sábado, 27 de setembro de 2025

REFLEXÃO PARA O XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 16,19-31:

 


O evangelho deste domingo ainda se detém sobre o capítulo dezesseis, após parábola do administrador desonesto (Lc 16,1-13). Ao final, Jesus censura a postura dos fariseus (v.14), os quais zombavam de Seu ensinamento acerca da impossibilidade de servir à Deus e ao dinheiro, pois eram “amigos do dinheiro”. O texto proposto para a meditação já parte do v.19, mas ainda dirigido aos fariseus, com a parábola do rico e do pobre Lázaro.

Versículos antes, Jesus declarou a impossibilidade de um rico entrar no Reino, sendo mais fácil e possível um camelo passar pelo buraco da agulha (v.15). Afirmação que deve ser mantida na sua originalidade, isto é, a de provocar o ouvinte-leitor. No Reino de Deus, segundo perspectiva de Lucas, há lugar para todos, inclusive para os “senhores”, mas não para os ricos. Qual a diferença? O rico é aquele que tem e detém para si. O senhor é aquele que dá e partilha com os outros. Para o Jesus lucano, os ricos são considerados doentes terminais de egoísmo para os quais não existiria, então, esperança.

Nesse sentido, Jesus termina a seção contando a parábola do homem rico e do pobre Lázaro. “Havia um homem rico, que se vestia com roupas finas e elegantes e fazia festas esplêndidas todos os dias” (v.19). Note-se como o evangelista consegue, ao recuperar o ensinamento do Mestre, captar bem as dinâmicas psicológicas do rico. Ele exterioriza aquilo que lhe falta internamente através das roupas finas. Revela, ainda, a partir do detalhe dos banquetes dados cotidianamente, a fome, que nada mais seria do que a ausência de algo que pudesse preenche-lo. Ou seja, este rico é um homem completamente vazio e raso, superficial e pobre; que através das extravagancias revela aquilo que mais lhe falta. É pobre interiormente e necessita mostrar sua riqueza através da exterioridade. Necessita mostrar que tem algo. Não é por menos que Jesus direciona a parábola, em primeiro lugar, para os fariseus.

Quem muito precisa mostrar, aparentar, ostentar e fazer é porque muito lhe falta. Ou pode faltar tudo. Este dinamismo nada mais é do que uma forma/atitude de compensação. Com isso, perde o senso da realidade a sua volta. Não consegue enxergar as reais necessidades das pessoas que estão ao seu lado. Miram e projetam-se a si mesmos.

A outra personagem, que, pela primeira vez no ensinamento em parábolas de Jesus recebe nome, é o pobre: Lázaro (hbr. “Deus ajuda”). Muita atenção na forma em que ele é descrito por Jesus: “um pobre (...), cheio de feridas, estava no chão à porta do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E, além disso, vinham os cachorros lamber suas feridas” (v.20-21). Lázaro é pobre, está coberto de feridas, e vive das migalhas – das eventuais sobras – que caiam da mesa do rico. Conforme a mentalidade da época, sua descrição corresponde a de um pecador. A pobreza e enfermidade (estar coberto de feridas) eram tidas como consequências do pecado cometido. Chama mais ainda a atenção, o fato dos cães que se aproximavam e lambiam suas feridas. Numa primeira análise, é possível pensar que a saliva dos cães servisse de curativo para as feridas do pobre Lázaro. Mas é verdade que também os cachorros eram tidos como animais impuros. Jesus carrega a mão ao descrever a condição deste pobre: impuro por sua pobreza e enfermidade, a ponto de atrair para si mais impurezas, simbolizadas pelas figuras dos cães. Talvez o exagero narrativo seja mais próprio do evangelista que gosta do recurso da hipérbole.

A intenção da parábola é mostrar que ambos vivem em mundos diferentes e separados. Todavia, o destino existencial dos dois foi o mesmo: morreram. Jesus tem uma perspicácia tremenda que o evangelista consegue captar e trabalhar ao seu modo, pois no v.22 se encontra a informação: “Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado”. Lázaro morre e vai para junto de Abraão carregado pelos mensageiros celestiais; do rico, ao contrário, só se diz que foi enterrado. Recorde-se que o Senhor destina a parábola aos fariseus, e, por isso, ele tem a necessidade de falar-lhes servindo-se do contexto deles. Havia um livro apócrifo chamado Livro de Henoc, o qual era lido pelos fariseus do tempo de Jesus. Nele continham descrições (frutos da imaginação do autor, obviamente) acerca do chamado “seio de Abraão”, localizado nos subterrâneos da terra. Os que estivessem mais acima, seriam os privilegiados, e os que se encontrassem nas profundezas dessa mansão, os mais desgraçados.


Jesus, ainda se servindo das categorias teológicas dos fariseus estabelece bem as diferenças: Lázaro, que antes era um amaldiçoado, impuro, metáfora para o pecador, encontra-se, agora, na luz, junto do patriarca Abraão; torna-se, portanto, um bendito. O rico, bem de vida, abençoado com a riqueza, passa, então, para o tormento, a ausência da paz e de Deus. Mas é importante compreender que ele não se condenou por sua postura extravagante, mas pelo fato de não ter levado em consideração o pobre que se sentava em sua porta todo o dia. Foi a indiferença diante da situação de Lázaro que acentuou ainda mais a distância abissal entre eles. Eram próximos fisicamente, mas viviam em mundos distantes. Um grande abismo já existia entre eles. Abismo de indiferença frente às necessidades dos outros.

“Na região dos mortos, no meio dos tormentos, o rico levantou os olhos e viu de longe a Abraão, com Lázaro ao seu lado. Então gritou: 'Pai Abraão, tem piedade de mim! Manda Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque sofro muito nestas chamas” (vv.23-24). Agora, na hora do aperto, o rico se dá conta da existência de Lázaro. Mas Jesus mostra que o comportamento e a atitude da personagem não mudaram. Ela pensa em seus próprios interesses; nutre a mentalidade de que todos lhe devem obrigações, que tudo deve ser para si em primeiro lugar. E, pior ainda, como se não bastasse, concebe relações de domínio e submissão: “manda (ordena) que Lázaro molhe o dedo com água, e venha me refrescar!” Agora que se recordou de Lázaro, o quer somente para sanar as suas necessidades. Não suplica, pretende; não pede, manda. Aquele comportamento típico dos que se acham superpoderosos.

“Mas Abraão respondeu: Filho, lembra-te que tu recebeste teus bens durante a vida e Lázaro, por sua vez, os males. Agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado. E, além disso, há um grande abismo entre nós: por mais que alguém desejasse, não poderia passar daqui para junto de vós, e nem os daí poderiam atravessar até nós” (vv.25-26). Jesus fixa-se no diálogo entre Abraão e o rico. O patriarca denuncia então a atitude que levou o rico até aquele lugar: não dividiu seus bens; não partilhou; ignorou o pobre. Com isso, Jesus pretende dizer também para os fariseus que todo e qualquer tipo de divisão e de abismo que se cria e se alimenta no aqui e no agora, se prolonga depois. É um alerta para eles.

“Pai, eu te suplico, manda Lázaro à casa do meu pai, porque eu tenho cinco irmãos. Manda preveni-los, para que não venham também eles para este lugar de tormento” (vv. 27-28). Não pensa nos outros; olha para os seus, apenas. Não se abre a possibilidade de que o convite à uma mudança de vida e de mentalidade pudesse ser interessante a todos. Está fixado em seus cinco irmãos; em sua família. Quer somente para si. Isso basta! A resposta de Abraão na parábola é taxativa: “Eles têm Moisés e os Profetas, que os escutem!” (v.29). Atenção! Jesus, com essa fala do patriarca, chama a atenção para o fato de que Moisés e os profetas sempre se posicionaram em favor dos pobres. O primeiro deixou muito claro que no meio do povo não deveria existir necessitados. A não reproduzir os mesmos sistemas de morte e desigualdade vividos na escravidão do Egito. Já os profetas, sempre direcionavam suas pregações e denúncias contra os interesses egóicos dos ricos, que se apropriavam inclusive dos bens da gente simples, e chamavam a atenção do povo para o acolhimento aos pobres. Ainda sobre a expressão “Moisés e os profetas”, ela sintetiza toda a Sagrada Escritura, isto é, a Palavra deve ser escutada. Ela deve ser o norte para o discípulo do Reino.

O rico da parábola protesta uma vez mais, dizendo que se um morto voltar e advertir seus irmãos, talvez possam se converter e não passar pelo mesmo tormento. E eis a sentença final de Jesus dirigida aos fariseus: “Mas Abraão lhe disse: Se não escutam a Moisés, nem aos Profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos” (v.31). O Senhor denuncia a atitude dos doutores da Lei e dos fariseus: eles não escutam a Moisés e os profetas. Tampouco crerão na ressurreição dos mortos. Mas como compreender esse dito?

Enquanto não forem capazes de dividir e partilhar o pão com os famintos não conseguirão crer no Cristo ressuscitado, que no evangelho de Lucas se faz reconhecível no partir do Pão com os discípulos de Emaús (Lc 24). Somente quem é generoso em vida poderá fazer a experiência do Senhor Ressuscitado em sua existência.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP. 


REFLEXÃO PARA O XXV DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 16,1-13:

  


O evangelho deste vigésimo quinto domingo do tempo comum continua ambientado no contexto do caminho de Jesus com seus discípulos para a cidade de Jerusalém, onde viverá a consumação do seu ministério, com os eventos da paixão e morte na cruz. O texto lido hoje – Lc 16,1-13 – é considerado um dos ensinamentos mais difíceis e surpreendentes de Jesus, e até contraditório, pelas razões que mostraremos a seguir. Trata-se da chamada parábola do “administrador infiel” ou “desonesto” (vv. 1-8a), seguida de algumas sentenças de estilo sapiencial (vv. 8b-13), que visam explicar o sentido da parábola, tornando-a menos contraditória, pelo menos. A parábola é exclusiva do Evangelho de Lucas, enquanto parte das sentenças que a seguem encontram paralelismos no Evangelho de Mateus. A maioria dos estudiosos consideram esta parábola a mais difícil de todas as parábolas da Bíblia, pois, à primeira vista, Jesus parece apresentar um homem desonesto como a modelo a ser imitado pelos discípulos. Aqui, vale lembrar que o caminho, no Evangelho de Lucas, é o programa formativo de Jesus para seus discípulos, mais do que um percurso físico e geográfico. Geralmente, as parábolas propõem um personagem exemplar, um modelo a ser imitado pelos discípulos de Jesus, mas nesta de hoje nenhum dos personagens serve de paradigma: nem o patrão, nem o administrador, embora seja louvável a sua capacidade de tomar uma decisão acertada no momento mais crítico da vida.

 

Ainda a nível de contexto, é importante recordar que este texto faz parte de um capítulo todo dedicado à reflexão sobre o uso dos bens materiais e das riquezas. Trata-se do capítulo dezesseis de Lucas, que começa com a parábola do administrar infiel (vv. 1-8a) e termina com a do “pobre Lázaro e o rico avarento” (Lc 16,19-31). Isso mostra a importância que o tema do uso dos bens materiais tem na obra de Lucas. Como se vê, no programa formativo dos discípulos ele dedica um espaço bastante considerável a essa temática. Além da relevância do tema, esse dado revela as prováveis dificuldades da comunidade na vivência desta dimensão importante da vida cristã. E as duas parábolas recordadas são exclusivas do Evangelho de Lucas, o que vem a reforçar o quanto o respectivo evangelista se preocupou com essa dimensão. Ambas as parábolas são intercaladas por sentenças de efeito prático-exortativo em estilo sapiencial, que funcionam como interpretação da primeira parábola, a de hoje, e preparação para a segunda, que será lida na liturgia do próximo domingo.  Lucas é o evangelista que mais combate a concentração de riquezas, propondo a partilha e a solidariedade. Por isso, seu Evangelho é considerado o “evangelho dos pobres”. E no segundo volume de sua obra – Atos dos Apóstolos – ele continuará insistindo com o tema das riquezas e a necessidade de fazer bom uso delas, ensinando insistentemente que se deve abrir mão delas pelo bem da comunidade.

 

Assim, tendo já identificado o contexto da parábola, a catequese sobre o uso dos bens materiais e riquezas, podemos, logo de início, identificar os destinatários da mesma: os discípulos, como vem afirmado no texto: «Jesus dizia aos discípulos» (v. 1a). Na verdade, os destinatários principais dos ensinamentos de Jesus são sempre os discípulos, tanto aqueles de primeira hora quanto os do futuro, mesmo quando seus interlocutores no episódio narrado são outros personagens, incluindo até os fariseus e mestres da Lei, os tradicionais adversários. No entanto, quando um evangelista afirma explicitamente que Jesus está dirigindo um ensinamento diretamente aos seus discípulos, quer dizer que se trata de algo urgente, e, portanto, inadiável; e quando ele insiste com um mesmo tema, significa que esse tema é muito importante e, ao mesmo tempo, que os discípulos não estão assimilando bem, a ponto de ser necessário repetir diversas vezes e de diferentes maneiras aquilo que está sendo ensinado. Tudo isso se verifica quando se trata do cuidado com o uso dos bens materiais e das riquezas. Recordemos algumas ocasiões, ao longo do caminho, em que Jesus advertiu os discípulos sobre isto: na oração do Pai Nosso, ao recomendar que pedissem ao Pai apenas o necessário para cada dia (Lc 11,3); quando se negou a interferir em questões relacionadas à divisão de uma herança, contando, em seguida, a parábola do “rico insensato” (Lc 12,16-21); na apresentação das exigências para o seu seguimento, ao colocar a renúncia de todos os bens como condição para ser seu discípulo (Lc 14,33). Como se vê, há uma insistência de Jesus ao apresentar o tema do uso dos bens materiais e das riquezas, e isso se deve à resistência dos discípulos, que persistiam em fazer pouco caso com uma questão tão fundamental, a ponto de Jesus, por necessidade, tornar-se repetitivo.

 

Feitas as devidas considerações introdutórias, entramos diretamente no conteúdo da parábola, cujo enredo é sintetizado já no primeiro versículo: «Um homem rico tinha um administrador que foi acusado de esbanjar os seus bens» (v. 1). Embora se trate de uma parábola, alguns estudiosos acreditam que Jesus conhecesse histórias reais semelhantes a essa, pois casos desse tipo eram muito frequentes. Ora, como na época havia uma forte concentração de terras em poucas mãos, esse versículo inicial descreve uma situação muito comum. Geralmente, os proprietários possuíam grandes latifúndios e não tinham condições de administrarem sozinhos. Por isso, confiavam a administração a terceiros, dando como pagamento uma comissão nos rendimentos. O administrador (em grego: οἰκονόμος = oikônomos), cujo significado literal é “legislador da casa”, “aquele que cuida dos bens da casa” ou “regente da casa”. Desse termo deriva a palavra ecônomo, que designa aquele cuida da economia de uma determinada instituição ou repartição. No mundo antigo, sobretudo na Palestina, essa pessoa tinha total liberdade no gerenciamento dos negócios de uma pessoa ou de um grupo; isso significa que era uma pessoa que gozava de plena confiança do patrão, o que levava muitas vezes a abusos e corrupção. Porém, é interessante que a parábola não diz como o administrador esbanjava os bens do seu patrão. Diz apenas que ele esabanjava. E isso poderia acontecer de diversas maneiras, inclusive, ajudando aos mais necessitados, o que na ótica da economia e da cultura do acúmulo, ao contrário da lógica Reino de Deus, seria um modo de esbanjar.

 

Diante da acusação de esbanjar os bens que não lhe pertenciam, o destino do administrador não poderia ser outro, senão a destituição da sua função, ao ser chamado pelo patrão para prestar contas da administração. E é exatamente isso o que diz o texto: «Ele o chamou e lhe disse: “Que é isto que ouço a teu respeito? Presta contas da tua administração, pois já não podes mais administrar meus bens”» (v. 2). Parece que o próprio administrador aceita ser tratado como desonesto, pois não apresenta uma única justificativa, não dá explicação alguma e nem sequer pede perdão ou desculpas ao seu patrão, como mostra a sequência da história. A dúvida que se poderia suscitar se ele tinha sido desonesto mesmo parece ser esclarecida pelos fatos, inclusive pelo seu silêncio diante da acusação, o que soa como uma confissão de culpa. Com efeito, ele aceita passivamente a acusação, o que pode ser compreendido como reconhecimento de culpa. Chama a atenção o fato de que o patrão não apresenta nenhum dado concreto, mas julga o administrador apenas pelo que escutou a seu respeito, e logo decreta a demissão. É uma atitude arrogante, típica dos poderosos deste mundo. Por outro lado, também é significativo o fato de que esse mesmo patrão não decreta imediatamente uma punição ou castigo pelos prejuízos causados, mas apenas determina a demissão. Como proprietário e patrão, ele esperava apenas que seus bens fossem bem cuidados e lhe gerassem lucros. Não demonstra ser adepto de uma lógica punitiva. Isso revela um traço que o aproxima do Deus revelado por Jesus. Apesar disso, no entanto, esse patrão não pode ser identificado como imagem de Deus na parábola. O comportamento arrogante e a demissão baseada em rumores são atitudes que não se alinham com a essência de Deus, conforme revelada nos ensinamentos de Jesus.

 

Consciente da demissão, o administrador se preocupa imediatamente com o seu futuro, o que o leva a uma profunda reflexão, expressa no texto por um pequeno monólogo interior: «O administrador então começou a refletir: “o senhor vai me tirar a administração. Que vou fazer? Para cavar, não tenho forças; de mendigar, tenho vergonha. Ah, já sei o que fazer, para que alguém me receba em sua casa, quando eu for afastado da administração”» (vv. 3-4). O monólogo interior, conhecido também como solilóquio, era um refinado recurso literário, bastante utilizado na literatura antiga greco-romana e muito apreciado por Lucas, o único autor do Novo Testamento que o utiliza, um fato que confirma seu refino literário. A função deste recurso é, antes de tudo, revelar aspectos do caráter de um personagem; e o que se revela desse administrador é que se trata de um homem calculista e prudente, consciente de suas limitações e preocupado com o futuro. O medo do trabalho braçal e a vergonha de mendigar (v. 3) o levam a uma tomada de decisão firme e corajosa, própria de quem fez uma reflexão profunda. Inclusive, ele não nega a acusação de esbanjar os bens, não dá explicações e nem sequer pede perdão ao patrão, o que certamente não adiantaria muito. Isso demonstra que as acusações possuíam fundamento. Apesar de desonesto, o administrador era um homem reflexivo; sabia que o futuro se constrói no presente, ou seja, desde agora, e há decisões que não podem ser adiadas. E, no momento mais crucial da vida, ele chegou à conclusão de que o mais importante é investir em amizade, um “bem” do qual não serão exigidas prestações de contas, além de ser incorruptível, ao contrário do azeite e do trigo, por exemplo, que poderiam ser roubados ou perecer com o tempo.

 

Da reflexão do administrador, veio a decisão, e da decisão a atitude, como mostra a continuação da parábola: «Então ele chamou cada um dos que estavam devendo ao seu patrão. E perguntou ao primeiro: “Quanto deves ao meu patrão?” Ele respondeu: “Cem barris de óleo!” O administrador disse: “Pega a tua conta, senta-te, depressa, e escreve cinquenta!” Depois ele perguntou a outro: “E tu, quanto deves?” Ele respondeu: “Cem medidas de trigo”. O administrador disse: “Pega a tua conta e escreve oitenta”» (vv. 5-7). Temos aqui o centro da parábola. Ora, o sistema tributário da época era bastante abusivo, contrariando, inclusive, as leis do Antigo Testamento que proibiam a usura, ou seja, o empréstimo por juros (Ex 22,19; 25,36-37; etc.). As altas quantias que os devedores deviam ao patrão podiam ter sido aumentadas também por juros injustos, aplicados pelo próprio administrador, ao longo do tempo. Contudo, o foco aqui é a sua reflexão sobre o futuro e a tomada de decisões favoráveis. Ele partiu de um dilema: agradar ao patrão ou aos devedores? Pensando no futuro, preferiu a segunda opção e convidou os devedores a uma revisão nas contas. Também neste momento ele revela uma clara falta de honestidade e transparência, propondo que os próprios devedores adulteram suas contas, ao pedir que sejam eles mesmos a escrever a nova fatura, embora revele também uma certa benevolência e confiança, elementos indispensáveis para uma amizade duradoura e saudável. Com a redução da dívida, ele demonstra disposição para correr riscos pelos novos amigos, o que também é característico de uma amizade verdadeira.

 

Embora a parábola apresente apenas dois devedores, supõe-se que havia um número muito maior, devido às proporções e consequências do caso, a ponto de causar a sua demissão do patrão. Os dois casos descritos, um devedor de azeite e outro de trigo, ajudam a compreender que, mesmo se tratando de quantias muito grandes, se trata de produtos de subsistência e, embora de grande valor, eram necessidades primárias para a alimentação no dia-a-dia, o que vem a supor que os devedores eram pessoas pobres que se endividaram para garantir o pão cotidiano. O texto não esclarece se eram compradores dos produtos do patrão ou se eram arrendatários de terra e, por isso, deveriam devolver parte da produção ao dono da terra, o que também era uma prática muto comum, na época. O que se sabe é que eles deviam muito, e eram bens de necessidade básica. Textos proféticos do Antigo Testamento denunciam a escravização por dívidas. Muitas vezes, os pobres endividados eram escravizados e até transformados em mercadoria (Am 2,6; 8,6), quando não conseguiam pagar suas dívidas. Por isso, os anos jubilares eram tão importantes, comportavam também o perdão das dívidas e a libertação dos escravos. A revisão nas contas prova que o administrador fez uma opção clara: escolheu o lado dos mais fracos, dos endividados, tornando-se amigo deles (v. 9). Quanto ao favorecimento dos devedores, muitas interpretações afirmam que o administrador, com os supostos descontos de cinquenta por cento para um e vinte para o outro, estava apenas abrindo mão da sua desonesta comissão. Com total liberdade para gerenciar os negócios, os administradores costumavam cobrar valores mais altos e exigir comissões, como faziam também os cobradores de impostos.

 

É inegável que o administrador foi calculista e esperto, soube sair de uma situação que, aparentemente, não tinha saída. Tanto é que, no final, foi elogiado até mesmo pelo patrão, que apareceu no início da parábola como acusador: «E o senhor elogiou o administrador desonesto, porque ele agiu com esperteza» (v. 8a). Na verdade, bem mais do que esperteza, o termo que Lucas utiliza equivale a prudência (em grego: φρονίμως = fronímos), que é uma das qualidades do homem sábio, conforme a tradição bíblica. Daí, também a observação conclusiva de Jesus, na segunda parte do versículo: «Com efeito, os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do que os filhos da luz» (v. 8b). A expressão “filhos da luz” designa aqui, obviamente, os membros da comunidade. Embora rara no Novo Testamento, essa expressão era muito usada em comunidades judaicas do primeiro século, inclusive em Qumran. Aqui se contrapõem os membros da comunidade cristã aos de fora. Obviamente, nem Jesus e nem o evangelista querem que se reproduzam na comunidade as relações mercantilistas do império. Na verdade, ele está denunciando que, entre os cristãos, falta empenho e compromisso na edificação do Reino. Se os cristãos e cristãs se empenhassem na construção do Reino com o mesmo afinco com que os homens de negócios se empenham na obtenção de suas vantagens, o mundo seria diferente, com certeza. Não é um convite ao uso de práticas desonestas, tampouco ao proselitismo intolerante, obviamente, mas ao esforço contínuo para fazer o Reino de Deus acontecer, um estímulo à agilidade na reflexão e na ação em prol do Reino e suas exigências.

 

As sentenças que seguem à parábola são de caráter sapiencial e visam elucidar e reforçar o seu sentido, como acenamos na introdução. Na primeira delas, chama a atenção a recomendação de Jesus: «E eu vos digo: usai o dinheiro injusto para fazer amigos, pois quando acabar, eles vos receberão nas moradas eternas» (v. 9). Para Jesus, o dinheiro é sempre injusto porque através dele as pessoas se apossam do que deve pertencer a todos: os bens da criação, gerando divisão entre pobres e ricos, o que não corresponde aos planos de Deus, que criou o mundo para a igualdade e a fraternidade. A palavra grega que o evangelista emprega como correspondente a dinheiro (μαμωνα – mamona) era também o título de uma divindade cananeia, a quem se atribuíam a prosperidade e o enriquecimento, o que justifica a denúncia de Jesus e do evangelista de que o dinheiro é fonte de idolatria; porém, na impossibilidade de viver sem ele, que ao menos seja utilizado para coisas boas em favor do próximo. Assim, Jesus eleva a amizade à dignidade de mandamento na sua comunidade. É claro que Jesus não concebe a amizade como algo que possa ser comprado; apenas recomenda que tudo o que o ser humano disponha deve ser usado em prol de relações sinceras e amorosas com Deus e com o próximo. O administrador foi solidário com os endividados, usando o dinheiro injusto para fazer amigos, ou seja, preferiu bens que não passam, e a amizade é um destes bens eternos, ao aumento dos lucros do seu patrão.

 

A sequência das sentenças reforça a necessidade de uma característica imprescindível no discipulado, que é a fidelidade: «Quem é fiel nas pequenas coisas também é fiel nas grandes, e quem é injusto nas pequenas também é injusto nas grandes. Por isso, se vós não sois fiéis no uso do dinheiro injusto, quem vos confiará o verdadeiro bem? E se não sois fiéis no que é dos outros, quem vos dará aquilo que é vosso?» (vv. 10-12). Talvez essa seja a parte mais lógica e óbvia de todo o texto, ao mesmo tempo em que parece ser a mais contraditória, considerando o conjunto da parábola. O administrador foi infiel ao patrão, e por isso lhe foi tirada a administração; se tivesse fiel ao patrão, não teria amenizado os débitos dos devedores. Isso gera uma reflexão a mais: não resta dúvidas de que se deve cultivar a fidelidade, mas é importante ter clareza do lado ao qual se deve ser fiel. O conjunto das sentenças ensina que a fidelidade nas coisas de pouco valor habilita o ser humano a ser fiel também em coisas maiores. Antes de tudo, é a Deus que devemos ser fiéis. E fidelidade a Deus significa, na visão de Jesus, estar do lado dos pobres e necessitados, opção feita pelo administrador da parábola no momento mais decisivo da sua vida, quando preferiu amenizar a situação dos endividados ao invés de favorecer os lucros do patrão.

 

Como foi dito no início, as sentenças que seguem à parábola têm a função de explicá-la e torná-la menos contraditória. E o versículo conclusivo mostra isso, sendo, por isso, considerado o coração de todo o texto: «Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou odiará um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (v. 13).  A afirmação parte de um exemplo bem concreto: a impossibilidade de um servo trabalhar fielmente para dois senhores, ao mesmo tempo. É claro que o exemplo reflete a cultura da época. O servo, em questão, era o escravo, que servia incondicionalmente ao patrão, e por isso não era possível fazer o mesmo para dois, ao mesmo tempo. Deste exemplo conhecido por todos da época, Jesus mostra a incompatibilidade entre o serviço a Deus e ao dinheiro. O projeto do Reino de Deus é incompatível com a lógica do acúmulo e do mercado. Diante dessa incompatibilidade, o ser humano é obrigado a tomar uma decisão e optar por um ou outro. Deus e o dinheiro são apresentados como polos opostos, que vem personificados. O lado de Deus compreende amor, justiça, solidariedade, fraternidade, paz, serviço; o lado do dinheiro comporta orgulho, ódio, cobiça, inveja, violência, exploração, tudo o que é contrário ao Reino de Deus. Por isso, é incompatível servir aos dois.

 

O objetivo da parábola e das sentenças explicativas, portanto, é motivar os membros da comunidade a refletir e decidir de que lado pretendem estar. E por incrível que pareça, o administrador, mesmo desonesto, acaba sendo o exemplo de quem levou a sério esse ensinamento e escolheu um único senhor, diante das duas opções: ajudando seu patrão no acúmulo, estaria servindo ao dinheiro; como preferiu ajudar às pessoas endividadas, escolheu servir a Deus, mesmo inconscientemente. Do seu comportamento, o que serve de exemplo é ter tomado a decisão certa na hora em que não podia errar.

 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O XXIV DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 15,1-32:

 


A liturgia do XXIV apresenta o coração do evangelho segundo Lucas, o capítulo quinze, o qual contém as parábolas da misericórdia. Dos versículos 1-10, o evangelista recolhe dois ensinamentos que ilustram o agir misericordioso do Deus que Jesus chama de Pai: a ovelha e a moeda perdida. Ambas dão ênfase à alegria de divina pelo encontro tanto da ovelha como da moeda que estavam perdidas, metáforas para as pessoas que se afastaram do projeto do Reino. Diante delas, Deus age com misericórdia. A parábola que coroa esta seção é a do Pai misericordioso, de 12-32 (comumente conhecida como a do “filho pródigo”). Este conjunto de ensinamentos é original de Lucas, e ele o conservou da chamada fonte dos ditos (Fonte Q). O autor do evangelho, recolhendo o ensinamento de Jesus, põe ênfase no agir do Pai nas três parábolas. E a temática da perda, reencontro e da festa aparece nas três.

O evangelho segundo Lucas é conhecido como o evangelho da misericórdia. Para ele, Jesus é a expressão da misericórdia de Deus. Todavia, uma  misericórdia difícil de ser assimilada pelos que agiam pelo legalismo, individualismo e autoritarismo: os chefes do povo. Eles demonstram resistências diante de Seu ensino. Por isso, as parábolas são dirigidas, em primeiro lugar, a eles, visando provoca-los, chamar-lhes a atenção e propor lhes uma mudança de mentalidade. Mas torna-se tarefa difícil mudar a mentalidade de quem se encontra arraigado nas estruturas de domínio, de poder e de morte.

O capítulo quinze situa-se no contexto da viagem de subida de Jesus para Jerusalém. Ele possui uma finalidade, que é a de ensinar o discípulo acerca da misericórdia de Deus. Neste sentido, o leitor-discípulo, através desta cena deverá aprender como agir na realidade, na história e nas relações humanas: assimilar o agir de Deus que é misericordioso.

O evangelista nos dá uma informação inicial: “Os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para o escutar” (v.1). Por publicanos entenda-se os cobradores de impostos, os quais eram judeus que trabalhavam para o Império na coletoria dos impostos de sua própria gente. Eram considerados pecadores e traidores públicos; inimigos do povo. E, também os pecadores, e, por isso, pessoas que se encontravam afastadas do amor e do projeto de Deus. Ambos representam a humanidade sofredora, marcada pelo pecado. Ora, eles escutam a voz do Senhor e este se lhes faz próximo. É caro a Lucas o tema da salvação universal.

No v.2, Lucas nos mostra os antagonistas. Os chefes religiosos do povo, com atitudes e mentalidades diametralmente opostas às dos publicanos e pecadores: “Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus. 'Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles”. A atitude deles é, ao mesmo tempo, o fator chave que faz com que se dê o ensinamento em parábolas. Elas se revelarão antídotos para o comportamento e pensamento destas pessoas perfeitinhas.

Interessante, eles nem mencionam o nome de Jesus; tratam-no como “este homem”, como que desdenhando e recusando dele. Mais ainda, criticam a atitude de tomar refeição com este grupo de pessoas. E é muito significativo que Jesus aceite fazer refeições com eles, pois eram elas para a sociedade do tempo Jesus, bem como ao interno da tradição religiosa judaica, um momento privilegiado para se fazer experiência com a vida de alguém; para se estabelecer relações interpessoais; para se firmar um propósito de comunhão.

Jesus, ao fazer refeição com os excluídos quer estabelecer com estes uma relação e comunicar-lhes a misericórdia e o amor do Pai. Isso desestabiliza os que detém o poder religioso. Por isso, o Senhor se torna passível de críticas e de descrédito.

As duas primeiras parábolas têm a função didática de preparar a terceira, mas nem por isso são privadas de valor. Na primeira (vv. 3-7), da “ovelha perdida e reencontrada”, o mestre inicia: “Se um de vós tem cem ovelhas e perde uma, não deixa as noventa e nove no deserto, vai atrás daquela que se perdeu, até encontrá-la? Quando a encontra, coloca-a nos ombros com alegria, e, chegando a casa, reúne os amigos e vizinhos, e diz: Alegrai-vos comigo! Encontrei a minha ovelha que estava perdida! Eu vos digo: Assim haverá no céu mais alegria por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão”. Elementos muito tradicionais e comuns à tradição cultural do povo Israel emergem na primeira parábola: o pastor, a ovelha e o rebanho. Uma constatação importante: a ovelha é chamada de perdida, diferentemente da extraviada do evangelho de Mateus (Mt 18). Há diferenças.

A ovelha perdida simboliza a pessoa que livremente toma outro caminho e se afasta do projeto de Deus. A extraviada é aquela sai ou é tirada do projeto de Deus por interferência ou influência de terceiros. Isso posto, chama a atenção, agora, a atitude do pastor: o cuidado para com a ovelha perdida. Ele deixa as noventa e nove no deserto (v. 4) para ir atrás daquela, correndo inclusive o risco de colocar as que ficaram no deserto em perigo; isso não significa que o pastor as amasse menos; quer dizer que o amor comporta riscos. E, para Deus, simbolizado pela imagem do pastor, as pessoas não são números, mas cada um é importante. Não se pode pensar na quantidade.

Quem ama intensamente arrisca-se, como o pastor arriscou perder as noventa e nove para recuperar aquela que se perdeu. Sua atitude é ainda mais paradigmática, pois ele a carrega nos ombros, numa demonstração extraordinária e de amor e cuidado. Esta é a primeira ilustração do agir de Deus através de Jesus.

A segunda parábola (vv. 8-10) é a da “moeda perdida”: “E se uma mulher tem dez moedas de prata e perde uma, não acende uma lâmpada, varre a casa e a procura cuidadosamente, até encontrá-la? Quando a encontra, reúne as amigas e vizinhas, e diz: 'Alegrai-vos comigo! Encontrei a moeda que tinha perdido!' Por isso, eu vos digo, haverá alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte". Deus é apresentado a partir da figura de uma mulher. Talvez, Lucas queira enfatizar ainda mais o protagonismo feminino ao interno de sua comunidade, e, nesse sentido, emitir uma advertência para as comunidades cristãs em todos os tempos. A parábola descreve uma mulher ativa que preside, inclusive, a economia da casa.

A mulher serve de imagem para Deus e a casa serve de símbolo para a realidade do Reino. Através da atitude da mulher, Jesus e Lucas desejam mostrar que neste projeto (Reinoi/casa) não se permite que ninguém esteja perdido (a moeda). Deus e Jesus não querem ninguém fora desta grande casa que é o Reino. Uma nota ainda importante, é que o cuidado da mulher na segunda parábola prepara a temática da terceira, através da atitude do pai.

Dos vv.12-20 Ele descreve a atitude do filho mais jovem, que pede a parte da herança de seu pai, vai embora de casa, gasta tudo, fica na miséria, busca emprego para poder se sustentar, e, depois de cair na mais profunda impureza (tratar de porcos e se tentar se alimentar da mesma comida deles, fato impensável para um judeu, uma vez que o porco é considerado um animal impuro; e Jesus carrega nesta ilustração justamente para mostrar a que nível tinha chegado a situação de indigência e abandono daquele jovem), acaba percebendo que na casa de seu pai as coisas vão bem, inclusive para os empregados. Após um frio cálculo decide-se voltar para casa, submetendo-se à sorte e ao destino de ser tratado como um empregado qualquer: “Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados” (v.19). O pensamento do jovem, por muito tempo, na história da interpretação do texto foi visto como arrependimento e conversão. O que não é verdade. Tais atitudes não são encontradas na intenção do filho. Ele se revela matemático demais na maquinação de seu retorno, visando não o amor de seu Pai, mas a recuperação da sua zona de conforto, mesmo sendo a de um empregado. “Trata-me como a um de seus serventes”; ele ensaia tudo direitinho. E se põe a caminho.

Jesus, ao narrar o retorno do jovem, promove a reviravolta da parábola, a qual produz o efeito desejado, o de chamar a atenção dos ouvintes para a atitude do pai. Antes, porém, se deve fazer uma consideração. Amparado pela Lei, conforme Dt 21,18-21, o pai poderia entregar este jovem ao tribunal da cidade para ser sentenciado à pena de morte. Sintamos, na literalidade, o peso deste texto legislativo: “Se alguém tiver um filho rebelde, contumaz e indócil, que não aprende a obedecer ao pai e à mãe e não dá ouvidos aos bons conselhos, mesmo quando o corrigem e disciplinam, o pai e a mãe o conduzirão até aos anciãos e líderes de sua comunidade, à porta da cidade, e denunciarão às autoridades da cidade: ‘Este nosso filho é por demais teimoso e rebelde; não nos obedece, é devasso e vive embriagado!’ Então, diante desse depoimento, todos os homens da cidade o apedrejarão até a morte. Assim, portanto, eliminarás o mal do meio do teu povo; todo o Israel ficará sabendo o que ocorreu e ficará temeroso!”. Ora, o jovem da parábola, além de ser tipificado pela Lei como rebelde, também recebe a fama de assassino.

Ao pedir a herança, no começo da parábola, o filho está, de verdade, matando o pai. Rompendo com toda a possibilidade de relação, mesmo que estivesse prevista na lei a divisão dos bens ainda em vida. Contudo, tal atitude não era preterida, para não ferir nem desonrar o pai. Porém, o filho mais novo recebe a parte maior, a do irmão mais velho. O pai abre mão de toda possibilidade de sua existência para seu filho. Diante desse cenário, teria o pai todo o direito de entregar o filho ao tribunal. É esta a atitude tomada por ele?

Deixemos Jesus responder: “Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o, e cobriu-o de beijos” (v.20). O evangelista utiliza o verbo splangkhnizomai (gr. σπλαγχνίζομαι), que se traduz por misericórdia. É o coração e as entranhas remexidas diante da condição humilhada e marginalizada em que o outro se encontra. As vísceras condoídas do pai, que o fazem mover-se na direção do filho em caminho, quebram inclusive os raciocínios matemáticos e esquematizados de ser tratado como empregado. O pai não dá lado para isso. E age, uma vez mais de forma diametralmente oposta ao estabelecido na lei. Dos v.v. 22-24, Jesus narra as atitudes restituidoras de vida que Ele toma. Faz festa, manda matar um novilho cevado, dá roupa, anel e sandálias: devolve-lhe a dignidade e a vida de filho (“Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado” (v.24)). O filho mais novo é imagem para todos os que vivem afastados do projeto amoroso de Deus.

Mas a família está incompleta. Outro irmão precisa ser recuperado. É o mais velho. Sim, ele é imagem para aqueles que pensam estar vivendo o projeto de Deus, e, na verdade, não estão. Claramente, os fariseus e mestres da lei são chamados a se identificar nas atitudes do filho mais velho que, em última análise, recusa conviver com o irmão que errou, “ele ficou com raiva e não queria entrar” (v.28a).

“O pai, saindo, insistia com ele” (v.28b). O pai sai do ambiente da festa para também ir ao encontro do filho. Ou seja, movido pela mesma compaixão vai recuperar este filho. Ele quer e deseja refazer e ressignificar o horizonte das relações quebradas. Deseja que os filhos vivam novamente como irmãos, e se reconheçam como filhos do mesmo pai. Todavia, o mais velho resiste: “Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado” (v.29). Reina a mentalidade do mérito. Mas para o pai, não é o mérito do dever cumprido que pauta a sua atitude diante dos filhos: é o amor e a misericórdia para ambos. A misericórdia, o perdão e o amor que se obtém do pai não é em virtude do que se fez nem do que se fará. Mas são eles dons gratuitos e imerecidos da parte deste pai, que é, em última análise, metáfora para o próprio Deus de Jesus.

Jesus, na parábola, não informa se o filho mais velho aceitou o convite do pai, ao final da parábola. Logo, não temos conhecimento desse fato. Mas o que Ele faz questão de enfatizar é a imagem do pai, restituidor e doador de vida e dignidade à seus filhos.

Nestas parábolas, a alternância entre homem e mulher, enquanto personagens principais acena para a igualdade existente entre homem e mulher; como imagem e semelhança do criador, são as melhores imagens para representar um Deus que é pai e mãe, como o que Jesus revela. Mais ainda, o amor e a misericórdia do Deus de Jesus é universal (parábola da ovelha e da moeda perdidas) e incondicional (parábola do pai misericordioso). Por isso, Lc 15,1-32 é um verdadeiro manual catequético de Jesus para quem deseja ser discípulo do Reino e caminhar com Ele pelo itinerário da misericórdia. Nesse sentido, 1) Nossas comunidades tem sido espaço de misericórdia? 2) Nossas atitudes, enquanto discípulos-missionários e ouvintes da Palavra, refletem o interesse, o amor, a disponibilidade e o cuidado do Pai e de Jesus para com os que estão fora? 3) Ou nossas atitudes refletem nossos próprios interesses e mentalidades, como as dos fariseus e mestres da lei no tempo de Jesus?


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP


sábado, 13 de setembro de 2025

REFLEXÃO PARA A FESTA DA EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ – Jo 3,13-17

 


O diálogo (homilia) contido em Jo 3, começou com a procura de Jesus por parte de Nicodemos. Nos primeiros treze versículos, omitidos no texto dominical, o Senhor tocou no tema do novo nascimento (v.3) que se dá pelo Espírito (v.6-8), ou seja, através do dinamismo vital do Deus revelado por Jesus. Agora, portanto, o discípulo-leitor do Quarto Evangelho se depara com os versículos finais do capítulo, os quais contém uma revelação fortíssima acerca da verdade de Deus e de Seu agir.

O capítulo terceiro situa-se imediatamente após o primeiro sinal realizado por Jesus, em Caná, e depois das palavras ditas contra o templo. Ambos revelam e atestam-No como a novidade de Deus presente e atuante na história. Muitos elementos do texto apresentados pelo evangelista estão carregados de simbologia. Uma primeira delimitação que necessita ser feita é em relação a personagem Nicodemos. Quem ele é? É mestre em Israel, chefe dos fariseus e versado nas Escrituras. No horizonte do texto, ele vai procurar Jesus após a purificação do Templo. A atitude e os gestos Dele deixam o rabino em profundo questionamento.

Nicodemos interpreta corretamente a ação do Cristo: é um gesto profético. Ele consegue ver para além de uma ação desrespeitosa. Por isso, se torna simpático à Jesus. Há que se esclarecer o seguinte: nem todo o fariseu era hipócrita, rigorista, intransigente, como os que rivalizam com o Senhor. Pelo contrário, haviam muitos homens piedosos, sinceros e retos, que observavam corretamente a Torá, e dela viviam e ensinavam com coerência naqueles anos 30. Mas o texto precisa ser contextualizado e encarnado na vida. Para isso, se faz necessário utilizar a técnica da fusão de horizontes: o tempo narrado (anos 30 d.C) com o tempo da narração, em que a comunidade se situa (os anos 90 d.C). Por isso, para o evangelista João, a personagem Nicodemos serve como imagem do fiel batizado, que iniciou o processo do discipulado a Jesus e sua vida na Fé. Em outras palavras, a personagem é um símbolo do discípulo iniciado, que procura conhecer o Senhor.

Nicodemos vai encontrar-se com Jesus a noite. Para o Quarto Evangelho este é o período cronológico que alude às trevas. Trevas e Luz desempenha um papel importante ao interno de toda a narrativa. Para João, a Luz é trazida por Jesus, o qual ilumina e insere no âmbito e na realidade de Deus a pessoa que se decide por Seu projeto de vida; que adere a Ele.

Contudo, era no período noturno que os rabinos tinham o costume de ler, rezar, meditar e estudar a Torá. Era uma hora propícia para interiorizar a mensagem divina contida na Palavra. Por exemplo, nos Salmos, encontramos constantemente o salmista que reza, se levanta pela noite para meditar a Palavra. Também Jesus é apresentado, constantemente nos evangelhos, durante a noite, em oração ao Pai. Ora, para o ser humano, a noite é, também, o ambiente em que emergem as interrogações e as inquietações mais profundas da existência, que foram sufocados pelas preocupações do dia. Assim sendo, a noite pode ter sua conotação negativa de uma realidade que precisa ser iluminada (liberada das trevas; de tudo o que é oposição à Deus), mas é, também, uma ocasião propícia para se fazer a experiência com Deus e sua Palavra. Estas duas compreensões não podem ser perdidas do horizonte da leitura e da meditação do texto. Considerações feitas, pode-se, pois, meditar a passagem evangélica.

O v.13 abre o diálogo: “Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem”. Jesus declara a Nicodemos que ninguém viu a Deus. Contrariando a crença de que Moisés pudesse ter visto a YHWH pelas costas. Na tradição de Israel, a ninguém era permitido ver a Deus e permanecer vivo. Mas a sua declaração é explosiva: ele declara-se identificar com o Filho do Homem, o enviado plenipotenciário de Deus para executar o Seu senhorio na história (cf. Dn 7). Mas deve chamar a atenção o movimento que esta personagem, com a qual o Senhor se identifica: desce de junto do altíssimo. Ele vê a Deus e desce. Jesus está dizendo para o chefe dos fariseus que Deus desce a esta história através de Sua pessoa. Esta é a novidade que o discípulo e toda pessoa humana são convidados a acolher. O dom de Deus no Seu Cristo.

No v.14, Jesus no diálogo/meditação retoma o texto de Nm 21,8, a narrativa da serpente de bronze confeccionada e elevada sobre uma haste (ou estandarte), que curava o povo das investidas das serpentes, durante a caminhada no deserto. “Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado”. Palavras muito enigmáticas, que poderiam, inclusive, fazer com que Nicodemos deixasse a conversa.

João coloca na boca de Jesus um verbo muito importante: “levantar”. Mais precisamente, “enaltecido/elevado” (gr. ὑψωθῆναι / ypsothínai). Como o Quarto Evangelho é um escrito ruminado, o autor, conhecedor da tradição escrita de Israel, recuperando o ensinamento do Senhor, recorda-se de Is 52,13-15, o quarto cântico do Servo (sofredor) de YHWH, para ensinar para sua comunidade que o Senhor está a falar de si mesmo. Ao mesmo tempo, o evangelista prepara o seu leitor-discípulo para este momento da vida e da obra do Mestre, a “sua hora”, a qual já havia falado nas bodas de Caná (Jo 2,1-12). Esta, trata-se da revelação da glória – da presença – de Deus em Jesus. Através de seu enaltecimento, Ele revela a presença do Pai, e, este, por sua vez, revela-se todo no Filho. Para João, esta elevação se dá na hora da Cruz.

A serpente de bronze levantada prefigura o enaltecimento (a elevação) de Jesus, na Cruz. Se em Nm 21,8, aqueles que olhavam para a serpente, ficavam curados. Na intenção do evangelista, os que dirigem o olhar para Jesus enaltecido na cruz, com fé, possuem a vida eterna. Olhar (ver), no sentido bíblico significa a capacidade de se estabelecer uma experiência relacional com Deus. Este “ver” indica a atitude da adesão (decisão, opção) que o fiel-leitor e discípulo faz em relação à Jesus. A vida e obra do Mestre consistirá na doação em amor fiel e servidor de Sua própria vida. Isto significa viver sob a perspectiva da cruz. Esta não pode ser entendida como uma vontade do Pai. Ele não quer e não deseja  o sofrimento de ninguém. Ela é uma consequência de Sua vida fiel. Mesmo sem deixar de lado o aspecto da maldade humana.

O Cristo não morrerá na cruz porque será vontade do Pai. Não! Ela é fruto da maldade humana! Jesus, diante da eventualidade e proximidade de sua morte, continua vivendo a vida e a missão sendo fiel até o fim – amando e servindo até às ultimas consequências. Mesmo que esta Sua existência seja perpassada pelo suplício da cruz. A ação ressignificadora da cruz, de sua dimensão de morte em força de vida acontece, porém, pelo fato de que Ele e o Pai transformam (dão força de sentido) a este evento em máxima expressão de amor fiel. Será o amor e a ação de amar que transformarão a morte em força de vida. É amor que faz viver!

Os vv.16-17 comentam os vv. 14-15, porém com uma novidade. João substitui o termo “Filho do Homem” por Filho Unigênito (traduzido mais familiarmente por único (hbr. yahid), “o imensamente querido”). O catequista pretende mostrar a profundidade do mistério que está sendo evocado. Deus amou tanto a humanidade, que deu seu Filho unigênito para salvá-la. Uma constatação importante: o verbo usado não é “entregou” (gr. παραδίδομη/paradidomi) mas “doou/deu” (gr. δίδωμι/didomein). A mensagem que o texto quer transmitir é clara e profunda: Deus doa a vida de Seu Filho para que a humanidade, assimilando o sentido e a plenitude de Sua existência (missão e obra) e vivendo-a seja recolocada no Seu horizonte divino. Deus não é um sanguinário que quer ser pago com sangue. Mas doador de vida e amor. João declara que o Pai doa a existência (a exemplaridade e o modelo da vida) do Filho para que a humanidade, através do sentido salvífico de Sua obra, tenha a mesma vida Dele.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 6 de setembro de 2025

REFLEXÃO PARA O XXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 14,25-33:


 

O evangelho deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum, continua a leitura do capítulo quatorze da catequese de Lucas, Lc 14,25-33. Numa contextualização imediata, situa-se após o banquete dado pelo chefe dos fariseus à Jesus. O mestre, novamente, retoma o caminho para Jerusalém, e isso fica evidente através do uso do verbo “acompanhar”, que se encontra referido às multidões. O caminho que Ele trilha com seus discípulos, já se sabe bem, não é somente geográfico; é, antes, um itinerário físico-espiritual, teológico e de fé. Visa a formação correta do discípulo do Reino. Neste bloco (Lc 9,51 – 19), o evangelista concentra o ensinamento principal do Senhor destinado ao discípulo que com Ele caminha, para que aprenda a ser e viver diante do projeto de Deus.

A primeira, é a existência de um contraste que se estabelece entre a casa, o caminho e a sinagoga do século I, que Lucas introjeta para o tempo narrado dos anos 30. Jesus e os discípulos, vez ou outra param, fazem experiência da casa, refazem-se, mas continuam a caminhada. Não é mais a sinagoga, ambiente de estudo da Palavra e de seu ensino, para se fazer experiência com Deus, mas na casa e no caminho. A segunda realidade é a de considerar o caminho como parte integrante e fundamental da comunidade dos discípulos de Jesus dos anos oitenta do primeiro século, bem como das gerações seguintes. Indica seu estado permanente de saída, de missão, conforme a descrição que o livro dos Atos dos Apóstolos oferece. Ilustra, pois, a realidade em que vive e deve viver Igreja.

O texto de hoje trata-se de uma advertência que Jesus faz aos que o acompanham no caminho acerca das exigências do discipulado. O versículo 25, que serve de introdução para a narrativa, nos informa que o Mestre e os discípulos já estão em caminho acompanhados de uma multidão. Muito importante esta nota que o evangelista oferece. “grandes multidões acompanhavam Jesus (v.25a)”. Interessante  notar que o autor utiliza um verbo diferente, “acompanhar” (gr. συμπορεύομαι/symporeuomai), e não o verbo “seguir” sempre empregado aos discípulos. A intenção do catequista é a seguinte, mostrar para sua comunidade que há uma diferença muito grande entre os que simplesmente acompanham a Jesus, daqueles que realmente O seguem. Ao mesmo tempo, é uma chamada de atenção para não caírem no mesmo comodismo e descompromisso daqueles que somente acompanham o Senhor. Muito provavelmente a comunidade de Lucas esteja passando por esse processo de comodismo ou de esfriamento da fé e da adesão ao Reino e à vida de Jesus, e abandonando o caminho.

A multidão que procura Jesus é um grupo muito diversificado. Ao seu interno aparecem pessoas que vão se comprometendo com sua Palavra, ensinamento, modo de viver e com Sua pessoa; conseguem dar o passo ao discipulado. Existem também aquelas que O procuram somente para satisfazer as próprias conveniências, os milagres; sentindo-se seduzidas pelo bem-estar que sua pessoa pode oferecer; outras, e perigosas tanto quanto as demais, se achegam a Jesus devido a imagem equivocada de messias que possuem, nacionalista, guerreiro, opressor, violento. Estes simplesmente O acompanham; não o seguem. Não comprometem a vida com Ele.

Jesus, consciente deste perigo que ronda a multidão e também os discípulos estabelece três condições essenciais para segui-lo, sendo que a terceira vem após duas parábolas que servem de apoio para as três exigências. “Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo (v.26)”.

A primeira exigência é a mais radical que Jesus expõe. Mas que tem que ser bem entendida, sem rigorismos e sem amenidades. É importante compreender o seguinte, a família, na sociedade do tempo de Jesus representa um núcleo de pertencimento, segurança social e status. Romper com esse círculo significa correr o risco de perder a identidade e os privilégios. Romper com a família representava um grande desafio e consistia num processo doloroso. Para se ter noção do quão séria é esta exigência, é importante tomar o texto original que traz o verbo “odiar (gr. μισέω/missêo)” ao invés de “desapegar”.

O dito de Jesus deve ser bem entendido para não gerar equívocos. O verbo “odiar” para a cultura do povo de Jesus não tem o mesmo sentido para a nossa. Entenda-se “odiar” como “amar menos (com menor intensidade)”. O Senhor não está dizendo ou incitando as pessoas ao ódio, da forma como pensamos ou concebemos este sentimento. Ele está pondo a seguinte exigência para ser Seu discípulo: o Reino de Deus e Seu projeto devem ser prioridades para aquele que desejar segui-lo. Significa recolocar e reordenar as relações (pais, irmãos, esposos, esposas, filhos, e a sua própria vida) em vista do Reino e do discipulado. Da mesma forma que Jesus não quer que as relações se esfacelem ou sejam vividas com hipocrisia. Não adianta fazer a opção em favor de Jesus e, dentro da própria casa ou das próprias relações, viver incoerências. Não acolhendo quem necessita, inferiorizando e oprimindo os outros; vivendo desarmonia. Ao contrário, viver e exercitar a compreensão, a empatia, a igualdade das dignidades. Assim, a relação com Jesus e o Reino deve moldar e transformar a relação com os outros, com os de casa, com os que estão à sua volta.

A segunda exigência que Jesus estabelece é a seguinte: “Quem não carrega a sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (v. 27). A cruz no contexto da sociedade e do tempo de Jesus representa medo, tortura, vergonha e exclusão social e religiosa. Era a máxima condenação que o Império Romano impunha aos inimigos políticos, que representavam perigo social para Roma. Neste contexto da narrativa ela deve ser tomada em seu sentido real, ou seja, a eventualidade e a realidade da perda (entrega) da própria vida em vista da fidelidade ao Reino, ao Pai. Só pode ser Seu discípulo quem entende que a vida também pode ser perdida por causa do horizonte e da fidelidade ao projeto de Deus. A capacidade de dar e de gastar a vida é o que significa tomar a cruz e seguir a Jesus, em todo o seu realismo e consequência.

A terceira exigência, “renunciar a tudo o que tem”, toca na capacidade e na maturidade exigidas do discípulo na relação que possui com os seus bens. Mais uma vez Jesus toca no tema do desapego como condição de liberdade para que se possa ser autêntico servidor do Reino e seu discípulo. Agora, ele é chamado a colocar o que possui em relação às necessidades dos outros. Amar menos o que se tem para coloca-los a serviço dos que não possuem.

As duas parábolas que se encontram no meio do texto, nos vv.28-32, são tomadas de ambientes distintos, mas possuem a mesma intenção e finalidade. A primeira, a do construtor que deseja começar a construir deve saber se terá o suficiente para concluir a obra. Caso contrário será alvo da chacota alheia. A segunda, serve-se do exemplo de um rei que está preste a sair em batalha com seu reduzido exército, em face a outro que apresenta um exército mais numeroso, e que deve discernir bem sua estratégia. Ambas as parábolas tocam no tema do discernimento diante de uma tomada de decisão e de suas consequências. Elas servem para iluminar o discípulo na tomada de decisão e leva-lo a pensar nas consequências.

Jesus não quer que o discípulo seja inconstante. Para se tornar seguidor é necessário que a pessoa pese, discirna e tome consciência da escolha que está fazendo. O discípulo, portanto, não pode ser inconsequente. Assim como o construtor e o rei têm que ser conscientes das decisões e consequências que podem ter. Este é o sentido das duas parábolas que reforçam as exigências que o Senhor faz para quem quiser segui-lo.

Quem somos neste “espelho” do texto: 1) acompanhantes ou seguidores de Jesus? 2) Temos colocado o projeto de Jesus e do Reino em primeiro lugar ou temos amado mais nossos próprios projetos e convicções? 3) Temos discernido sobre a nossa condição e vocação de discípulos e discípulas?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 30 de agosto de 2025

REFLEXÃO PARA O XXII DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 14,1.7-14

 


O XXII domingo comum continua a meditação da catequese de Lucas a partir do capítulo quatorze. Jesus está fazendo refeição na casa de um fariseu. A viagem é interrompida, mas o leitor-discípulo do evangelho deve recordar que o contexto não mudou: o caminho catequético, teológico, espiritual (geográfico e narrativo, evidentemente) do Mestre acompanhado de seus discípulos à Jerusalém. O texto de Lc 14,1.7-14, tem uma finalidade e uma catequese valorosa. Para isso, devemos contextualizar sua leitura a partir do primeiro versículo.

“Aconteceu que, num dia de sábado, Jesus foi comer na casa de um dos chefes dos fariseus. E eles o observavam” (v.1).  Jesus, pela terceira e última vez faz refeição na casa de um fariseu. Curioso notar que, sempre que Ele faz refeição na casa de um dos líderes espirituais e religiosos do povo, se estabelece um conflito. Desta vez, causado por Ele, porque nesta cena aparece um homem hidrópico (pessoa que sofre com a retenção e acúmulo de liquido em todo o corpo, em especial na região do abdômen. Segundo a crença popular esta enfermidade era fruto de algum ato impuro contra a sexualidade). Em tese, aquele homem não poderia estar ali. Era um impuro e poderia tornar impuro quem dele se aproximasse. O Cristo questiona os líderes religiosos se é lícito ou não curar em dia de sábado, dia dedicado ao repouso total em vista do louvor à YHWH. Os fariseus nada respondem e o Senhor, de sua parte, os censura denunciando-lhes a hipocrisia ao violarem o sábado, colocando seus interesses pessoais acima de tudo, inclusive sobre a Lei do Senhor. Para ele, porém, a dignidade da pessoa vem em primeiro lugar. Depois a lei!

O verbo deve chamar a atenção. Os fariseus observavam a Jesus. Παρατίθημι (paratithemi) dá peso a atitude deles. Significa que estão supervisionando-o. Colocam-se como censores. Procuram algo nas atitudes Dele para poderem apanhar e denunciá-lo por alguma heresia que pudesse dizer ou fazer. Não estão preocupados em desfrutar do momento para aprender. Esta atitude é típica dessa gente ultra religiosa que pensa já saber tudo. Sempre prontos para exercerem o papel de fiscais da fé e da vida alheia. Constantemente compelidos a serem o centro das atenções por saberem a Lei na ponta da língua, e, por força de sua conduta irrepreensível se tornarem notáveis entre os outros. Esta era atitude dos fariseus do tempo do Mestre. Porém, Lucas alerta para que sua comunidade, para a qual escreve o evangelho examine-se diante desta tentação. Por isso, todo o ensinamento que o texto de hoje transmite é endereçado para a comunidade e para o discípulo, porque ela pode muito bem reproduzir o erro dos fariseus e mestres da lei do judaísmo do tempo de Jesus. Feita a devida contextualização, se pode mergulhar no horizonte do texto de Lc 14,1.7-14, proposto para a meditação dominical.

Depois de chamar a atenção das lideranças judaicas, Jesus dirige-se aos demais convidados ao observar uma atitude dissonante daquilo que se esperava de gente letrada e versada na Palavra de Deus: a busca pelos primeiros lugares na mesa, algo inclusive censurado pela literatura sapiencial, em Pr 25. A partir desta atitude dos convidados, Ele começa a ensinar. Seu ensinamento assume o tom de exortação, de chamada de atenção. Só que através de um recurso que o mestre gosta muito: a parábola. Ela ocupa os versículos de 8-11. Sabe-se bem que a função deste gênero literário nasceu no âmbito da literal sapiencial (hbr. Mashal), que recolhe os fatos cotidianos e simples para se transmitir um ensinamento importante. Possui três características: 1) chamar a atenção do leitor-ouvinte; 2) provocar a audiência através dos elementos exagerados contidos nas parábolas; 3) gerar mudança de atitude naquele que a escuta.

"Quando tu fores convidado para uma festa de casamento, não ocupes o primeiro lugar. Pode ser que tenha sido convidado alguém mais importante do que tu, e o dono da casa, que convidou os dois, venha te dizer: 'Dá o lugar a ele'. Então tu ficarás envergonhado e irás ocupar o último lugar (v.8-9)”. Jesus reprova esta atitude de ambição e de vaidade, que acaba sendo típica, isto é, sempre presente nas pessoas religiosas que são encarregadas de algum cargo de relevância, que as fazem se sentir importantes, e, portanto, possuem a necessidade de se exibir, de manifestar e fazer notar a todos a sua importância escolhendo os primeiros lugares.

O ensinamento importante reside no v. 10: “Mas, quando tu fores convidado, vai sentar-te no último lugar. Assim, quando chegar quem te convidou, te dirá: 'Amigo, vem mais para cima'. E isto vai ser uma honra para ti diante de todos os convidados”. Todavia, esta atitude não pode ser assimilada e realizada por simples humildade, mas por algo muito mais superior: por amor e serviço. Jesus está convidando os que O escutam a agir a partir do amor, que tem a capacidade de recolocar nos primeiros lugares aqueles que estão e são últimos. A habilidade de potencializar positivamente o outro. Tornar o outro autor.

O mestre está invertendo a escala de valores da sua sociedade e da nossa; subvertendo radicalmente a falsa mentalidade religiosa a partir da verdadeira ética do Reino. É o que Ele propõe com v.11: “Porque quem se eleva, será humilhado e quem se humilha, será elevado". A verdadeira reviravolta histórica sempre realizada por Deus nesta realidade. Jesus, agora, convida aqueles fariseus, empoderados de seus cargos e lugares de honras, a passar da categoria e do dinamismo do interesse àquela do Dom, da gratuidade e da Graça. Uma simples palavra: à atitude do amor.

Jesus, que foi o primeiro a colocar-se ao lado dos últimos, dos excluídos, dos marginalizados está dizendo que aqueles que, com Ele e como Ele, fazem o mesmo poderão tomar parte da plenitude de sua condição divina, estabelecendo comunhão de vida com Ele. Mas quem pretende se colocar sobre os outros, cindindo com as relações, serão excluídos, o que se dá a entender com a expressão “serão humilhados”.

Os primeiros destinatários da parábola são a comunidade e o discípulo. Mas qual a sua intenção? A de incutir no coração de ambos a atitude do amor e do serviço desinteressado. O amor que é capaz de superar inclusive os interesses próprios.

Do v.v 12-14, Jesus propõe um segundo ensinamento para aquela classe de fariseus, que, todavia, pode ser colocado para toda a comunidade dos discípulos e discípulas de todas as gerações e lugares. “Quando tu deres um almoço ou um jantar, não convides teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos. Pois estes poderiam também convidar-te e isto já seria a tua recompensa. Pelo contrário, quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos. Então tu serás feliz! Porque eles não te podem retribuir. Tu receberás a recompensa na ressurreição dos justos". Se alguém quer ser, de fato, discípulo do Reino e pertencer à comunidade cristã, deve acolher os últimos e servi-los. Eles são simbolizados pelos pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. Eram as categorias de pessoas que, devido às suas enfermidades ou condições sociais, ficavam impossibilitadas de participarem da vida religiosa, uma vez que a enfermidade era, na concepção religiosa equivocada da época, fruto do pecado, e, por isso, eram excluídas pelos sacerdotes e doutores da lei.

Qual a finalidade do texto deste capítulo quatorze do evangelho de Lucas? Jesus orienta seus discípulos, através do ensinamento aos fariseus, a não cair na tentação daqueles mesmos líderes, de, ao sentirem-se superiores em relação aos outros agirem da mesma forma. Mas ao contrário, ir ao encontro dos últimos. Ou seja, para nós o texto se faz atual na medida em que se coloca a atenção e a ação para aquelas categorias de pessoas que, em razão de nossas equivocadas concepções (morais e, inclusive religiosas), pensamos não merecer atenção. Estes últimos são, na realidade os destinatários do Evangelho do Reino. São termômetros para a nossa vida de fé. Mas não se deve realizar essa tarefa mediante interesses pessoais, como faziam os fariseus, mas na ordem do dom, do amor e do serviço gratuitos como fez Jesus.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 16 de agosto de 2025

SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA – Lc 1,39-56:

 


A Igreja celebra a Solenidade da Assunção de Maria, Mãe do Senhor, aos céus. Um dogma de fé relacionado, numa primeira análise à pessoa de Maria. Todavia, ao lançarmos um olhar para o fundamento do dogma – da verdade de fé proclamada e celebrada, acima de tudo – os dogmas marianos estão radicalmente ligados e fundamentados na fé cristológica. Dito de outra maneira, só se pode dizer alguma coisa a respeito de Maria, porque, antes, e, primeiramente, foi dito sobre a pessoa de Jesus. Aqui urge corrigir a expressão cunhada pela mariologia antiga, “Sobre Maria nunca se poderá falar suficientemente (De Maria Nunquam Satis)”. Diz-se o suficiente a respeito dela e, tão somente o necessário, porque foi afirmado primeira e suficientemente acerca de Jesus.

O dogma mariano da assunção reafirma a índole escatológica da Igreja peregrina, da qual Maria é imagem – ícone. Ou seja, ao declarar e professar que Maria foi acolhida na Glória de Deus, a Igreja confessa sua fé na ressurreição. Ele reafirma e reflete o futuro e fim escatológico que está reservado para todo o crente: a vida definitiva e plena em Deus. Dizer que Maria foi assunta aos céus significa dizer que sua vida e história foram assumidas por Deus, em seu projeto salvador e redentor, em virtude do fato de que ela assumiu para si o projeto de Deus, vivendo como verdadeira discípula do Reino.

No Evangelho de Lucas, ela é o exemplo que deve ser assumido por todos aqueles que querem ser discípulos de Jesus e viver segundo a ética do Reino. O catequista bíblico faz questão de tipificar em Maria as atitudes fundamentais que a pessoa deve possuir para se tornar discípulo e discípula do Reino: ouvir a Palavra de Deus, acolhê-la (confronta-la) e frutifica-la através da vida concreta, em amor e serviço aos outros. Estas características estão bem ilustradas na cena da Anunciação do nascimento do Salvador versículos antes. Na cena anterior (Lc 1,25-38), Maria, ao encarnar em si a Palavra geradora de vida, se assume serva desta mesma Palavra e parte apressadamente para a região montanhosa da Judéia, a fim de assistir a sua parenta, a antes estéril Isabel, de idade avançada, e, agora, grávida. A esterilidade era uma vergonha naquele tempo. Maria decide-se por viver a Palavra de Deus colocando-se ao lado dos envergonhados e humilhados. Assume, portanto, a Palavra libertadora e geradora de vida sendo instrumento de libertação. Isso posto, podemos adentrar no horizonte do texto de hoje. Maria, ao assumir viver pela Palavra, se torna Sua servidora, e é capaz de assumir os irmãos.

Na casa de Zacarias, ocorre o encontro entre as duas mulheres. Elas ocupam o lugar central da narrativa. Maria, por primeiro saúda Isabel provavelmente com o significativo  Shalom. No entanto, prevalece para o narrador e leitor o interesse neste primeiro encontro: as duas mulheres que trazem consigo as duas crianças. É o encontro entre o Fruto do Espírito, Jesus, com o sinal profético do Espírito, João.

Então, Isabel profere uma benção (hbr. Berakah) à Maria. Precisamos compreender que a benção bíblica é sempre, e, em primeiro lugar, uma “bendizência (louvor)” a Deus por aquilo que ele fez. Não se trata de um ato mágico. A fé judaico-cristã não admite qualquer compreensão ou concepção mágica nas mediações religiosas.

Isabel bendiz a Deus pelo acontecido em Maria e com ela mesma. A mãe de João reconhece, pelo Espírito, Aquele que está presente no seio de Maria. O estremecimento de João desde o seio de Isabel, indica que desde o ventre materno ele já profetiza a vinda do Senhor, já O sente, e manifesta Sua presença (v.42).

O evangelista faz aqui um midrash – uma interpretação – do texto de 1Cr 15,28 e 2Cr 5,13, onde o povo aclama a presença de Deus na Arca da Aliança. Também Davi, quando da visita da Arca em sua casa, exclama: “como poderá vir a mim a Arca do Senhor? (cf 2Sm 6,9)”, acolhendo-a, depois, com jubilo e danças. Estes textos servem de pano de fundo para esta narrativa da visita a Isabel para indicar o seguinte: Maria é, agora, a nova Arca que traz a presença salvífica do Senhor, em meio ao povo. Isabel profere, então, uma bem-aventurança à Maria: “bem-aventurada aquela que acreditou”. O acento, aqui, recai sobre o verbo “Acreditar (gr. πιστεύω/pisteûo)”. É mulher feliz (bem-aventurada) porque acreditou na Palavra que Deus lhe dirigiu.

Então Maria responde à Isabel com um canto de ação de Graças e louvor, composto por muitos versículos dos salmos, e de outros textos do AT. Lembra o cântico de Ana, mãe de Samuel, que também não podia ter filhos. Ela assume em si todos os filhos frutos da promessa da graça de Deus (1Sm 2). Deus levanta os humilhados, porque Maria é uma humilhada, no sentido de que ela é uma menina ainda; não tinha, até aquele momento, um lugar na sociedade. Lembremos que era ela apenas desposada. Se alguém ficasse sabendo de que ela estava grávida, ainda prometida em casamento, isso seria uma grande humilhação e vergonha.

A melhor tradução para esse versículo seria: “Porque olhou para a humilhação (gr. ταπείνωσις / tapeînosis) de sua escrava”. Maria não é humilde naquele sentido de uma virtude piegas e pedante (que no fundo esconde bem os verdadeiros interesses), ou aquele “coitadismo”, mas a humilhada, uma a’nih, ao lado dos a’nawim, os pobres, humilhados e oprimidos, que recorrem a Deus por socorro. Portanto, o Deus de Israel é aquele que levanta da humilhação os humilhados.

O v.50 mostra o tema da misericórdia, o qual é muito precioso para Lucas. Ele se faz presente em todo o contexto do evangelho. No seu cântico, Maria se apropria de toda a história de Israel (v.51), no intuito de mostrar a atuação do Todo-poderoso – El Shaday – que fez grandes coisas: colocar seu coração ao lado dos desfavorecidos da história. Todas estas tradições histórico-salvíficas ressoam no Magnificat de Maria. Com seu hino profético, ela proclama a opção que Deus faz; o lado que o Todo-poderoso assume: o dos pobres. Mas não é só se colocar ao lado dos pobres! Os versículos seguintes colocam em evidência a ação do Deus ao qual Maria serve.

Os v.52-53 são muito importantes pois acenam para a chamada inversão escatológica, a mudança, a reviravolta que Deus opera na história; a subversão dos valores e das categorias conforme a lógica do Reino. “Deus derruba dos tronos os poderosos e eleva os humilhados, enchendo de bens os famintos e despedindo de mãos vazias os ricos”; ou seja, os valores dos poderosos não valem mais no tempo do Espírito. Eles perdem seu poder e os humilhados são exaltados, ou seja, colocados em seu lugar. Maria termina cantando a realização das promessas ao servo Israel (Jacó e todo povo). A serva Maria identifica-se com o servo Israel, ou seja, o povo que está à disposição de Deus.

Na arca da nova aliança não há tábuas da Lei, não há normas nem preceitos. Existe apenas Jesus, expressão máxima do amor e da misericórdia de Deus para com toda a humanidade. Assumir o projeto amoroso de Deus que é gerar vida, acolhimento, amor, solidariedade e serviço resulta ser por Deus em Jesus assumido para a vida eterna, que já começa a ser vivida nesta história.


Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 9 de agosto de 2025

REFLEXÃO PARA O XIX DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 12,32-48:


A liturgia continua a leitura do evangelho segundo Lucas, desenvolvendo hoje os vv. 32-48. O contexto amplo é o da viagem de subida para Jerusalém. Neste longo percurso (literariamente falando, composto de dez capítulos), o evangelista recolhe os ensinamentos basilares do Senhor comunicado aos discípulos. Na seção proposta para a liturgia dominical, o mestre desenvolve os ensinamentos transmitidos nos versículos anteriores, no tocante às atitudes e posturas dos discípulos em relação aos bens (v.32-34), e acrescenta mais três características: a vigilância, o serviço e a responsabilidade, ilustradas pelas três parábolas aqui contadas (vv. 35-48). Isto posto, é possível adentrar no horizonte do texto.

“Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o Reino” (v.32). Os três primeiros versículos se conectam ao tema que os precedeu: o abandono nas mãos do Pai e a busca fundamental pelo Reino. Os discípulos de Jesus são comparados a um pequeno rebanho, ao qual este lhe é confiado. O que fora ensinado a pedir no Pai-nosso (cf. 11,2) já está acontecendo na vida das comunidades cristãs. Ora, o Reino é um dom do Pai à comunidade dos discípulos. Mas há um apelo radical feito pelo Senhor: “Vendei vossos bens e dai esmola. Fazei bolsas que não se estraguem, um tesouro no céu que não se acabe; ali o ladrão não chega nem a traça corrói.” (vv. 33-34). A ênfase da exigência é colocada no modo como os discípulos se relacionam entre si e com os outros, isto é, na partilha dos bens. Ou seja, o reino começa a se implantar lá onde os bens dos discípulos são postos à disposição de todos, preferencialmente aos mais pobres.

No v.35, Jesus começa a contar três parábolas. Já é conhecida a preferência que Ele tem por esta forma de ensinamento sapiencial, o qual recolhe toda a realidade simples do cotidiano, para se transmitir uma lição importante. Este recurso pedagógico possui três intenções: provocar, chamar a atenção e propor uma mudança de atitude no leitor/ouvinte do evangelho, no caso, o discípulo e a comunidade.

A advertência feita pelo Senhor antes da primeira parábola é muito importante: “Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas” (v.35). A veste comprida que os homens usavam na sociedade do tempo de Jesus era suspensa até a cintura, na altura dos rins, por meio de uma estreita faixa, durante o trabalho ou a viagem, de modo a não impedir os movimentos. Portanto, cingir os rins e manter a lâmpada acesa indica a pronta disponibilidade. Nesse sentido, a vida dos discípulos é caracterizada por duas atitudes: a vigilância e a responsabilidade. Deve estar alerta, sempre preparado. Assim, o tempo da espera é o tempo da responsabilidade e da fidelidade.

Dos vv.36-38, Jesus transmite a primeira parábola, embasando-se na experiência patrão-empregado. O tom dela é de advertência, mediante o uso do modo verbal no imperativo. Exorta aos discípulos a assimilarem a imagem dos empregados que estão a espera do seu patrão que volta de uma festa de casamento. Ela tem a intenção de inculcar no leitor/ouvinte e no seguidor uma espera vigilante e constante. Quanto mais a espera se faz extensa, e incerta a hora da chegada, tanto mais necessária é a vigilância perseverante dos empregados. Eles são declarados “bem-aventurados”, felizes. E acontece algo inimaginável na parábola (e este é o elemento exagerado que serve para chamar a atenção de quem escuta), que é mudança dos papeis. O Senhor/patrão assume o traje de trabalho e se põe a servi-los, enquanto os empregados tomam lugar à mesa. Isto não acontecia na realidade cotidiana. Um elemento muito belo na catequese lucana que deseja mostrar a inversão realizada na história pelo Deus e Pai de Jesus; ou seja, o Deus patrão e senhor assume a forma de um servo.

A segunda parábola assume uma imagem inconcebível para aquele tempo. Jesus compara a vida de Deus como um ladrão que vem assaltar a residência do chefe da casa. Os arrombamentos noturnos eram fatos conhecidos de todos. As casas palestinenses eram muito frágeis e fáceis de serem invadidas. Mas a ênfase do Mestre está na atitude da vigilância que o discípulo precisa exercitar, para acolher o dia do Senhor. A imagem do ladrão noturno aplica-se ao Filho do Homem juiz ou salvador que vêm inesperadamente (cf. lTs 5,2; 2Pd 3,10; Ap 3,3). Daí a exortação urgente às primeiras comunidades cristãs, a não se deixar tomar pela indolência ou pela preguiça.

A terceira, mas não menos importante, é a do administrador (gr. οἰκονόμος/oikonomos/ecônomo = administrador da casa), que é adjetivado por Jesus como fiel e prudente, ao qual o patrão, durante a sua ausência, confiou a responsabilidade de todo o pessoal de serviço. Ele tem duas possibilidades: ser fiel, e assim receber de seu senhor uma recompensa que vai além de qualquer limite (cf. 19,17-19). Sua fidelidade se revelará na forma como age com seus irmãos ao cuidar, nutrir, servir e ama-los, isto é, propor e dispor todo o necessário para que tenham qualidade e plenitude de vida durante a ausência do dono da casa. Ou abusar de seu poder, trair a confiança de seu senhor e mandar despoticamente sobre os outros servos, agindo com violência e com força, espancando-os; ou pensando somente em si, comendo, bebendo e embriagando-se.

Num primeiro momento, Jesus aplica esta parábola aos chefes religiosos de seu povo, os mestres da lei, os fariseus, os sacerdotes. Mas no âmbito da comunidade, este ensinamento também é destinado à todas as lideranças, chamadas a viver a missão recebida. Na lógica do Cristo a comunidade cristã tem um só e único chefe e Senhor (cf. Mt 23,8-10), enquanto todos os outros são servos e irmãos. Aquele que recebeu o cargo de presidir a comunidade dos servos do Senhor permanece fiel só se não se transforma em dono da comunidade. O imprudente receberá o seguinte pagamento: “ele o partirá ao meio e o fará participar do destino dos infiéis” (v.46). A punição “partir ao meio” (gr. διχοτομήσει/dikotomêssei) era a máxima execução aplicada na Pérsia, mais cruel até que a crucifixão no império romano. No mundo judaico, expressava a pena destinada a quem transgredia a aliança. Não se trata propriamente de um anúncio de castigo, mas de um alerta à perda de sentido da vida.  

“A quem muito foi dado, muito será pedido; a quem muito foi confiado, muito mais será exigido!” (v.48). Este versículo que conclui a seção de hoje pode ser entendido desta maneira: o que foi dado em plenitude ao ser humano foi o Reino. Por isso, do discípulo se exige que viva a altura deste projeto.

Na vida concreta, assim como na vida comunitária e fraterna, como viver e crescer nestas três atitudes – a vigilância, o serviço e a responsabilidade – apresentadas pelas três parábolas de hoje? Tenho consciência de que também eu, através do Batismo, sou chamado a ser administrador dos bens de Deus para os irmãos?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.