão importante da vida cristã. E as duas parábolas recordadas são exclusivas do Evangelho de Lucas, o que vem a reforçar o quanto o respectivo evangelista se preocupou com essa dimensão. Ambas as parábolas são intercaladas por sentenças de efeito prático-exortativo em estilo sapiencial, que funcionam como interpretação da primeira parábola, a de hoje, e preparação para a segunda, que será lida na liturgia do próximo domingo.  Lucas é o evangelista que mais combate a concentração de riquezas, propondo a partilha e a solidariedade. Por isso, seu Evangelho é considerado o “evangelho dos pobres”. E no segundo volume de sua obra – Atos dos Apóstolos – ele continuará insistindo com o tema das riquezas e a necessidade de fazer bom uso delas, ensinando insistentemente que se deve abrir mão delas pelo bem da comunidade.

 

Assim, tendo já identificado o contexto da parábola, a catequese sobre o uso dos bens materiais e riquezas, podemos, logo de início, identificar os destinatários da mesma: os discípulos, como vem afirmado no texto: «Jesus dizia aos discípulos» (v. 1a). Na verdade, os destinatários principais dos ensinamentos de Jesus são sempre os discípulos, tanto aqueles de primeira hora quanto os do futuro, mesmo quando seus interlocutores no episódio narrado são outros personagens, incluindo até os fariseus e mestres da Lei, os tradicionais adversários. No entanto, quando um evangelista afirma explicitamente que Jesus está dirigindo um ensinamento diretamente aos seus discípulos, quer dizer que se trata de algo urgente, e, portanto, inadiável; e quando ele insiste com um mesmo tema, significa que esse tema é muito importante e, ao mesmo tempo, que os discípulos não estão assimilando bem, a ponto de ser necessário repetir diversas vezes e de diferentes maneiras aquilo que está sendo ensinado. Tudo isso se verifica quando se trata do cuidado com o uso dos bens materiais e das riquezas. Recordemos algumas ocasiões, ao longo do caminho, em que Jesus advertiu os discípulos sobre isto: na oração do Pai Nosso, ao recomendar que pedissem ao Pai apenas o necessário para cada dia (Lc 11,3); quando se negou a interferir em questões relacionadas à divisão de uma herança, contando, em seguida, a parábola do “rico insensato” (Lc 12,16-21); na apresentação das exigências para o seu seguimento, ao colocar a renúncia de todos os bens como condição para ser seu discípulo (Lc 14,33). Como se vê, há uma insistência de Jesus ao apresentar o tema do uso dos bens materiais e das riquezas, e isso se deve à resistência dos discípulos, que persistiam em fazer pouco caso com uma questão tão fundamental, a ponto de Jesus, por necessidade, tornar-se repetitivo.

 

Feitas as devidas considerações introdutórias, entramos diretamente no conteúdo da parábola, cujo enredo é sintetizado já no primeiro versículo: «Um homem rico tinha um administrador que foi acusado de esbanjar os seus bens» (v. 1). Embora se trate de uma parábola, alguns estudiosos acreditam que Jesus conhecesse histórias reais semelhantes a essa, pois casos desse tipo eram muito frequentes. Ora, como na época havia uma forte concentração de terras em poucas mãos, esse versículo inicial descreve uma situação muito comum. Geralmente, os proprietários possuíam grandes latifúndios e não tinham condições de administrarem sozinhos. Por isso, confiavam a administração a terceiros, dando como pagamento uma comissão nos rendimentos. O administrador (em grego: οἰκονόμος = oikônomos), cujo significado literal é “legislador da casa”, “aquele que cuida dos bens da casa” ou “regente da casa”. Desse termo deriva a palavra ecônomo, que designa aquele cuida da economia de uma determinada instituição ou repartição. No mundo antigo, sobretudo na Palestina, essa pessoa tinha total liberdade no gerenciamento dos negócios de uma pessoa ou de um grupo; isso significa que era uma pessoa que gozava de plena confiança do patrão, o que levava muitas vezes a abusos e corrupção. Porém, é interessante que a parábola não diz como o administrador esbanjava os bens do seu patrão. Diz apenas que ele esabanjava. E isso poderia acontecer de diversas maneiras, inclusive, ajudando aos mais necessitados, o que na ótica da economia e da cultura do acúmulo, ao contrário da lógica Reino de Deus, seria um modo de esbanjar.

 

Diante da acusação de esbanjar os bens que não lhe pertenciam, o destino do administrador não poderia ser outro, senão a destituição da sua função, ao ser chamado pelo patrão para prestar contas da administração. E é exatamente isso o que diz o texto: «Ele o chamou e lhe disse: “Que é isto que ouço a teu respeito? Presta contas da tua administração, pois já não podes mais administrar meus bens”» (v. 2). Parece que o próprio administrador aceita ser tratado como desonesto, pois não apresenta uma única justificativa, não dá explicação alguma e nem sequer pede perdão ou desculpas ao seu patrão, como mostra a sequência da história. A dúvida que se poderia suscitar se ele tinha sido desonesto mesmo parece ser esclarecida pelos fatos, inclusive pelo seu silêncio diante da acusação, o que soa como uma confissão de culpa. Com efeito, ele aceita passivamente a acusação, o que pode ser compreendido como reconhecimento de culpa. Chama a atenção o fato de que o patrão não apresenta nenhum dado concreto, mas julga o administrador apenas pelo que escutou a seu respeito, e logo decreta a demissão. É uma atitude arrogante, típica dos poderosos deste mundo. Por outro lado, também é significativo o fato de que esse mesmo patrão não decreta imediatamente uma punição ou castigo pelos prejuízos causados, mas apenas determina a demissão. Como proprietário e patrão, ele esperava apenas que seus bens fossem bem cuidados e lhe gerassem lucros. Não demonstra ser adepto de uma lógica punitiva. Isso revela um traço que o aproxima do Deus revelado por Jesus. Apesar disso, no entanto, esse patrão não pode ser identificado como imagem de Deus na parábola. O comportamento arrogante e a demissão baseada em rumores são atitudes que não se alinham com a essência de Deus, conforme revelada nos ensinamentos de Jesus.

 

Consciente da demissão, o administrador se preocupa imediatamente com o seu futuro, o que o leva a uma profunda reflexão, expressa no texto por um pequeno monólogo interior: «O administrador então começou a refletir: “o senhor vai me tirar a administração. Que vou fazer? Para cavar, não tenho forças; de mendigar, tenho vergonha. Ah, já sei o que fazer, para que alguém me receba em sua casa, quando eu for afastado da administração”» (vv. 3-4). O monólogo interior, conhecido também como solilóquio, era um refinado recurso literário, bastante utilizado na literatura antiga greco-romana e muito apreciado por Lucas, o único autor do Novo Testamento que o utiliza, um fato que confirma seu refino literário. A função deste recurso é, antes de tudo, revelar aspectos do caráter de um personagem; e o que se revela desse administrador é que se trata de um homem calculista e prudente, consciente de suas limitações e preocupado com o futuro. O medo do trabalho braçal e a vergonha de mendigar (v. 3) o levam a uma tomada de decisão firme e corajosa, própria de quem fez uma reflexão profunda. Inclusive, ele não nega a acusação de esbanjar os bens, não dá explicações e nem sequer pede perdão ao patrão, o que certamente não adiantaria muito. Isso demonstra que as acusações possuíam fundamento. Apesar de desonesto, o administrador era um homem reflexivo; sabia que o futuro se constrói no presente, ou seja, desde agora, e há decisões que não podem ser adiadas. E, no momento mais crucial da vida, ele chegou à conclusão de que o mais importante é investir em amizade, um “bem” do qual não serão exigidas prestações de contas, além de ser incorruptível, ao contrário do azeite e do trigo, por exemplo, que poderiam ser roubados ou perecer com o tempo.

 

Da reflexão do administrador, veio a decisão, e da decisão a atitude, como mostra a continuação da parábola: «Então ele chamou cada um dos que estavam devendo ao seu patrão. E perguntou ao primeiro: “Quanto deves ao meu patrão?” Ele respondeu: “Cem barris de óleo!” O administrador disse: “Pega a tua conta, senta-te, depressa, e escreve cinquenta!” Depois ele perguntou a outro: “E tu, quanto deves?” Ele respondeu: “Cem medidas de trigo”. O administrador disse: “Pega a tua conta e escreve oitenta”» (vv. 5-7). Temos aqui o centro da parábola. Ora, o sistema tributário da época era bastante abusivo, contrariando, inclusive, as leis do Antigo Testamento que proibiam a usura, ou seja, o empréstimo por juros (Ex 22,19; 25,36-37; etc.). As altas quantias que os devedores deviam ao patrão podiam ter sido aumentadas também por juros injustos, aplicados pelo próprio administrador, ao longo do tempo. Contudo, o foco aqui é a sua reflexão sobre o futuro e a tomada de decisões favoráveis. Ele partiu de um dilema: agradar ao patrão ou aos devedores? Pensando no futuro, preferiu a segunda opção e convidou os devedores a uma revisão nas contas. Também neste momento ele revela uma clara falta de honestidade e transparência, propondo que os próprios devedores adulteram suas contas, ao pedir que sejam eles mesmos a escrever a nova fatura, embora revele também uma certa benevolência e confiança, elementos indispensáveis para uma amizade duradoura e saudável. Com a redução da dívida, ele demonstra disposição para correr riscos pelos novos amigos, o que também é característico de uma amizade verdadeira.

 

Embora a parábola apresente apenas dois devedores, supõe-se que havia um número muito maior, devido às proporções e consequências do caso, a ponto de causar a sua demissão do patrão. Os dois casos descritos, um devedor de azeite e outro de trigo, ajudam a compreender que, mesmo se tratando de quantias muito grandes, se trata de produtos de subsistência e, embora de grande valor, eram necessidades primárias para a alimentação no dia-a-dia, o que vem a supor que os devedores eram pessoas pobres que se endividaram para garantir o pão cotidiano. O texto não esclarece se eram compradores dos produtos do patrão ou se eram arrendatários de terra e, por isso, deveriam devolver parte da produção ao dono da terra, o que também era uma prática muto comum, na época. O que se sabe é que eles deviam muito, e eram bens de necessidade básica. Textos proféticos do Antigo Testamento denunciam a escravização por dívidas. Muitas vezes, os pobres endividados eram escravizados e até transformados em mercadoria (Am 2,6; 8,6), quando não conseguiam pagar suas dívidas. Por isso, os anos jubilares eram tão importantes, comportavam também o perdão das dívidas e a libertação dos escravos. A revisão nas contas prova que o administrador fez uma opção clara: escolheu o lado dos mais fracos, dos endividados, tornando-se amigo deles (v. 9). Quanto ao favorecimento dos devedores, muitas interpretações afirmam que o administrador, com os supostos descontos de cinquenta por cento para um e vinte para o outro, estava apenas abrindo mão da sua desonesta comissão. Com total liberdade para gerenciar os negócios, os administradores costumavam cobrar valores mais altos e exigir comissões, como faziam também os cobradores de impostos.

 

É inegável que o administrador foi calculista e esperto, soube sair de uma situação que, aparentemente, não tinha saída. Tanto é que, no final, foi elogiado até mesmo pelo patrão, que apareceu no início da parábola como acusador: «E o senhor elogiou o administrador desonesto, porque ele agiu com esperteza» (v. 8a). Na verdade, bem mais do que esperteza, o termo que Lucas utiliza equivale a prudência (em grego: φρονίμως = fronímos), que é uma das qualidades do homem sábio, conforme a tradição bíblica. Daí, também a observação conclusiva de Jesus, na segunda parte do versículo: «Com efeito, os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do que os filhos da luz» (v. 8b). A expressão “filhos da luz” designa aqui, obviamente, os membros da comunidade. Embora rara no Novo Testamento, essa expressão era muito usada em comunidades judaicas do primeiro século, inclusive em Qumran. Aqui se contrapõem os membros da comunidade cristã aos de fora. Obviamente, nem Jesus e nem o evangelista querem que se reproduzam na comunidade as relações mercantilistas do império. Na verdade, ele está denunciando que, entre os cristãos, falta empenho e compromisso na edificação do Reino. Se os cristãos e cristãs se empenhassem na construção do Reino com o mesmo afinco com que os homens de negócios se empenham na obtenção de suas vantagens, o mundo seria diferente, com certeza. Não é um convite ao uso de práticas desonestas, tampouco ao proselitismo intolerante, obviamente, mas ao esforço contínuo para fazer o Reino de Deus acontecer, um estímulo à agilidade na reflexão e na ação em prol do Reino e suas exigências.

 

As sentenças que seguem à parábola são de caráter sapiencial e visam elucidar e reforçar o seu sentido, como acenamos na introdução. Na primeira delas, chama a atenção a recomendação de Jesus: «E eu vos digo: usai o dinheiro injusto para fazer amigos, pois quando acabar, eles vos receberão nas moradas eternas» (v. 9). Para Jesus, o dinheiro é sempre injusto porque através dele as pessoas se apossam do que deve pertencer a todos: os bens da criação, gerando divisão entre pobres e ricos, o que não corresponde aos planos de Deus, que criou o mundo para a igualdade e a fraternidade. A palavra grega que o evangelista emprega como correspondente a dinheiro (μαμωνα – mamona) era também o título de uma divindade cananeia, a quem se atribuíam a prosperidade e o enriquecimento, o que justifica a denúncia de Jesus e do evangelista de que o dinheiro é fonte de idolatria; porém, na impossibilidade de viver sem ele, que ao menos seja utilizado para coisas boas em favor do próximo. Assim, Jesus eleva a amizade à dignidade de mandamento na sua comunidade. É claro que Jesus não concebe a amizade como algo que possa ser comprado; apenas recomenda que tudo o que o ser humano disponha deve ser usado em prol de relações sinceras e amorosas com Deus e com o próximo. O administrador foi solidário com os endividados, usando o dinheiro injusto para fazer amigos, ou seja, preferiu bens que não passam, e a amizade é um destes bens eternos, ao aumento dos lucros do seu patrão.

 

A sequência das sentenças reforça a necessidade de uma característica imprescindível no discipulado, que é a fidelidade: «Quem é fiel nas pequenas coisas também é fiel nas grandes, e quem é injusto nas pequenas também é injusto nas grandes. Por isso, se vós não sois fiéis no uso do dinheiro injusto, quem vos confiará o verdadeiro bem? E se não sois fiéis no que é dos outros, quem vos dará aquilo que é vosso?» (vv. 10-12). Talvez essa seja a parte mais lógica e óbvia de todo o texto, ao mesmo tempo em que parece ser a mais contraditória, considerando o conjunto da parábola. O administrador foi infiel ao patrão, e por isso lhe foi tirada a administração; se tivesse fiel ao patrão, não teria amenizado os débitos dos devedores. Isso gera uma reflexão a mais: não resta dúvidas de que se deve cultivar a fidelidade, mas é importante ter clareza do lado ao qual se deve ser fiel. O conjunto das sentenças ensina que a fidelidade nas coisas de pouco valor habilita o ser humano a ser fiel também em coisas maiores. Antes de tudo, é a Deus que devemos ser fiéis. E fidelidade a Deus significa, na visão de Jesus, estar do lado dos pobres e necessitados, opção feita pelo administrador da parábola no momento mais decisivo da sua vida, quando preferiu amenizar a situação dos endividados ao invés de favorecer os lucros do patrão.

 

Como foi dito no início, as sentenças que seguem à parábola têm a função de explicá-la e torná-la menos contraditória. E o versículo conclusivo mostra isso, sendo, por isso, considerado o coração de todo o texto: «Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou odiará um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (v. 13).  A afirmação parte de um exemplo bem concreto: a impossibilidade de um servo trabalhar fielmente para dois senhores, ao mesmo tempo. É claro que o exemplo reflete a cultura da época. O servo, em questão, era o escravo, que servia incondicionalmente ao patrão, e por isso não era possível fazer o mesmo para dois, ao mesmo tempo. Deste exemplo conhecido por todos da época, Jesus mostra a incompatibilidade entre o serviço a Deus e ao dinheiro. O projeto do Reino de Deus é incompatível com a lógica do acúmulo e do mercado. Diante dessa incompatibilidade, o ser humano é obrigado a tomar uma decisão e optar por um ou outro. Deus e o dinheiro são apresentados como polos opostos, que vem personificados. O lado de Deus compreende amor, justiça, solidariedade, fraternidade, paz, serviço; o lado do dinheiro comporta orgulho, ódio, cobiça, inveja, violência, exploração, tudo o que é contrário ao Reino de Deus. Por isso, é incompatível servir aos dois.

 

O objetivo da parábola e das sentenças explicativas, portanto, é motivar os membros da comunidade a refletir e decidir de que lado pretendem estar. E por incrível que pareça, o administrador, mesmo desonesto, acaba sendo o exemplo de quem levou a sério esse ensinamento e escolheu um único senhor, diante das duas opções: ajudando seu patrão no acúmulo, estaria servindo ao dinheiro; como preferiu ajudar às pessoas endividadas, escolheu servir a Deus, mesmo inconscientemente. Do seu comportamento, o que serve de exemplo é ter tomado a decisão certa na hora em que não podia errar.

 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN