sábado, 8 de março de 2025

REFLEXÃO PARA O I DOMINGO DA QUARESMA – Lc 4,1-13


 

O evangelho deste primeiro domingo do tempo quaresmal nos narra as tentações de Jesus, ao longo dos quarenta dias que ficou no deserto, após o seu batismo. O termo tentação é correto e não caiu de moda. Mas ainda é preferível o termo “sedução”. Porque a tentação daria a ideia de uma força ou dinâmica que impulsionaria o homem a cometer algo de mal. E veremos, com a narrativa de hoje, que o diabo no deserto não se apresenta como um inimigo propriamente dito, tampouco tenta a Jesus a fazer algo de mal, ou pecar, ou qualquer coisa horrenda que se possa imaginar. Pelo contrário, se apresenta como uma espécie de colaborador (duvidoso, é verdade) que mostra um caminho alternativo ao projeto do Pai, através das seduções que apresenta. Este episódio se encontra  nos evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc). O que confirma que a narrativa tem grande importância para as comunidades primitivas. A fonte original deste relato, o Evangelho segundo Marcos, não dá nenhum detalhe sobre o nível e a modalidade das tentações; apenas diz que “Jesus esteve no deserto durante quarenta dias sendo tentado por Satanás” (Mc 1,13). Lucas, a seu modo e interesse comunitário, releu a história que lemos hoje na liturgia e a transmitiu aos seus. Mas para que este texto não seja mal interpretado como sendo uma crônica exata dos fatos, devemos nos ater à simbologia e tipologia teológicas que o relato nos apresenta.

 

As seduções aqui apresentadas pelo evangelista acenam para as convicções e as aspirações do povo em relação ao messias: 1) o messias popular (do pão); 2) o messias do poder (do reino e da riqueza); 3) o messias religioso (a imagem do templo). Mas Jesus recusa estas interpretações durante toda sua vida e ministério públicos. O modo pelo qual ele se decide por viver baseia-se na dinâmica do servo sofredor de YHWH, com uma conotação toda sapiencial e profética.

 

O texto começa dizendo que “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (v.1). A narrativa situa-se após o batismo de Jesus, onde, no Jordão, ele fora reconhecido como Filho Amado pelo Pai e investido com o Espírito (de Deus) para a missão de proclamar o Reino. O evangelista pretende mostrar para a sua comunidade como Jesus viverá esta dinâmica de ser o filho amado de Deus. Com efeito, é interessante que Lucas explicite o fato de Jesus ter ido para o deserto com a força do Espírito. Do início ao fim, a vida e a missão de Jesus serão marcadas pela presença do Espírito Santo.

 

Uma primeira constatação sobre a ida ao deserto. Jesus toma o caminho contrário: das margens do Jordão, ele retrocede para o deserto. Faz, pois, o caminho do povo de Israel, que para tomar posse da terra prometida passou pelo deserto e cruzara o Jordão para adentrar e conquistar aquela promissão de Deus. Lucas pretende ensinar para sua comunidade que o Senhor é a imagem e símbolo do povo de Israel, e enquanto tal, assume e refaz a história de seu povo. Todavia, Ele supera seu povo, porque foi fiel a Deus durante as seduções do diabo, coisa que os israelitas não foram. Uma segunda compreensão acerca do “deserto”. Ele não é somente uma localização geográfica e espacial. Antes, é um lugar teológico. É um lugar de provação, mas também de refazimento da Aliança com Deus; um bom lugar para se relacionar com Ele.

 

Mas no deserto, Jesus recebe a proposta de outro caminho. O texto informa que ele fora tentado/seduzido pelo Diabo durante “quarenta dias”. É um tempo simbólico. O número 40 na teologia bíblica indica a existência de um período necessário. É o tempo da duração de uma geração, ou seja, uma vida inteira tinha a expectativa de durar quarenta anos. Portanto, significa que toda a vida de Jesus foi marcada pela prova. Esta é uma das finalidade do texto bíblico de hoje, mostrar que as tentação não foram um episódio isolado em sua vida, mas que elas o acompanharam no decorrer de sua missão, sempre propondo tomar um caminho alternativo ao do amor, do serviço aos irmãos, e da fidelidade ao Pai e ao Reino. O relato também representa um aviso para a comunidade cristã, para que ela não caia na ilusão de que, tendo assimilado e assumido o projeto de Jesus, estar imune às seduções do anti-reino.

 

No v.3, o diabo (lit, divisor e opositor) empreende sua primeira sedução/tentação. “Se tu és Filho de Deus...” Como está traduzido aqui, dá-se a entender que o tentador duvida da identidade e Jesus. Isso é falso. O texto grego é melhor traduzido quando se coloca a frase no afirmativo “Já que és o Filho de Deus”. O diabo quer propor a Jesus que, uma vez sendo Filho do Altíssimo, use todas as suas capacidades e prerrogativas em benefício próprio! Esta primeira tentação/sedução que se apresenta sob a imagem da necessidade e da fome física, diz respeito a maneira de relacionar-se com as coisas. Ela tenta mostrar o perigo de se conceber a missão de Jesus (e da comunidade) a partir da lógica do messias milagreiro, ao que ele se opõe radicalmente, porque não veio ao mundo para resolver os problemas de maneira fácil e, ao mesmo tempo, conforme à lógica do mundo: apoiar-se e reconhecer-se seguro nos bens deste mundo. A vida pede muito mais que pão. Transformar a pedra em pão é uma sedução que revela a mentalidade utilitarista e descartável para com as coisas. Usar as coisas como meio para se atingir uma finalidade. Por isso, a Palavra de Deus será ponto de referência e critério de discernimento para Jesus viver sua missão. Estará ele totalmente alicerçado na Palavra do Pai e a ela será fiel.

 

No v.5, o diabo levou Jesus para o alto, mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo, e lhe disse: ‘Eu te darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isso foi entregue a mim e posso dá-lo a quem eu quiser. Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo será teu’. Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás” (v. 5-8). Uma constatação importante: o evangelista não quer descrever o diabo como dono do mundo; mas está denunciando que o poder é diabólico quando exercido na exploração, quando promotor de injustiça e opressão. Lógica esta a qual o Evangelho e o Reino de Deus se contrapõem pelo amor, pelo serviço, a justiça e a fraternidade. Jesus, de sua parte rejeita o poder. Aquele que detém e retém poder e riqueza é porque o recebeu do diabo. Deus não dá poder a ninguém; dá seu Amor, que se faz serviço. Por isso, nesta sedução, o Cristo é tentado em sua relação com o próximo, isto é, como criar e estabelecer relações com os irmãos. Será pela relação de serviço que Jesus pautará sua vida no trato com os irmãos. Nunca pelo poder.

 

A terceira tentação/sedução acontece em Jerusalém. No v.9, o diabo leva Jesus até o alto do templo. Havia uma tradição popular que o messias, desconhecido de todos, subitamente apareceria no alto do Templo de Jerusalém. O evangelista usa o termo Jerusalém para identificar toda o judaísmo – a instituição religiosa – do tempo de Jesus. Nessa perspectiva, a terceira tentação/sedução de Jesus se dá na ordem de sua relação com Deus: tomar o lugar do Pai, utilizando também das estruturas religiosas que legitimam uma falsa imagem acerca de Deus. “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! Porque a Escritura diz: Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!' E mais ainda: 'Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra” (v.9-11). Esta tentação/sedução entende-se na ordem do “faça o que o povo quer ver”, ou, “dê o que eles querem”. “Faça um gesto espetacular ou qualquer coisa de extraordinária”. “Já que és Filho de Deus, você não precisa dele. Podes fazer o que bem entender”. Mas Jesus não irá ao encontro das expectativas das pessoas, mas as tornará livres destas. Por isso, a sua resposta desarticula o tentador: “Jesus, porém, respondeu: "A Escritura diz: 'Não tentarás o Senhor teu Deus” (v.12). O senhor possui uma grande fidelidade ao Deus que chama de pai, sem qualquer necessidade de requerer para si ou exigir Dele gestos extraordinários. É, também, uma forma muito clara de se mostrar que Ele rompe com qualquer tipo de inconsequência em relação à condição de homem verdadeiro e de Filho de Deus em sua missão. Este princípio vale igualmente para o discípulo do Reino: este, na missão, não poderá ser um inconsequente, porque a obra não é sua, mas de Deus. Há que se saber tirar e medir as consequências da missão, do agir e do querer de Deus em Jesus. Para Jesus e para seus discípulos não vale a lógica do “Deus nos acuda”.

 

As seduções acabam com uma afirmação enigmática de Lucas: “Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno” (v.13). O momento oportuno é aquele momento em que Ele estará suspenso na cruz. Ali, as tentações/seduções voltam novamente através da multidão e dos lideres religiosos, dos soldados e do malfeitor, que, insultando a Jesus crucificado provocam-no a agir em benefício próprio (“Já que sois o Cristo, salva-te; desça da cruz (Lc 23)”. Na cruz, última tentação de sua missão recusará uma vez mais as seduções e mostrará a sua fidelidade ao projeto de seu Pai e do Reino que anunciou.

 

Que estejamos dispostos a percorrer com Jesus as dinâmicas e caminhos percorridos por Ele. Como Ele, também nós não nos encontramos imunes. Como Ele, também somos convidados a deixar-nos conduzir pelo Espírito de Deus, a Força, condição e dinâmica de Amor servidor. A partir dele, somos chamados a reorientar nossas relações com as coisas, com os outros (também na ordem do bem comum), e a nossa relação com Deus.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Pároco de São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


quarta-feira, 5 de março de 2025

QUARTA-FEIRA DE CINZAS - Mt 6,1-6.16-18

 


A Igreja inicia com a quarta-feira de cinzas a Quaresma, tempo de graça, reconciliação e preparação para o ápice da vida cristã que é a celebração da Páscoa do Senhor. Com este período litúrgico favorável, a comunidade dos fieis é chamada a viver em plenitude este tempo necessário de conversão, de mudança de mentalidade e de atitude. Eis o sentido do simbolismo do qual é revestido o número quarenta. Na tradição do Antigo Testamento este número já aparece com força metafórica: alude ao tempo da duração de uma geração, ou seja, de uma vida. As vezes pensamos que os números que aparecem nas Sagradas Escrituras são sinônimos de verdade cronológica. É importante, porém, acolher a dinamicidade simbólica que eles trazem consigo: ao dizer que a quaresma, assumindo a dinâmica da duração de uma vida, a Igreja deseja enfatizar que a quaresma assume os contornos da vida humana. A vida humana e histórica é uma quaresma preparatória para a nossa páscoa definitiva. É um constante chamado para que o ser humano possa vestir-se da conversão constante, mirando a sua estatura da Graça que é a estatura de Cristo, o Ressuscitado.

 

A quaresma não pode ser vista e compreendida como tortura ou “autoflagelo” do coração e da alma. Ela é, sim, sinal de mortificação para aquilo que é morte em nós e nos tira a condição de filhos de Deus. As cinzas que são colocadas sobre nossas cabeças possuem um duplo significado: morte e vida. Morte no sentido de recordar a condição finita do ser humano como pó. Mas de vida também. Na vida rural, em tempos antigos, as cinzas eram utilizadas como fertilizante durante o inverno para ajudar a manter o solo rico, a fim de que a plantação pudesse florecer. Assim, ao receber as cinzas sobre a cabeça, o fiel se abre ao convite para bem preparar a sua caminhada, recordando que é do pó da terra, da adamah performada por Deus; como também  é um solo a ser cultivado para que nele floresça a força da vida nova através da Páscoa da Ressurreição do Senhor. Para bem iniciar esta quaresma, a liturgia nos propõe constantemente um apelo contido em Mt 6,1-6.16-18. Texto que propõe um caminho seguro para conduzir a vida neste exercício quaresmal, a fim de frutifica-la em vida plena: a relação com Deus (oração), com outro (caridade), e, por fim, consigo mesmo (jejum).

 

O texto de Mt 6,1-6.16-18 situa-se no sermão da montanha – discurso inaugural de Jesus na catequese mateana. Neste primeiro discurso/catequese, o evangelista mostra o Cristo como verdadeiro interprete da Palavra de Deus, qual novo Moisés, e, portanto, Messias através da Palavra. Neste bloco, que se estende até o capítulo sétimo, o Senhor ressignificará todas as tradições religiosas de Israel e transmitirá uma interpretação autêntica da Palavra de YHWH. As três práticas da piedade judaica – oração, caridade, jejum – também serão dadas um sentido verdadeiro através do ensinamento do Mestre. Feita uma breve contextualização, já se pode mergulhar no horizonte do texto.

 

“Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serdes vistos por eles. Caso contrário, não recebereis a recompensa do vosso Pai que está nos céus” (v.1). Este versículo funciona como uma lente através da qual se pode ver corretamente o significado das orientações feitas por Jesus nos versículos seguintes no que tange as práticas da piedade judaica. Ele adverte os discípulos e a multidão a serem atentos em não praticar a justiça diante dos outros. O que seria esta justiça? Não é aquela do tribunal, pertencente ao sistema jurídico. Por justiça, ao interno do panorama bíblico, se entende como sendo o agir de Deus. O Senhor está chamando a atenção do discípulo – e de todos aqueles que escutam ou leem seu evangelho) para que suas ações, seu agir, sejam conformes ao agir de Deus, para poder ter em si a vida mesma do Pai. O agir deles não pode ser pautado pela recompensa dos homens, ou seja, ser visto e elogiado por eles. Se assim o fizer, não receberão a recompensa do Pai do céu. Entenda-se muito bem o que Jesus quer dizer com o termo recompensa. Na verdade, ele aparece de duas maneiras: pagamento (gr, μισθός/mistos) e restituição (gr. ἀποδίδωμι/apodidomi). Aplicado aos discípulos, para se falar de recompensa o evangelista utiliza o termo apodidomi, ou seja, restituição. A restituição é a devolução. Jesus está ensinado aos discípulo que se o agir deles (justiça) for semelhante ao do Pai, Este restituirá/devolverá à pessoa a sua condição de filho de Deus. Aquele que agir como o Pai age, será sempre restituído à sua condição original: filho de Deus. Esta primeira orientação servirá de fio condutor para as outras três a seguir.

 

No v.2, Jesus chamou a atenção dos discípulos e da multidão para o cuidado com a prática da esmola. Um dos pilares da espiritualidade judaica. Não realizar esta prática como fazem os hipócritas, só para serem notados ou elogiados publicamente na sinagoga. Ele está se referindo a uma prática muito constante de seu tempo. Sempre alguém, dentro ou fora do ambiente de culto cumprisse este gesto era chamado pelo rabino diante de toda a assembleia, elogiado pela sua atitude publicamente e convidado a se sentar num dos lugares de honra e destaque. Recebendo, assim, seu salário, o seu “mistos”. Com muita frequência o Cristo deve ter visto uma cena como esta. Mas para Ele, esta prática não pode assumir uma imagem teatral ou de aparência. Deve ser uma prática constante de empenho pelo bem do outro que necessita. E não uma ação isolada. Por isso ele orienta: “Ao contrário, quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita, de modo que a tua esmola fique oculta. E o teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa” (v.3-4). A esmola/caridade deve ficar no segredo. A mão esquerda, que é aquela que não faz o bem, não pode saber o que a direita, responsável pela ação boa está fazendo. A prática da caridade/esmola é a ação que possibilita sair de si para colocar-se em relação com o outro, com suas necessidades. Sem alarde. Porque este é o agir do Pai celeste: ele é o primeiro a sair de si, em direção da humanidade. É ele o primeiro a doar-se, sem esperar recompensas. Quando o discípulo age da mesma forma que Deus, ele é restituído em sua condição de filho de Deus. “E o teu Pai, que vê o que está oculto, te restituirá a Sua imagem”.

 

“Ao contrário, quando tu orares, entra no teu quarto, fecha a porta, e reza ao teu Pai que está oculto. E o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará a recompensa” (v.6). Depois de Jesus chamar a atenção sobre um segundo pilar da piedade judaica, a oração, que não deve ser feita como mero teatro, como os hipócritas (atores da fé) fazem, ele orienta a, literalmente, entrar na despensa (gr. ταμεῖον). A despensa das casas do tempo de Jesus eram lugares fechados, escuros, sem janelas, e, portanto, silenciosos. É um sinônimo para um lugar tranquilo, sem distrações. Sem oportunidades de ser visto. Mas, ao mesmo tempo, representa um lugar da simplicidade do lar ou da vida. É possível entrar em oração no metrô, no carro, na praça inclusive, desde que se silencie tudo aquilo que possa perturbar, e, numa atitude de interiorização estabelecer relação com o Pai e com Jesus. O que Ele não quer é que esta relação chamada oração seja ocasião de espetáculo, de exibição pública.

 

A oração precisa ser muito bem compreendida. Muitas vezes se pensa ou se cresce com uma mentalidade equivocada acerca desta prática. Por exemplo, a mais comum, a de pensar que ela pode, por conta da insistência “perseverante”, mudar a vontade de Deus. A partir das muitas palavras que se usa, da atitude as vezes arrogante, ou mesmo com a mentalidade da troca – faço isso para receber aquilo – tentar comprar ou dobrar a Deus, a fim de que ele realize nossos caprichos. Não é assim. A verdadeira oração é, acima de tudo, uma atitude de verdadeira relação pessoal com o Pai e com Jesus. O tempo ou momento do cultivo da relação com ele. Podendo, sim, apresentar a vida, a história, a angustia, os problemas. Mas sem pensar que Ele os resolverá num passe de mágica ou sem nossa cooperação. A oração é apresentar a nossa vida e história diante do Seu olhar, contemplando o olhar Dele e percebendo para onde este olhar está apontando, de modo que consigamos direcionar a vida para onde ele aponta! A eficácia da nossa oração consiste em olhar para a direção em que está o olhar de Deus e discernir para qual direção ele aponta em relação à nossa vida. Quando o discípulo olha para a mesma direção em que o Pai olha, através da oração que se dá no silêncio, ele é restituído em sua condição de filho de Deus. “E o teu Pai, que vê o que está oculto, te restituirá a Sua imagem”.

 

“Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que os homens não vejam que tu estás jejuando, mas somente teu Pai, que está oculto. E o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará a recompensa” (v.18). Jesus encerra sua interpretação tocando na prática do Jejum. Para ele, não há razão de se fazer esta prática com espírito e atitudes fúnebres, pois o noivo (que é ele mesmo) está no meio da festa. O que se precisa é mudar a mentalidade. O jejum que o Senhor deseja propor é aquele que socorre o irmão. Quando se vai ao encontro da necessidade do outro, tendo a autonomia e a liberdade de se abrir mão ou renunciar mesmo àquilo que lhe pertence em favor daquele, então o jejum não será causa de tristeza, e sim de alegria, porque foi gerado vida naquele que não a possuía. É a capacidade de saber ler em si os sinais de que tal coisa (alimento, vestimenta, recurso, oportunidade) não fará falta e poder renunciar aquilo para que o outro tenha. Não é o que está sobrando, mas é o que não fará falta, e que pode estar fazendo falta para o outro, por isso, posso abrir mão. Equilibrar-se, através do Jejum, para poder nutrir ao outro naquilo que lhe falta e, que, portanto, está a gerar desequilíbrio na vida dele. Assim age o Pai do Céu com seus filhos. Quando o discípulo age da mesma forma que Deus, ele é restituído em sua condição de filho de Deus. “E o teu Pai, que vê o que está oculto, te restituirá a Sua imagem”.

 

Para viver um pleno itinerário quaresmal se faz necessário assimilar o agir do Pai celeste. Só assim será possível florecer em ressurreição e vida.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Pároco de São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 31 de agosto de 2024

REFLEXÃO PARA O XXII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 7,1-8.14-15.21-23:

 


Após cinco domingos meditando o capítulo sexto do evangelho segundo João – o discurso sobre o Pão da Vida – a liturgia retoma a leitura da catequese de Marcos, a partir do capítulo sétimo. O bloco narrativo ao qual pertence esta perícope é o da seção do pão e do peixe. Temas que percorrem Mc 6 – 9. O pão está sempre relacionado ao ensino de Jesus. No texto sugerido para este domingo, os fariseus interrogam o Senhor devido ao fato de que seus discípulos comem o pão sem lavar as mãos. Mais uma controvérsia entre os fariseus, mestres da lei e Jesus. Esta, agora, toca o tema da pureza ritual, a qual será reinterpretada pelo Mestre através do ensinamento proposto pelo texto de hoje.

“os fariseus e alguns mestres da Lei vieram de Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus” (v.1). Marcos oferece uma informação interessante e assaz importante para a compreensão da narrativa. Trata-se de uma intenção maldosa da parte dos chefes religiosos contra Jesus. O evangelista utiliza o verbo synago (gr. συνάγω), o qual dá origem à palavra sinagoga (lit. lugar da reunião). Por que esta informação é importante? Precisamente porque a estrutura sinagogal, que representa uma instituição do judaísmo, se coloca como antagonista ao evangelho e a proposta de Jesus. Portanto, ao informar que os chefes religiosos se reuniram ao redor dele, o evangelista que mostrar que haverá conflito, sempre com a intenção de apanhar e denuncia-lo.

Ora, o que vem fazer na Galileia, terra jamais pisada por eles, estes chefes religiosos de Jerusalém? Fiscalizar a conduta de Jesus. Os mestres da Lei e os Fariseus são aqueles que observam rigorosamente, letra por letra, a Lei. Ambos se sentem privilegiados por cumprir cada letra ou vírgula do preceito, e, por isso, se consideravam separados, salvos e justos diante dos homens e de Deus. A conduta de Jesus, subversiva, errática, “herética” (porque violava os padrões deles), com certeza já havia sido denunciada pelos chefes religiosos da Galileia aos de Jerusalém. Todavia, chama a atenção o motivo da procura deles: os discípulos estão descumprindo os preceitos da pureza ritual. Não Jesus.

“Eles viam que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado” (v.2). No tempo e na sociedade de Jesus, sempre que um discípulo realizava algo que fosse destoante do comportamento previsto pela Lei, os líderes religiosos procuravam o mestre daquele discípulo, para censurá-lo. Por isso, diante da atitude dos discípulos, os mestres da lei e os fariseus buscam a Jesus. Qual o problema? Comer o pão sem ter purificado as mãos.

O problema aqui não é de ordem higiênica, mas se baseia na quebra da prescrição da pureza ritual. Entendamos: todas as vezes que um judeu piedoso saia de casa, ao voltar deveria lavar as mãos, pois, durante o percurso poderia ter – sem consciência – tocado em algo considerado impuro pela Lei, e, em virtude disso, ter sido contaminado com a impureza. Nesse sentido, ela ficava distante de Deus. O descumprimento desse preceito pelos discípulos e, certamente também por Jesus, se tornava uma denúncia a essa mentalidade religiosa que reduzia a relação com Deus a práticas ritualistas e exteriores. um sistema religioso totalmente baseado no cumprimento de regras e descomprometido com a ética. Qual o perigo para o qual Jesus deseja alertar? O cumprimento minucioso das regras pode levar as pessoas a compreenderem-se autossuficientes e imaginarem ter mérito diante de Deus.

“Os fariseus e os mestres da Lei perguntaram então a Jesus: "Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?" (v,5). A pergunta que os chefes religiosos colocam para Jesus revela o motivo da procura por ele, ao mesmo tempo que deixa bem claro o engano deles. Eles denunciam que o Senhor está violando um preceito. Mas, atenção: um preceito dos antigos. E Não de Deus. Neste ponto, Marcos faz questão mostrar o equívoco: os fariseus e mestres da lei privilegiam as interpretações humanas, isto é, as prescrições da Lei de Moisés, feitas pelos mestres de Israel. Seguem as tradições dos pais, dos antigos. Com isso, o evangelista revela que estes chefes religiosos preferiam suas tradições e invenções à Palavra de Deus. Ora, além dos mandamentos da Torá enquanto Lei escrita, incluindo as leis do Levítico, os judeus piedosos, a exemplo dos fariseus, seguiam também as da “tradição oral”, às quais atribuíam o mesmo valor da Lei escrita. Estas tradições, mesmo sendo interpretações, eram tidas como sagradas, e a não-observância delas era considerado pecados graves, sendo punidos até mesmo com a morte.

A resposta de Jesus desmascara os chefes religiosos, nos v.v de 6-7: “Jesus respondeu: "Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: 'Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos”. Citando Is 29, o Senhor denuncia a incoerência da vida destes fariseus e mestres da lei: uma espiritualidade ou vida de fé desconectada da vida real. Uma prática religiosa puramente exterior (língua) que não brota do interior (coração),  e, ao mesmo tempo, esquizofrênica, cindida com a realidade. Jesus os chama de hipócritas. Na antiguidade, os atores que encenavam as tragédias ou comédias gregas, ao entrarem nas arenas para atuar se vestiam com uma máscara a “hipocrites”. Grave! O Cristo está jogando-lhes na cara que a religiosidade e vida de fé é um verdadeiro teatro; uma encenação realizada no palco da religiosidade. E, no v. 8, a denúncia: “Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens". Denuncia que o projeto de vida deles não tem como centro o mandamento (a Palavra de Deus), mas seus projetos, preferências e verdades pessoais.

O texto litúrgico salta imediatamente para os v.v 14-15, mostrando Jesus corrigindo a visão dos fariseus e mestres da lei para a multidão: “Escutai todos e compreendei: o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior”. A impureza para Jesus consiste na incapacidade de relação com Deus. E ele trata de explicar para os discípulos este tema de forma muito clara nos versículos finais.

Parece que o texto continua até o final com o mesmo público, a multidão, mas não. A fala de Jesus é dirigida aos discípulos, porque o texto litúrgico omite a transição de personagens. “Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo. Todas estas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem" (v.21-23). Aos discípulos, o Senhor trata de deixar bem claro que não há impureza por contágio exterior. A impureza, entendida por ele como incapacidade/impossibilidade de relação com Deus, nasce do coração. Sede das intenções e vontades do ser humano, conforme a antropologia bíblica, este órgão funciona como a consciência/razão humana. Dali nascem todas as escolhas, positivas ou negativas.

Para o Cristo, a impureza, como impossibilidade de relação com Deus, nasce do coração humano, do interior, pois é dele que surgem todas as atitudes que podem ferir a relação com o outro. São treze as atitudes elencadas, e todas elas estão totalmente enraizadas nas relações humanas. Cada uma delas é um profundo atentado à relação com o outro. Para Jesus é muito claro: não existe relação com Deus, que não passe pela relação com o próximo. As relações humanas interpessoais e fraternas são um verdadeiro termômetro para a vida de fé. Por isso, de nada adianta uma religiosidade impecável, irrepreensível, perfeita, se ela não se traduz em relação com quem está ao redor. E aqui, não se tratam de dificuldades nas relações, mas sim de possibilidade de eliminação delas. Estas atitudes matam as relações fraternas, pois elas objetivam, coisificam, instrumentalizam em descartam as pessoas. Para Jesus, isto é o que torna o homem impuro.

Diante do texto, quais mentalidades equivocadas travestidas de preceitos religiosos me transmitem uma imagem equivocada de Deus? Quais preceitos me impedem de relacionar-me com Jesus? Quais atitudes interiores, presentes em mim, podem eliminar a relação com outro?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 11 de maio de 2024

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR - Mc 16,15-20

 

O evangelista Marcos conclui seu evangelho com o anúncio da ressurreição de Jesus às mulheres, incumbindo-as da missão de comunicar aos onze que se dirijam de Jerusalém para a Galileia. O ressuscitado os encontrará lá. No entanto, amedrontadas, as mulheres fogem. Abruptamente, o evangelista interrompe a narrativa, pondo um ponto final em seu evangelho (Mc 16,1-8), o que chamamos de final original. O que suscitou certo incômodo nas comunidades cristãs do primeiro século. Por isso, a Igreja, no século II acrescentou um segundo final ao primeiro evangelho, considerando-o como final canônico, oriundo da tradição eclesial das comunidades pós-pascais. Trata-se do texto de Mc 16,9-20. A solenidade da Ascensão, no entanto, serve-se dos versículos finais deste capítulo dezesseis, Mc 16,15-20.

O Mistério da Ascensão, dentro dos acontecimentos pascais, tem a intenção de prolongar o tempo do Ressuscitado em meio aos discípulos, de modo a ajuda-los a viver e amadurecer a experiência da vida que venceu a morte. É verdade, que, quem periodiza o tempo dos eventos pós-pascais é o evangelista Lucas. Marcos – que é o evangelho a ser meditado – nem se preocupa em quantificar cronologicamente o evento. Mas o terceiro evangelista foi muito sábio ao estabelecer este período, que não é essencialmente cronológico, mas teológico. O número 40 marca “um tempo necessário”. É o período de uma geração. Nesse sentido,  após este período teológico, de acordo com o evangelista, Jesus é entronizado (colocado à direita de Deus) no céu. Isso significa que a experiência dos discípulos feita com o Senhor Ressuscitado havia sido suficiente para se compreender a novidade da ressurreição.

No v.15, o evangelista recorda a ordem de Jesus: devem sair – andar – ir, e não ficarem parados e fechados num único lugar, a fim de proclamar a Boa Nova. Através deste mandato, Marcos recorda os primeiros capítulos de seu evangelho, a missão dada aos quatro primeiros: pescar homens. Devem ir aos homens e mulheres de seu tempo e retirar lhes das situações de morte e dar lhes vida (Mc 1,16-20). Iluminados pela Ressurreição/Ascensão de Jesus, os discípulos são convidados a ressignificar e reanimar a própria vida e a Missão recebidas. Mas em que consiste esta Boa Notícia? Consiste no Amor de Deus que atinge toda criatura. Importantíssimo este versículo. Em nenhuma parte dele se fala em converter as pessoas. Mas somente: proclamar/anunciar o Evangelho. Somente o Espírito e o Evangelho geram a conversão no indivíduo. Nunca o pregador. Este é apenas instrumento. E o conteúdo da pregação e da proclamação, isto é, o Evangelho é sempre oferta gratuita; uma proposta. Jamais uma imposição. Quem faz acontecer a obra é Cristo e Seu Espírito.

Dos v.16-18, o Jesus de Marcos elenca os efeitos do anúncio da Boa Noticia naqueles que aderiram a ela. “Quem foi batizado será salvo. Quem não foi já está condenado”. Este dito do Senhor merece atenção e deve ser compreendido, de modo a evitar qualquer mentalidade exclusivista e excludente. Aquele que confronta sua consciência com Jesus, e, percebendo seu significado vital, adere a Ele está salvo. A salvação não pode ser entendida como uma localização como paraíso, céu. Mas a realização plena da humanização da pessoa, a qual acontece unicamente por meio da humanidade de Jesus. Aquele que recusa e faz resistência a Jesus e seu modo de vida, se exclui da Salvação.

No v.17, o evangelista faz a memória dos sinais que acompanharão a vida do fiel, decorrentes da opção fundamental por Jesus e seu projeto. Eles serão os mesmos realizados pelo Senhor durante sua vida e ministério: expulsar demônios; falar novas línguas; pegar em animais peçonhentos e beber venenos; impor as mãos sobre os enfermos para fazer lhes bem. Eles devem ser compreendidos bem, e dentro do horizonte do texto.

1) Expulsar demônios consiste na atitude de libertar as pessoas de todas as forças e ideologias funestas, ou sistemas, anti-projetos e situações que impedem a acolhida do Reino de Deus anunciado por Jesus. Para fazer a experiência com Deus, se faz necessária a plena liberdade. E não se trata, aqui, de exorcismos rituais. A pesquisa teológica e exegética classifica os demônios do tempo e da cultura de Jesus como psicopatologias ou enfermidades estudadas e explicadas pela medicina e pela psicologia atual. Tudo o que era desconhecido na Palestina dos anos trinta era tido como algo sobrenatural.

A própria palavra “demônio” em grego é neutra, ou seja, não possui gênero e pode significar algo ruim ou bom. Por isso, se faz necessário compreender e interpretar esta figura do demônio como sendo as mesmas coisas contra as quais o Senhor enfrentou durante sua missão: a alienação da consciência, ainda que a fonte originária deste fosse a própria instituição religiosa; a exclusão gerada pelos poderes imperiais; a prepotência e autossuficiência dos líderes religiosos; a recusa; a resistência e a maldade. Com efeito, “expulsar demônios”, de acordo com o horizonte do texto, significa eliminar o mal do mundo e comprometer-se com o Bem. Aquele que aderiu, real e profundamente, ao Evangelho elimina o mal de sua vida, e da vida de seu próximo.

Quais são os demônios que precisam ser expulsos de nosso meio? A maldade, a violência, o ódio, a vingança, a indiferença, o desamor, a maledicência, a intolerância, a soberba e puritanismo, arrogância, a autossuficiência, a mentira e a inveja e a  O amor é o antidoto frente ao mal.

Em relação ao 2) “falar novas línguas”, este sinal aponta, na verdade, para realidade da salvação e missão universal, onde o Evangelho encontra-se com a cultura, com a realidade, com homem concreto de todos os tempos e lugares. Uma boa noticia que não exclui, antes, inclui. Para bem compreender estes sinais importa recordar que eles não são dons extraordinários com os quais Jesus dota os discípulos, mas são símbolos de um compromisso: gerar e transformar vidas. Falar a língua do amor, da solidariedade, da fraternidade, da gratuidade, da fraternidade, da harmonia e da comunhão. Estas são as novas línguas faladas pelo próprio Jesus.

Ninguém deverá ser inconsequente ao manusear 3) animais selvagens e peçonhentos, tampouco beber, como tira-gosto, algum tipo de veneno; 4). Serpente e veneno simbolizam, no horizonte cultural da época, tudo o que pode causar mal e ferir. O discípulo que aderiu ao projeto de Jesus deverá ser aquele que se compromete em transformar situações de morte e de perigo em situações e condições de vida.

5) Impor as mãos sobre enfermos para fazer lhes bem: é interessante que o evangelista não use, no original em grego, o verbo “curar (Therapéuo)”, mas a expressão “fazer bem (gr. καλῶς ἕξουσιν / kalós éxousin)”, porque o gesto de impor as mãos, não necessariamente garante a cura. Ora, Jesus não curou a todos! Mas trata-se de um gesto de solidariedade, porque o enfermo, na cultura e na sociedade de seu tempo, era visto como pecador público. A enfermidade era concebida como fruto de um pecado cometido pela pessoa ou por seus antepassados. Quando o Senhor realiza um gesto terapêutico, mais do que a cura física, ele restaura a dignidade da pessoa, reinserindo-a na vida social, novamente. Impor as mãos para fazer-lhes o bem, significa, portanto, a capacidade que o discípulo e a comunidade possuem de se solidarizar, reintegrar e gerar vida.

Depois de comunicar lhes a missão, Jesus foi elevado aos Céus. É necessário compreender a cosmologia da época, isto é, a concepção de universo, espaço e tempo do povo da bíblia. O céu é o lugar da habitação de Deus, e expressa a condição divina.  “E sentou-se à direita de Deus”. Jesus dissera aos discípulos que eles veriam o Filho do Homem sentado à direita do Poder. Esta condição acena para uma posição de honra. Aplicando essa imagem ao Cristo, o evangelista pretende afirmar que Ele cumpriu plenamente a missão de revelar a face misericordiosa do Pai. Por ter sido fiel a ela, isso foi levado em conta pelo Pai, que o enalteceu, ao entronizá-lo a sua direita.

Ação de elevar o Filho é realizada pelo Pai, assim como a ressurreição. A sua elevação não é outra coisa que retornar ao âmbito divino. Desse modo, Marcos visa responder aos assassinos de Jesus: aquele homem que havia sido condenado como blasfemo, e morto por eles, agora está à Direita de Deus, porque Ele mesmo assim o quis. É uma maneira que o evangelista encontra para dizer que o Crucificado pertence, agora, ao âmbito da vida inextinguível.

A ascensão de Jesus não é uma separação ou um distanciamento do mundo e dos homens. O mistério deste acontecimento pretende mostrar que Ele leva consigo a nossa humanidade, porque a fez sua, elevando e glorificando a Carne e a Natureza humana. E, mais ainda, desde a plenitude de sua divindade colabora com a atividade dos seus, como se lê no versículo seguinte: “Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam” (v.20). Subiu aos céus, mas permanece com eles, tornando esta presença ainda mais intensa, e com maior proximidade.

A ascensão do Senhor marca a plenitude (ou a consumação) da ressurreição. O ressuscitado penetra o mundo do Pai, conferindo a sua comunidade a continuidade de Sua missão, proclamando a Boa Nova a toda a criação.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 4 de maio de 2024

REFLEXÃO PARA O VI DOMINGO DA PÁSCOA – Jo 15,9-17:

 


O texto proposto pela liturgia para este sexto domingo da páscoa é a continuidade da alegoria da videira, meditado no domingo anterior (Jo 15,1-8). Jo 15,9-17 toca no tema do amor: o bem mais precioso que Jesus entrega em seu testamento somado ao dom de sua existência. Com isso, chegamos ao coração deste discurso de despedida que o Quarto Evangelho faz memória.

O amor é o dinamismo de vida que o Espírito de Jesus e do Pai realizam na pessoa e na realidade. Amor, que gera uma nova condição relacional entre a humanidade e Deus (amigos; e não mais servos), e a alegria, o distintivo do discípulo e da comunidade cristã.

O Senhor, na continuidade de seu ensinamento iniciado no discurso da videira, declara: “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor” (v.9). O modelo do amor de Jesus é a forma como o Pai O ama. O evangelista usa o adverbio “como” para expressar a unidade existente entre eles. A forma como o Pai ama só pode ser encontrada na existência do Filho. Ele revela através do dom de sua vida, com gestos, atitudes, opções e palavras – durante toda a Sua missão – em que consiste o amor de Deus. 

O leitor-discípulo do Quarto Evangelho não pode se esquecer de que este discurso de despedida se dá junto a mesa. Antes, porém, Jesus realiza o gesto que expressa, profeticamente, a doação da própria vida – a sua capacidade de amar – lavando os pés dos seus (Jo 13). Este, é paradigma – modelo, forma – para a sua vida. Ele expressa a radicalidade do Seu amor.

Mas que amor é este? É importante se deter sobre esta reflexão um pouco. Na antiguidade clássica havia duas formas muito comuns de se falar de amor: Eros (gr. Ἔρως) e Filía (gr. Φιλία). O primeiro, sempre relacionado à ideia da reciprocidade. Consistia na capacidade de nutrir-se daquilo que outro pode oferecer, e, nesse sentido, oferecer-lhe o que falta. Ele está na forma sentimental, buscando identifica-lo com coisas atrativas que suscitam tudo aquilo que é belo. É uma pulsão de vida, inerente à natureza humana criada e desejada por Deus. Interessante: é o próprio Deus que cria o ser humano também com o Eros. É a busca e o anseio por tudo aquilo que pode preencher de sentido e de plenitude a vida. Impulsiona a buscar pelo outro por aquilo que ele pode dar. Esta forma de amor era expressão da vida dos apaixonados. Todavia, este impulso – pulsão – de amor corre o risco de fechar a pessoa em si mesma, e passar a uma dimensão egoística. Não é deste amor sobre o qual fala Jesus.

Quase não utilizado na antiguidade clássica pelos gregos, o ágape é a forma utilizada por Jesus para descrever, expressar e realizar o Seu amor e do Pai. O verbo agapao (gr. αγαπαω) aparece só neste discurso de despedida vinte e cinco vezes, sendo que cinco, só neste capítulo quinze. O amor ágape é a forma do amor incondicional e gratuito; é puro dom. É desinteressado. Não exige nada em troca, muito menos ser amado. Ama, não porque o outro pode corresponder e, como que numa troca, encontrar força de sentido, mas sim porque percebe a falta existente no outro. O amor com que o Cristo ama é aquele que deseja ofertar tudo se si para que o outro tenha tudo; tenha vida. É a capacidade de amar inclusive aqueles que desejam o mal ao próximo; que persegue e odeia. Portanto, é gerador de vida. Ou seja, o Senhor estabelece como Sua forma de vida este modo de amar. Assim, o amor do discípulo deverá ser como aquele vivido existencialmente pelo Mestre. Porque este não é um sentimento, mas uma atitude: doar-se em serviço. Ele não se transmite através de uma doutrina, mas por meio de gestos que comunicam e geram vida.

“Permanecei no meu amor” (v.9b). O evangelista trabalha, uma vez mais, com o verbo “permanecer” (gr. μένω), o qual indica a capacidade e estabelecer comunhão. Como já sabemos, ele alude à temática da habitação de Deus na história e na realidade. Jesus de Nazaré é a habitação – morada – de Deus definitiva. Mas o Senhor instrui o discípulo para permanecer no Seu amor. Ou seja, tornar a forma do amor com o qual Ele vive, como sua morada/habitação. Residir no amor do mestre significa tornar-se Sua morada.

“Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor” (v.10). Jesus fala de “mandamentos” no plural. Mas na narrativa do lava-pés ele mencionou apenas um mandamento, ao qual chama de “novo”. Novo, porque supera em qualidade todos os outros mandamentos da lei de Moisés, e não por ser algo a se acrescentar ao decálogo. Existe um único mandamento: o amor. Quando este é vivido através das atitudes e gestos servidores pelo discípulo ele se torna um mandamento único, que tem a capacidade de superar os demais. Por isso, o amor transformado e vivido na dinâmica do serviço se torna a única garantia de comunhão com Jesus e o Pai. Aquele que acolhe em dom e resposta o mandamento de amor, faz a experiência da comunhão com Deus e se torna sua morada; sua habitação.

“Eu vos disse isto, para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena” (v.11). Jesus insere um ensinamento novo na catequese acerca do amor: a alegria. O distintivo do fiel discípulo é a alegria. Esta, não depende das alternâncias da vida. A alegria provém da capacidade de sentir-se amado. Ela é a constante expressão daquele que encontrou o verdadeiro sentido da vida. Assim, a alegria consiste na capacidade de gerar vida e amor ao próximo. Não consiste numa vida sorridente, desconexa da realidade nua e crua que rodeia; não se trata de uma euforia entusiástica, ou mesmo, inconsequente. Uma pessoa/discípulo que tem em si a alegria do Seu Senhor é aquela que, mesmo diante das dificuldades e obstáculos de sua vida sabe e consegue transmitir a plenitude de vida de Jesus àquele que ainda não a tem ou à quem a perdeu. A alegria, mais do que um sentimento eufórico, é uma atitude de vida.

No versículo 13, emerge uma temática que perpassará os v.v.14-16. A amizade. “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos”. Jesus inaugura um novo modo de relação com Deus. Ele se serve do contexto da relação mestre-discípulo. Na sua época esta relação acontecia de modo muito distante. O discípulo era servo do seu mestre, e, este, por sua vez, lhe era superior, como um patrão. Todavia, a relação com Jesus (e com Deus) não se dá a partir dessa ótica. Ele chama seus discípulos de amigos. Este, é aquele que nutre proximidade, intimidade, constância, familiaridade. Sensível ao que o outro necessita e se põe a realizar, sem que lhe seja mandado ou pedido. Entre os amigos não existe maior e menor. Não há hierarquias. Há igualdade e horizontalidade. O Senhor não precisa de servos porque ele mesmo se põe a servir a humanidade. O que ele necessita é de pessoas que, como ele e com ele, colaborem com este serviço. Mas isso só é possível se o discípulo guardar, no sentido de observar, praticar, realizar o mandamento: viver a vida na dinâmica do amor gerador de vida.

“Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e para que produzais fruto e o vosso fruto permaneça” (v.16). O fruto que Jesus e o Pai desejam e esperam do discípulo é o amor. A comunidade dos discípulos não pode ser uma comunidade imóvel. Pelo contrário, ela deve ir. O evangelista usa um verbo de movimento, a fim de indicar para os discípulos que a comunidade deve viver e frutificar esse amor indo ao encontro das pessoas.

O texto de hoje propõe algumas perguntas: como temos vivido nossa relação com Jesus, na condição de servos, ou temos ousado viver na condição de amigos? Em nossa vida e em nossa comunidade a alegria tem sido o distintivo de que somos discípulos e comunidade de Jesus? Como temos vivido na prática o mandamento do amor?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 27 de abril de 2024

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DA PÁSCOA – Jo 15,1-8:


 

A liturgia deste quinto domingo da páscoa continua a leitura e meditação do Quarto Evangelho. Na semana anterior, o evangelista apresentou a alegoria do Bom Pastor. Jesus se autodeclarava o “pastor ideal”, “exemplar”, modelo, porque agia de forma diferente daqueles que deviam agir como pastores do povo. A exemplaridade deste pastor se verificava pela capacidade de colocar a Sua própria vida em jogo, por causa de suas ovelhas. O texto evangélico deste final de semana apresenta outra revelação essencial do Senhor. Declara ser a videira verdadeira.

O texto de Jo 15,1-8, no horizonte da catequese joanina, encontra-se ao interno do livro da glória – a segunda parte do Quarto Evangelho. O contexto imediato em que estes oito versículos se encontram é o do bloco discursivo que compreende o Testamento de Jesus (Jo 14 – 16), através do qual o evangelista concatena e faz memória do ensinamento do Senhor destinado aos discípulos que com ele se põem à mesa. O testamento representa o elenco dos bens importantes que se deixa para alguém muito amado. Ele sempre expressa àqueles que o recebem a última vontade do doador, e, via de regra, a forma através da qual devem se empenhar por viver. Por isso, este discurso de despedida transmite e apresenta a forma através da qual o discípulo deverá viver depois da páscoa do Mestre, a fim de continuar a Sua obra, e perpetuar sua existência no seio da comunidade. 

Qual o conteúdo do testamento de Jesus? No desenvolvimento deste bloco discursivo de 14 – 16, o Senhor transmitirá o mandamento novo do Amor e o dom de sua vida – que já foi explicitado pelo gesto do lava-pés. Através de imagens muito vivas, o evangelista faz a memória das palavras do Cristo aos discípulos, de modo a ensinar para a sua comunidade qual é a forma exemplar de se viver a vida do Filho de Deus. Feita a contextualização do texto ao interno do conjunto da catequese joanina pode-se tomar os versículos que ajudarão na assimilação da mensagem de salvação.

O v.1 inicia o ensinamento de Jesus com uma solene declaração “Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor”. Novamente o evangelista se recorda da expressão de revelação do nome divino. Com essa proclamação, ele pretende transmitir para sua comunidade que Deus está plena e substancialmente presente em Jesus, em suas obras e palavras. Ele é o lugar definitivo da revelação e da ação do Pai.

A declaração adquire peso ainda maior porque Jesus se declara a “videira verdadeira”. Ora, se ele diz ser a verdadeira, então existiria uma videira falsa? Há que se entender o sentido da palavra “verdade” e, então, o significado do adjetivo “verdadeiro”. Por “verdade”, o evangelho de João entende o conceito de fidelidade. A palavra Aletheia (gr. ἀλήθεια), utilizada pelo evangelista traduz o hebraico “Emet” (אמת hbr.), que significa “fidelidade”. Acontece que esta palavra traz consigo outra, indissociável, “Hesed” (חסד hbr.), que significa amor. Portanto, todas as vezes que, no Quarto Evangelho aparecer o termo verdade se deve entender por “amor fiel”. Assim, o adjetivo “verdadeira” significa fiel, aquele que age com um amor fiel. O senhor está se declarando como a videira fiel, isto é, aquela que conseguiu viver e expressar toda a fidelidade e o amor de Deus.

Na tradição religiosa do povo de Jesus, a videira (e a vinha também) era a imagem simbólica aplicada a Israel. O profeta Isaias, em seu cântico (5,1-24), narra a empreitada de um amigo seu que construí uma vinha numa fértil encosta, e esperou dela uvas boas. Frutos bons. No entanto, só produziu frutos ruins, uvas amargas. Jeremias é mais direto na crítica que faz à Israel, dizendo que o YHWH plantou uma videira excelente, mas que havia se transformado numa parreira podre e selvagem. A primeira vinha (videira), portanto, era Israel. Este, não conseguiu ser fiel ao projeto de Deus, deixando-se sempre seduzir pela idolatria e rompendo com a Aliança e com amor fiel de Deus. Jesus, ao contrário, vive na fidelidade e no amor do Pai. Por isso, supera a primeira vinha.

Jesus declara que o Pai é o agricultor. Que imagem bela. Pois, aquele que cuida da vinha se mostra próximo dela. O vinhateiro proporciona a nutrição e o cuidado. Ao dizer isso, o Senhor está revelando que é Pai que nutre e cuida de Sua vida. A seiva que sustenta a existência do Filho é o amor fiel de Deus. O Cristo, como videira, transmite aos seus ramos a mesma linfa de vida que recebeu do Pai.

O v.2 continua o ensinamento de Jesus: “Todo ramo que em mim não dá fruto ele o corta; e todo ramo que dá fruto ele o limpa, para que dê mais fruto ainda”. Este versículo precisa ser bem compreendido para não gerar confusões. O Ramo, que mesmo estando unido à videira, e não transformou a seiva de nutrientes em uvas, é o discípulo, que, estando em Cristo, não frutificou em amor e alegria. Porém, a palavra final é do Pai, o agricultor. Somente ele, vendo se o ramo produziu ou não, a seu tempo, é quem pode realizar o corte. É uma advertência que João recolhe do ensinamento de Jesus e o destina à comunidade e a todos os discípulos. Não basta estar unido à Cristo. Há que se produzir o fruto. Pois pode muito bem acontecer de se estar na videira e, mesmo assim, ser um galho morto, ou seja, que impede a seiva de produzir o nutrimento e a gestação do fruto. Porém, a última palavra sempre será de Deus no que toca a produção e a qualidade dos frutos.

O ramo produtivo também é purificado pelo agricultor. A limpeza acontece para que este possa produzir sempre mais. Qual é o fruto produzido? Na lógica interna do texto é a lógica e o dinamismo do Amor do Senhor. A forma e modo do amor de Jesus que se doa a todos deve ser o fruto que o galho ligado à videira deve sempre produzir. Este Amor gera alegria

No v.3, Jesus revela a ferramenta da poda utilizada pelo Pai-Agricultor: “Vós já estais limpos por causa da Palavra que eu vos falei”.  A Palavra de Jesus é toda a sua existência, obra e ensinamento, unida à Escritura, a Palavra de Deus. A Palavra de Deus que se verifica unida na de Jesus, quando aceita pelo discípulo, purifica-o. Quem adere a ela fica mais unido ao Senhor e mais produtivo em termos daquilo que Deus espera. Aquele que assimila sua palavra – seu modo de viver e ser – encontra-se intimamente unido à Ele. Logo, produz o mesmo fruto de amor que Ele produz.

Para produzir o sentido da vida de Jesus em si, na vida do próximo e à esta realidade, o discípulo precisa crescer numa atitude muito importante. “Permanecei em mim e eu permanecerei em vós... Vós não podereis dar fruto se não permanecerdes em mim” (v.4). O verbo “permanecer” (gr. μένein/ménein) no evangelho joanino é muito importante. Por isso, ele será recorrente até o final do discurso. João o usa 7 vezes para expressar a união entre o tronco e os ramos, ou seja, entre Jesus e os fiéis, mas também em relação ao Pai. O sentido é o da mútua inabitação de Deus (ou Jesus, ou o Paráclito) nos seus, e deles em Deus.

Da parte de Jesus, trata-se de Sua presença salvífica, como a Morada (hbr. shekiná) de Deus no meio do povo (a Tenda no deserto), só que agora, na própria existência do discípulo. Da do discípulo, na medida em que este abre espaço para a presença do Senhor em si, também ele “permanece” no âmbito de Deus. A sua vida passa ser morada de Deus, e este passa ser a morada do fiel! Por isso esse convite também deve ser lido no horizonte da comunidade joanina – e das gerações futuras.

“Nisto meu Pai é glorificado: que deis muito fruto e vos torneis meus discípulos” (v.8). O versículo oitavo encerra de modo sugestivo a alegoria da videira. Deus é glorificado quando o agir do discípulo corresponde ao agir do Filho. O agir de Jesus consiste na comunicação da vida mesma do Pai para o mundo. O agir do discípulo deverá ser a mesma comunicação de vida e de amor do Senhor. Isto significa frutificar a vida em Cristo.

Quem somos a partir deste texto? Temos permanecido em Jesus, ou em outros referenciais? Que frutos temos produzido e apresentado à Deus? Permitimos que Deus nos pode (purifique, nos limpe), para que produzamos os frutos? Quais galhos secos Deus precisa eliminar de nossa vida, e que nos impedem de sermos fecundos?

Se desejamos saber se Cristo está em nós, cabe verificar se suas palavras – vida e obra – desempenham um papel efetivo e afetivo em nossa vida. Deus deseja ver-nos produzir muito fruto – o amor fraterno – através do qual visibilizamos e testemunhamos ser verdadeiros discípulos de Seu Filho. Do fruto do amor fraterno todos os outros derivam.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


domingo, 21 de abril de 2024

REFLEXÃO PARA O IV DOMINGO DA PÁSCOA- Jo 10,11-18:

 


O capítulo décimo do evangelho segundo João apresenta o discurso (alegoria) do Bom Pastor, proferido por Jesus. A liturgia, ao quarto domingo da páscoa, sempre se serve dos versículos que compõem este capítulo. Qual a sua finalidade para o tempo pascal? Afirmar que somente Jesus tem uma vida plena a doar para o seu rebanho. A exemplaridade desta vida é capaz de dotar a existência de uma vida ressuscitada.

A nível de contextualização, João insere o discurso do Bom Pastor proferido por Jesus, imediatamente após o ocorrido no capítulo nono, a cura do cego de nascença. Após realizar o sinal do restabelecimento da visão ao cego, o Senhor se autodeclara Luz do Mundo. O evangelista tem a intenção de mostrar para a sua comunidade a oposição existente entre as autoridades judaicas – que estão na escuridão – e Jesus. Durante o episódio, os chefes religiosos tomam a decisão de expulsar aquele o ex-cego de seus meios de convivência.

O discurso do Bom Pastor, recolhido no capítulo décimo do Quarto Evangelho, é uma denúncia de Jesus contra a atitude das autoridades religiosas de seu povo; ao mesmo tempo, João o transforma numa verdadeira catequese destinada à sua comunidade, a fim de revelar que o Pastor verdadeiro é Jesus. Pois, desde antiga tradição, a função de pastorear (cuidar, nutrir, conduzir) o povo de Israel pertencia aos líderes. Num primeiro momento, ao rei. Mas, após o exílio babilônico, esta tarefa ficou sob a responsabilidade dos sacerdotes, dos escribas e dos fariseus. Todavia, a partir de um projeto pessoal de poder e ideológico, aqueles que deveriam cuidar do povo, quais pastores à seus rebanhos, estavam mais preocupados consigo mesmos, com seus poderes e domínios, com seus prestígios; com a autoridade moral e religiosa, do que com o bem estar e a plenitude da vida das pessoas. Ao invés de as aproximarem do projeto de Deus, acabavam por afastá-las.

João, para dar ainda mais colorido ao texto, se serve da profecia de Ezequiel. O capítulo 34 daquele livro serve de pano de fundo para que o evangelista transmita sua catequese. O profeta denuncia os maus pastores de Israel, os quais apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (cf. Ez 34,1-2). Por isso, Deus tomaria a iniciativa de destituir os maus pastores e cuidaria, ele mesmo, do rebanho (cf. Ez 34,11). Contextualização feita, estamos prontos para mergulharmos na meditação dos versículos 11, 14 e 16.

O texto inicia-se a partir do v.11, com uma declaração importante de Jesus: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas”. A expressão “Eu sou” (gr. Ἐγώ εἰμι – egô eimí) recorda a condição divina de Jesus, pois essa é a fórmula da revelação, com a qual Deus tinha se revelado a Moisés (cf. Ex 3,14). O evangelista João a emprega somente ao Cristo. Tem a intenção de afirmar que Ele possui a identidade libertadora de Deus, e é a libertação e vida plena que ele está oferecendo. Mas de que modo? Na forma de Pastor. O evangelista recupera esta declaração solene de Jesus, que precisa ser bem compreendida a partir da sua correta tradução: “O pastor exemplar sou eu”. Não é utilizado pelo autor o adjetivo bom (gr. άγαθος / agathos), mas “belo (gr. καλός / kalós)”.

Não se trata de uma beleza estética. O adjetivo Kalós deve ser compreendido a partir de seu contexto, pois, a beleza, da qual os gregos se referiam era a exemplaridade. Assim, o belo era sinônimo de exemplo, modelo. A intenção de João é a de indicar e reavivar o horizonte de sua comunidade, e para aqueles que estão iniciando-se na fé, que Jesus é o protótipo do pastor. É o pastor exemplar. Qual o motivo de sua exemplaridade? A capacidade de empenhar a vida pelas ovelhas.

Em seguida, João mostra a Jesus estabelecendo um contraste entre si e o assalariado mercenário), diante do perigo do lobo. Quem era esse mercenário (assalariado)? Uma espécie de cuidador de rebanho, contratado mediante um salário, para passar a noite com as ovelhas nos campos. Era um funcionário. Exercia o seu trabalho visando unicamente o lucro, a recompensa, o pagamento. Não se importava com a vida das ovelhas. Era indiferente começar o turno com 100 ovelhas e acabar, no dia seguinte, com 80. Receberia seu salário da mesma forma. Evidentemente, esse mercenário, no horizonte do discurso, serve de imagem para as lideranças religiosas daquele tempo. Não se importavam com o povo e suas necessidades. Diante do perigo e das situações adversas que se colocam contra o rebanho, simbolizado pelo lobo, o Pastor Exemplar não tem medo de encará-lo. O funcionário, pelo contrário, pensa mais em si e na recompensa que ganhará, e, por isso, foge. Ou seja, não se compromete com elas.

Interessante notar que em nenhum momento, tanto Jesus como João mencionam a recompensa que o Pastor Ideal ganha. Porque, na verdade, ele não a ganha nada. Ao contrário ele é quem dá. Ou seja, a gratuidade é a marca existencial de sua vida, a tal ponto de oferece-la às ovelhas. Ao contrário do mercenário: aquele, só deseja receber sua recompensa.

“Eu conheço minhas ovelhas e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu empenho minha vida (lit.: dou/ponho minha alma) pelas ovelhas (do Pai!)” (v.14-15). Entre Jesus e os seus discípulos existe uma comunhão que se fundamenta na relação que ele tem com o Pai. É o que o verbo “conhecer” deseja expressar: relacionamento pessoal, e, também, esponsal. Precisamente, nesse sentido é que Jesus se declara como pastor ideal e exemplar. Ele possui uma relação profunda, existencial e um vínculo estreitos com seu discípulo. Ou seja, nesta relação existe a partilha da vida entre pastor e ovelha. Assim como a relação profunda entre os esposo gera vida, a de Jesus (pastor) com seus discípulos (ovelhas) tem capacidade de gerar vida plena e amor. Gerar força de sentido.

“Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir; escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (v.16). Quem são elas? Sempre que se leem os textos bíblicos, se faz necessário e oportuno utilizar a técnica da fusão dos horizontes. Unir o tempo narrado (os anos 30 d.C) ao tempo em que a narração é elaborada ( 90 d.C), o tempo da comunidade de João. As ovelhas seriam os samaritanos (primeiro grupo a acolher a fé em Jesus, após sua ressurreição) e aos greco-romanos provindos do paganismo. Porém, se faz necessário corrigir a tradução de Jerônimo. Não há a conjução “e” (“E haverá um só rebanho e um só pastor”). Esta, que, na verdade está mais para uma interpretação do tradutor do que um esforço de tradução propriamente dito, dá a entender que Jesus deve sair e reunir todas as ovelhas que estão por aí, a fim de trazê-las para o seu rebanho. Não é este o sentido do texto, porque o termo utilizado “aulé” (gr. αὐλή), não significa rebanho, mas recinto. Do qual o Senhor deseja retirar todas as ovelhas que se encontram fechadas por causa dos ladrões e assaltantes mencionados nos versículos introdutórios deste discurso (Jo 10,1-10). Este recinto é o átrio do Templo de Jerusalém. Ele se refere, nesse sentido, à instituição religiosa de seu tempo que pregava uma relação falsa com Deus. Na qual as pessoas eram mantidas.

Na perspectiva de Jesus, e que João sabe muito bem captar, o Templo de Jerusalém havia se tornado um lugar sem vida, que precisa ser superado. Então, é necessário retirar as ovelhas daquele recinto sem vida. Atenção: Ele não deseja retira-las de lá para confina-las em outro lugar. Mas para introduzi-las numa relação nova, de liberdade com Deus, onde não há necessidades de dar nada de si para obter dele seu amor e seu favor, porque Ele concede tudo gratuitamente.

Para onde, então, Jesus, o Pastor Exemplar levará as ovelhas daquele redil e as que estão em outro? Para si mesmo. O rebanho do Senhor não se fixa nem, nem se encarcera num lugar, nas numa Pessoa. Este é o real sentido do versículo no original grego: “e haverá um só rebanho, um só pastor”. Ou seja, um só rebanho unido ao seu Pastor. Uma comunidade identificada com Ele. A comunidade de Jesus precisa estar inteiramente relacionada à Ele. Quando vive dessa maneira, o Senhor sempre se fará presente em seu meio. Através desta comunhão de vida é que ela poderá aponta-lo a que o procura.

Um rebanho unido e identificado a Seu Pastor Ideal, é, na verdade um rebanho que coopera com ele na missão de pastorear, cuidar, alimentar, acolher e apontar caminhos, mais do que carregar ao colo. É um rebanho que assimila a exemplaridade de seu Pastor, ao ser sinal e lugar gerador de vida e amor.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.