A
Igreja no Brasil celebra a solenidade de sua padroeira, Nossa Senhora da Conceição
Aparecida. E propõe para a meditação eclesial o evangelho das Bodas de Caná, Jo
2,1-11. Episódio este contido na catequese do evangelho joanino. O Quarto
Evangelho é constituído de duas partes. A primeira, o Livro dos Sinais, que
inicia em Jo,1,18 e conclui-se em 12,51, e do livro da Glória, Jo 13 – 20.
Os Sinais, na perspectiva de João, são gestos simbólicos de Jesus que apontam para a realidade profunda e essencial de sua identidade. Que Nele existe e desponta a novidade (escatológica, da ultimidade, da plenitude) de Deus agindo na história. Mas não devem ser vistos e meditados em si mesmos, e sim orientados para a Hora da Glória de Jesus. Esta é o momento do Seu enaltecimento, sua revelação como Filho de Deus e Messias. Por isso, só pode avançar para a contemplação da hora da Glória o discípulo que percorreu o itinerário descrito nesta primeira parte do evangelho.
O capítulo 2 do Evangelho segundo João apresenta o primeiro sinal realizado por Jesus. Ele o realiza em Caná, na Galileia, no terceiro dia de sua semana inaugural. Não é à toa que esse dado aparece. O episódio 2,1-11 parece dar sequência ao contexto de 1,19-51. Se “no terceiro dia” (2,1) faz soma com os quatro dias de 1,19-51, o episódio de Jo 2,1-11 completa uma “semana inaugural”. Portanto, o sétimo dia. Devemos recordar que o Quarto Evangelho é escrito para pessoas que já foram evangelizadas numa primeira vez, por isso a expressão “terceiro dia” alude ao dia da ressurreição. No horizonte da narrativa, no sétimo dia desta semana acontece um casamento em Caná. Todavia é preferível para esse episódio o termo “bodas”.
As bodas fazem parte do imaginário do povo de Israel. A imagem do casamento serve de metáfora/símbolo para a Aliança (relação) com Deus. Mais ainda, nas expectativas do povo, as bodas seriam o momento da inauguração da era messiânica. Ela representa, nesse sentido, a alegria e a expectativa das núpcias messiânica, que, a partir da mentalidade dos discípulos de Jesus Ressuscitado, se dará através das núpcias do Cordeiro. Adentrando no horizonte do texto, a personagem que encabeça a narrativa é uma mulher; a mãe do Senhor, primeiramente. Ambos foram convidados. Ora, a organização das festas geralmente ficava sob o cuidado das mulheres, as mães de família. Os homens ficavam ali como figuras decorativas. Mas o evangelista elenca também a presença dos discípulos.
A figura da mãe de Jesus deve ser compreendida, de modo a reorientar o olhar para Ele e sua atuação. O texto não tem a mais remota intenção de colocar ênfase na mulher. Um detalhe importante, ela não é mencionada pelo seu nome (é óbvio que o evangelista saiba, mas isso não ocupa lugar para a finalidade da narrativa). Sabe-se, que quando uma personagem aparece de forma anônima, na verdade, o autor está fazendo um convite para que os leitores/ouvintes se identifiquem com esta. Portanto, o texto das Bodas de Caná não pode ser interpretado em chave de leitura da intercessão de Maria.
A “mãe” é símbolo do Israel fiel à Aliança e submetido à Lei. Ou seja, esta personagem ainda está presa ao regime da lei mosaica e ao sistema religioso-cultual da época. O evangelista João propõe para seus leitores/ouvintes, fieis de sua comunidade, a superação e a substituição de todo o sistema religioso e cultual judaico a partir da pessoa de Jesus. Há que se superar estes sistemas antigos para se tomar parte da novidade de Deus presente na história.
O vinho vem a faltar. A mãe de Jesus nota o fato. Uma festa de núpcias sem vinho! O vinho simboliza a alegria e o amor. Mas para a tradição de Israel, o vinho alude para a inauguração da era messiânica. A mãe se dirige à Jesus, conta-lhe o que está acontecendo e ele responde algo que dá a entender que isso não é assunto dele (lit: “O que há para mim e para ti?”. v.2). Soaria como um “Não é problema nosso”. Com efeito, em seguida, acrescenta Jesus algo que soa igualmente intrigante: “Minha hora ainda não chegou”. De que hora Jesus está falando? De qualquer maneira, ainda não é sua hora, mas o que acontecerá imediatamente será um sinal que encaminhará para este acontecimento.
A mãe diz aos que estavam servindo (lit. diáconos), “fazei o que Ele vos disser”. Aqui tem-se a transformação desta personagem. Recordemos que ela foi estabelecida como símbolo para o Israel fiel. Ao dizer aos servos para colocarem toda a atenção sobre o agir e a palavra de Jesus, ela reconhece Nele a novidade da presença de Deus. O Israel fiel à Deus e Sua Aliança saberão reconhecer Deus mesmo agindo de modo novo através de Jesus. Agora sim, esta mulher começa a fazer parte da Novidade escatológica apresentada pelo Senhor, e passa, então, a símbolo para a Comunidade dos fiéis.
O evangelista nos informa que ali estavam seis talhas de pedras, de mais ou menos cem litros, utilizadas para a purificação ritual (e higiênica) que os judeus costumavam fazer. Elas estavam vazias. Estão ali inutilizadas; já não servem mais, a não ser para o que serviam antes. Mas após a ordem de Jesus para enche-las, a atitude dos servos é de completa-las até a borda (lit. até o alto). Eram feitas de pedra. Foi sobre duas tábuas de pedra que, no Sinai, Moisés recebeu a Lei. No simbolismo judaico, a água é associada à Torá. Essa não falta, vinho sim — falta a alegria messiânica. Por isso, o número seis aparece. Na teologia bíblica, seis indica imperfeição, incompletude (contrário do número sete, que simboliza a perfeição). O narrador denuncia a inutilidade das práticas religiosas judaicas que, diante da novidade de Jesus, encontram-se superadas. Elas devem ser enchidas até a borda. Emerge aqui a ideia da abundância. Assim foi feito. Trazem as talhas ao Senhor, que pede para que as levem até o mestre-sala. O qual prova (v.9).
O mestre de cerimônias chama o noivo, que até agora tinha ficado incógnito. “Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!” (v.10). Esta última parte do versículo adquire um peso devido ao adverbio de tempo “agora”. Ele expressa a realidade de que o “agora” está ai. Este “agora” é a novidade, que é marcada pela abundância do vinho bom, como recorda o profeta Amós no capítulo nono de seu livro, ao dizer que das colinas destilaram vinho em abundância. João recorda também a profecia de Isaias, que profetiza e celebra a abundância vivenciada no tempo messiânico (Is 61; 63; 66).
Qual é o verdadeiro noivo para o qual deveria ter sido dito isto? Jesus, que não deixa faltar o vinho novo e bom. Porque, ao mesmo tempo, o noivo e o vinho melhor são Ele mesmo. Assim, há um “noivo escondido” na história, que vem realizar as núpcias de Deus com a humanidade.
A mensagem final, no v.11 é sumamente importante: “Este foi o início dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galiléia e manifestou a sua glória, e seus discípulos creram nele” (v.11). Notemos que o Quarto Evangelista sublinha que este foi o princípio dos sinais (gr. ἀρχὴν τῶν σημείων/arché tón semeion). Arché (gr. ἀρχὴν / princípio , origem) faz um arco narrativo com o prólogo do Evangelho, quando o catequista bíblico inicia a obra com um solene “No princípio”, que remete ao primeiro dia da criação em Gn 1,1, com a conclusão provisória desta semana inaugural, que remete à nova criação.
Qual é a força de sentido deste texto do evangelho joanino para a Solenidade de Nossa Senhora da Conceição Aparecida? Apresentar Maria como aquela que, entre os processos da vida, sabe reconhecer e apontar o sentido da vida para todos os discípulos do Reino: “Fazer tudo o que Ele disser”, ou seja, a Pessoa de Jesus e a forma de sua existência. Ao mesmo tempo, indicar atitudes ternas e responsáveis dela que podem ser imitadas: a atenção com os acontecimentos ao redor de si (o discípulo precisa estar atento à realidade); o cuidado para com as necessidades dos outros (zelo para com os outros); a prontidão para se colocar a serviço (serviço); a cooperação na solução de um problema (ser presença solidária). Atitudes que podem sempre ser aprimoradas na vida e nos processos pessoais do discípulo e da discípula do Reino.
Pe.
João Paulo Góes Sillio.
Paróquia São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.
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