sábado, 29 de novembro de 2025

REFLEXÃO PARA O I DOMINGO DO ADVENTO – Mt 24,37-44:

 


Um novo ano litúrgico se inicia na vida da Igreja universal com o primeiro domingo do advento. A partir de hoje, a liturgia proporá como alimento os textos do Evangelho segundo Mateus. Este tempo é marcado pelas dinâmicas da espera, da vigilância e pelo constante apelo à conversão. Ele se divide em dois ciclos: de hoje até 17 de dezembro. Os dois primeiros domingos, e, consequentemente, as duas primeiras semanas são marcadas pela temática da segunda vinda do Senhor. Portanto, um advento escatológico.

A escatologia é uma linguagem teológica para se falar da renovação definitiva desta realidade histórica, do mundo e do universo. Enquanto linguagem – isto é, forma de se dizer e expressar algo – ela assume um amplo vocabulário simbólico. Nesse sentido, todos os textos bíblicos a serem utilizados pela Igreja nestas duas primeiras semanas são enriquecidos de símbolos que precisam ser decifrados e entendidos, e, jamais interpretados de modo fundamentalista, ao pé da letra. É recolher a mensagem através da imagem, e não sua literalidade.

O tempo do advento tem a intenção pedagógica de ensinar, a partir dos dois primeiros domingos que tratam da segunda vinda de Cristo que é para esta segunda vinda que devemos esperar e nos empenhar. Isto posto, podemos iniciar a meditação do texto evangélico de hoje.

O texto que a liturgia propõe é um pouco difícil. Não por sua interpretação, mas devido ao fato de que ele está fora de seu contexto próximo. Sempre se correrá o risco de interpretar equivocadamente o texto quando retirado do seu contexto, traindo, inclusive, as intenções do próprio evangelista. A perícope situa-se no capítulo vinte e quatro, o início do chamado “discurso escatológico/discurso final” da catequese mateana, através do qual, o catequista bíblico tratará de recuperar o ensinamento do Cristo para seus discípulos acerca dos eventos relacionados ao fim. Por isso, discurso final. O tema do fim do mundo, da história e da realidade devem ser sempre refletidos e entendidos não como fim catastrófico ou trágico, mas como um convite a uma nova história. O fim na bíblia nunca é fim de um mundo, mas fim de uma época/era a fim de que outra, totalmente nova, possa surgir. Para falar do surgimento desta nova era (no sentido mais positivo do termo), os autores sagrados se servem sempre de uma linguagem com um vocabulário carregado de elementos e termos simbólicos. Contextualização feita, se pode, agora, mergulhar no horizonte do ensinamento bíblico de hoje.

Nos versículos anteriores, Jesus dirigiu palavras duras contra o templo, contra a cidade santa (cf. 24,1-25), e causou desconforto nos discípulos com as mesmas palavras simbólicas referentes aos sinais cósmicos e terrestres (26-34). Isto provocou neles a expectativa acerca do momento em que tudo isso se realizaria. Diante disso, em Mt 24,35, o Senhor advertiu a seus discípulos que aquela geração não passaria sem que tudo isso acontecesse, mesmo tendo passado o céu e a terra. E, tranquilizando a inquietação deles declarava no v.36 que, sobre aquele dia, somente o Pai teria conhecimento. É, precisamente, sobre este tema que Ele quer trabalhar com seus discípulos, isto é, o modo (o “como”) através do qual deverão balizar e pautar a vida, e não sobre o “quando”.

“A vinda do Filho do Homem será como no tempo de Noé” (v. 37). Jesus recuperar para seus ouvintes a realidade vivida nos tempos desta personagem importante do Antigo Testamento. O que representa este elemento simbólico do dia de Noé? Ele faz referência ao dilúvio. Este, não pode ser interpretado como o fim do mundo, mas o surgimento de uma nova humanidade, em Gn 6 – 7. Nesse sentido, a vinda do filho do homem acontece para propor uma nova forma de vida, uma humanidade renovada. Já se sabe que esta personagem “filho do homem” pertence ao capítulo sétimo do Livro de Daniel, e se trata de um ser (humano) que realiza o querer divino na história com sua própria vida; é aquele que executa o projeto de Deus; que leva a termo o senhorio e o juízo divinos. Filho do Homem não significa a natureza humana apenas, mas a humanidade marcada pela condição divina. Com esta personagem também, é que Jesus se assemelhará para viver a sua missão.

“Nos dias, antes do dilúvio, todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. E eles nada perceberam até que veio o dilúvio e arrastou a todos” (v.38). Jesus fala das atitudes de comer, beber e casar-se. E esse dito precisa ser bem entendido, de modo a evitar interpretações moralizantes e desconectadas da vida. O casamento e as refeições eram, no tempo da sociedade daquela época, acontecimentos comuns e normais. Ele está evocando, portanto, a normalidade, a cotidianidade, o comum enquanto lugar do acontecimento do agir de Deus, indo contra a lógica do extraordinário, do tremendo, do fascínio, do chamativo e gritante. É no “aí e no agora” que Deus acontece. Sabiamente dizia Santa Teresa de Jesus (Ávila, Espanha – Séc. XVI): “Deus está entre as panelas também”.

Jesus ilustra a sua catequese, agora, com a imagem do trabalho, onde dois homens e duas mulheres estarão realizando seus afazeres. Dois serão levados, enquanto que dois serão deixados. Deve se ter presente que a expressão “ser levado(a)” não se refere a algo negativo ou castigo. Ela precisa ser compreendida da seguinte maneira: “ser levado(a)” significa ser “tomado(a)” por Deus. Então, as duas personagens são “levadas” ou tomadas pelo próprio Deus. Significa que elas estão sendo acolhidas por Ele porque souberam acolhê-lo em meio à vida.

Para que a novidade de Deus agindo em meio a essa história, isto é, ser tomado por parte de Deus possam ser percebidas, se faz necessária a vigilância, a qual é e sempre será uma das virtudes do discípulo. “Portanto, ficai atentos! porque não sabeis em que dia virá o Senhor” (v.42). A vigilância  bíblica (também trabalhada na parábola do dono da casa alerta contra o ladrão) não é uma espera passiva e descomprometida, mas ativa/operante, daquele que sabe esperar cooperando com o projeto do Reino através de suas atitudes. É a capacidade da leitura da realidade unida à ação transformadora de Deus através de seus filhos e filhas. Significa romper com a tentação dos braços cruzados, do sentar e esperar cair dos céus, ou do “tudo está garantido”. Ela serve de lente histórica para ajudar a pessoa a enxergar a chegada e a presença deste Deus que vem para tomar-nos para si.

Diante desta vinda do Senhor (sacramentalmente celebrada e vivida através da Palavra e da liturgia) estejamos vigilantes, e não indiferentes como os do tempo de Noé.


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 22 de novembro de 2025

SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO: Lc 23,35-43:

 


A Igreja vive a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo neste último domingo do tempo comum. Com esta celebração, encerra-se o ciclo litúrgico C, dedicado à leitura e meditação da catequese evangélica de Lucas. Por isso, nos é apresentada para a meditação eclesial o texto do “proprium” lucano das narrativas acerca da Paixão e Morte do Senhor.

A pergunta incômoda, “como é possível um celebrar a realeza de uma pessoa a partir do fracasso?”, ou “Por que não mostrar a realeza de Jesus com outros textos que falam do seu retorno glorioso, ao invés destes textos que o mostram crucificado?” É bem verdade que a leitura do ciclo litúrgico A apresenta para esta solenidade o discurso escatológico de Mt 25, através do qual o evangelista pretende mostrar como será o reinado definitivo de Deus. Há um motivo, evidentemente.

O texto litúrgico começa a partir do v.35, situando-nos no contexto imediato, isto é, o calvário e a crucifixão. Os julgamentos diante do sinédrio (processo judaico) e o inquérito diante da autoridade romana, o procurador Pôncio Pilatos, se encarregaram de levar Jesus para ser torturado e sentenciado à pena de morte dos prisioneiros políticos, aqueles que pudessem representar algum perigo para o Império, à crucifixão. Aos pés da cruz encontram-se os chefes religioso do povo, os soldados responsáveis pela manutenção da ordem de execução, e, crucificados junto com ele, outras duas companhias, os malfeitores. É importante ler os versículos seguintes em unidade.

“Os chefes zombavam de Jesus dizendo: A outros ele salvou. Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Escolhido! Os soldados também caçoavam dele; aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre, e diziam: Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo! Acima dele havia um letreiro: Este é o Rei dos Judeus. Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!” (v.v35-39). Os insultos que Jesus que recebe na cruz são um eco das tentações sofridas no deserto, no início de seu ministério. Por isso, eles só podem ser entendidos a partir de Lc 4,1-13.

As tentações foram seduções oferecidas pelo Diabo, com o propósito de fazer com que Jesus se desviasse do projeto de Deus, lhe fosse infiel, e usasse seu messianismo para benefício próprio; elas tinham a intenção de causar a divisão, a cisão, a ruptura entre Ele e o Pai. O caminho mais fácil; a lógica do ser e do ter, do domínio, da submissão e do prestígio. Quando o tentador percebe que nada afastará o Senhor da fidelidade a YHWH, em 4,13, o autor narra: “Tendo acabado toda a tentação, o diabo o deixou até o tempo oportuno”.

Lucas coloca o calvário e a cruz como o tempo oportuno para a última tentação de Cristo. Nesse sentido, os chefes religiosos, os soldados e o malfeitor com suas zombarias e troças, personificam e amplificam a figura do tentador nos momentos finais da vida de Jesus. Assim, a Sua última tentação se dá no calvário e na cruz. Os insultos, são, na verdade, a tentação de se servir de um messianismo fácil, sedutor, poderoso, espetacular; diametralmente oposto ao caminho do Messias encarnado por ele enquanto justo (Sl 22; 33; 69) e servo sofredor (Is 49 – 55). Diante da tentação de salva-se ele se oferece ao Pai, não respondendo através do caminho mais fácil. Torna-se, pois, rei de si mesmo e de suas vontades.

No meio daquele vozerio, alguém fala com consciência: um malfeitor, que provavelmente, para estar ali, deveria ter cometido um delito muito sério, que lhe custasse a vida. Ao censurar a fala do outro bandido, reconhece em Jesus o Justo, aquele que realizou durante toda a sua vida a vontade e o querer de Deus; que, ali, naquele injusto sofrimento, padece com confiança total na silenciosa presença de Deus. O Justo, na sagrada escritura é aquela pessoa que cumpre o querer de Deus; que padece sofrimentos por conta de sua fidelidade, permanecendo fiel à Deus. Assim é reconhecido Jesus pelo malfeitor: “Mas o outro o repreendeu, dizendo: Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal. E acrescentou: Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado” (v.v. 40-42).

Jesus lhe responde com a absoluta certeza de quem confia plenamente no Deus do Reino que ele anunciou durante toda a sua vida: “Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (v.43). Só neste versículo, dois temas se entrelaçam, se correspondem e se tornam plenos: a salvação universal que Deus oferece indistintamente e o “hoje” salvífico de Deus. O reinado de Deus em Jesus é este: o agir amoroso e misericordioso de Deus, sempre inclusivo e acolhedor, humanizador e gerador de novas e plenas possibilidades de vida.

Igualmente importante é o tema do Hoje salvífico de Deus: esta salvação, dom e graça, oferecida a todos, sem distinções, acontece sempre no hoje da história pessoal do indivíduo. Por isso, a vida de todo aquele se abre para acolher a vida e a história de Jesus de Nazaré, do Reino anunciado por Ele, transforma-se num encontro salvífico constante com o Deus e Pai de Jesus.

Assim é o reinado de Deus em Jesus: amor, misericórdia, salvação universal, acolhimento. Assim é Jesus Rei, que, paradoxalmente, não reina de um trono ou de um palácio, envolvido pelas ideologias imperiais e monárquicas; não reina a partir do poder, do prestígio, da fama, da glória e da vaidade. Reina desde a cruz, expressão máxima da doação da própria vida; de que o seu reinado, seu agir em nome do Deus que chama de Pai, foge dos esquemas e da lógica mundana.

O discípulo que quiser tomar parte deste reinado deverá estar disposto a assimilar e assumir esta mesma lógica e dinâmica de vida de Jesus.

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.