sábado, 25 de outubro de 2025

REFLEXÃO PARA O XXX DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 18,9-14:

 


A liturgia deste trigésimo domingo do tempo comum apresenta a continuidade do capítulo dezoito do evangelho de Lucas, com um texto muito desconcertante: a parábola do fariseu e do publicano (Lc 18,9-14). Ela traz em sua sentença final, uma provocação absolutamente questionadora que vai além da lógica humana, a qual tem a intenção de conduzir o leitor/ouvinte à uma mudança de mentalidade acerca do modo se relacionar com Deus – não o deus da religião, mas o Deus e Pai de Jesus – e com as pessoas. Nesse sentido, a pergunta desconcertante se expressaria assim: “Seria possível continuar ou viver uma situação considerada pecaminosa pela religião ou pela moral, e ser igualmente amado por Deus? 

A fim de compreender a mudança radical na relação com Deus, Jesus narra a parábola do fariseu e do publicano, destinando-a àqueles que pensam ser perfeitos, graças aos seus esforços, ou, na linguagem do evangelista, “aqueles que confiavam na própria justiça” (v.9). A parábola começa assim: “Dois homens subiram ao Templo para rezar: um era fariseu, o outro cobrador de impostos” (v.10). As personagens já são apresentadas: duas pessoas com condutas opostas.

O fariseu era o observador zeloso da Lei, conhecendo-a nas suas minucias e em suas virgulas. Cumpria rigorosamente as 613 prescrições da lei de Moisés. Pessoas leigas e piedosas, profissionais do sagrado. Mais religiosas que os chefes da religião. Assim, considerava-se justo diante de Deus, e, com isso, separavam-se do povo. O publicano era um judeu que trabalhava para o Império, cobrando impostos de sua própria gente. Eram considerados como traidores e, nesse sentido, piores pessoas e pecadores públicos. Para estes não haveria nenhuma esperança de salvação. Nesta personagem, Jesus apresenta uma pessoa cuja a situação não consegue mudar!

“O fariseu, de pé, rezava assim em seu íntimo” (v. 11). Jesus mostra a atitude e o conteúdo da oração do fariseu. Interessante, ele rezava em pé (para ser visto) e em seu íntimo. A tradução grega é melhor, pois mostra com realismo o modo com que ele rezava, “voltado para si mesmo”. Este homem se coloca diante do Senhor, mas permanece voltado para si, ainda que as palavras que saíssem de sua boca fossem direcionadas à Deus; um monólogo de sua própria santidade: fala para si mesmo e sobre si mesmo.

O fariseu, por sua vida separada, fazia da sua santidade a medida para julgar os outros: “Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos (v.12a)”.  Jesus denuncia a incoerência do fariseu, que através da sua mania de ostentar a sua justiça diante dos homens, na realidade serve somente para mascarar a profunda e real injustiça que existe diante de Deus. Ele, no templo, ao exaltar e se gloriar de sua dignidade e santidade, ao incensar suas práticas, não faz outra coisa senão usurpar o lugar de Deus. É o pecado da idolatria, porque ao glorificar-se com a mesma glória devida a Deus, se coloca como ídolo de si. Tal é a convicção equivocada dele, que a sua atitude de lançar um olhar de desprezo ao publicano lhe denuncia a insensatez e o desprezo: “não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos”.

A concepção equivocada do fariseu em relação à Deus é ainda mais acentuada na parábola, quando elenca as suas atitudes: “Eu jejuo duas vezes por semana, e dou o dízimo de toda a minha renda” (v.12b). São centradas nas práticas da piedade judaica. Entretanto, nenhuma delas voltadas às relações com o próximo. Todas relacionadas ao cumprimento do dever religioso em relação à Deus, mas totalmente desinteressadas do bem ao outro. Por exemplo, a prática do jejum. Na tradição de Israel era prescrita uma única vez ao ano, no chamado Yon Kippur (dia da expiação/perdão). Mas, a tradição religiosa acrescentou mais quatro, aludindo às quatro grandes catástrofes nacionais do povo.

Os fariseus, para destacarem-se dos demais, jejuavam às quintas e às segundas-feiras, porque a quinta-feira era o dia em que Moisés, conforme a tradição, havia subido ao Sinai, e a segunda-feira, o dia em que ele havia descido da montanha. Este jejum bi-semanal era o seu distintivo. Pagavam o dizimo de tudo o que possuíam, e não somente sobre o que era exigido pela Lei, isso porque queria estar seguro de não transgredir nenhuma norma ou prescrição. Assim, faziam muito mais do que era estabelecido. Apresentavam a lista de seus pretensos méritos diante de Deus.

Agora, é importante lançar o olhar para o publicano. Ele vai ao templo com a intenção de rezar, mas não arrisca em fazê-lo. Jesus mostra muito bem a discrepância existente entra as duas personagens. “O cobrador de impostos, porém, ficou à distância, e nem se atrevia a levantar os olhos para o céu” (v.13). Ele tem consciência de sua indignidade; sabe que não pode entrar numa casa de um judeu piedoso, muito menos no templo de Deus, porque poderia tornar impuro todos os que se aproximavam.

A forma e o conteúdo da oração do publicano é, por demais, reveladora, conforme narra Jesus: “batia no peito, dizendo: 'Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!” (v.13). Duas personagens num contraste abissal entre si, mas com atitudes iguais em relação à Deus: o fechamento. O fariseu, enquanto ídolo e deus de si mesmo, se fecha ao Senhor, que pede amor e não sacrifício; o publicano, que convive cotidianamente com o engano e com o roubo. Mas somente este é consciente de sua impureza, de sua indignidade. Mais curioso ainda, ele não promete a Deus mudar de vida porque não lhe é possível. Mas suplica para que lhe seja mostrada a misericórdia, mesmo em sua impureza: “Senhor, veja a vida desgraçada que levo. Não posso fazer outra coisa, não posso voltar atrás. Mesmo assim mostrai-me vossa misericórdia”.

A parábola, como dissemos no início, termina de uma forma inexplicável, com uma sentença desconcertante de Jesus, que faz refletir: “Eu vos digo: este último voltou para casa justificado, o outro não. Pois quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será elevado” (v.14). O publicano retorna para a sua casa justificado, ou seja, em paz e capaz de Deus. Mas isso é inquietante: o que esse fariseu fez de errado? Cumpria e realizava tudo o que ordenava a Lei, e muito mais. O seu erro consiste no fato de ter enaltecido a si mesmo, isto é, tomar o lugar de Deus. Fez se deus de si através da mercadoria de troca que seus méritos representavam. O que fez o publicano ser justificado? Apenas suplicou e confiou na misericórdia e no amor de Deus que lhe exige nada. Nem mesmo faz o propósito de mudar de vida, mas ser receptivo à misericórdia de Deus. 

A parábola de Jesus pretende mostrar como é a lógica do Reino de Deus: nesta nova realidade que Ele propõe, o Reino, não se torna grande e amado por de Deus quem se apoia em seus próprios méritos, mas é amado por Ele devido às suas necessidades. Méritos, ninguém os tem. Agora, necessidades, todos possuem. Então, a moral deste trecho precioso é esta: Deus ama, sem impor a mudança de vida; a comunhão com Deus não depende da conduta religiosa e dos méritos do homem, mas no acolhimento do amor e na vivência dele.

Quem somos, diante deste espelho do texto? O fariseu, mais religioso que os líderes (mais cristãos que o próprio Cristo; mais católicos que o papa; mais padres que os próprios padres)? Ou o publicano, consciente de ser indigno diante de Deus, ciente de não poder ter ou apresentar algum mérito? Como está nossa oração, dado que ela é o modo de se estabelecer uma relação com Deus: é uma relação que se baseia no mérito, enquanto “moeda de troca”; uma oração voltada a si? Ou uma relação que sabe ser grata e gratuita, e, portanto, livre diante de Deus, o qual nos ama livre e gratuitamente, sem esperar de nós os méritos?


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

domingo, 19 de outubro de 2025

REFLEXÃO PARA O XXIX DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 18,1-8:

 


O evangelho proposto para a meditação do vigésimo nono domingo do tempo comum, é retirado do capítulo dezoito, o qual encerra a seção dos ensinamentos sobre o tema da fé dos discípulos, iniciado no capítulo anterior – Lc 17,1-10 – com o pedido para que Jesus lhes aumentasse a fé, seguido do relato da purificação dos dez leprosos, dentre os quais, um samaritano, que, ao retornar para agradecer honra o Senhor com sua fé (Lc 17,11-19), que não pode ser lido no domingo anterior devido à Solenidade da Senhora Aparecida. Por isso, o texto de hoje conclui este ensinamento. A fé dos discípulos deve ser perseverante e orante.

A fé, nos mostrou o capítulo dezessete, é a capacidade de relação com Deus. É e sempre será a resposta que o homem e a mulher, o discípulo e a discípula de Jesus de todos os tempos e lugares oferece a Deus, diante de seu amor, sua misericórdia e seu perdão. Ela habilita o discípulo a se relacionar com Ele segundo a forma e a condição de Filho, e ser reconhecido como discípulo do Reino. Mas esta relação-resposta deve ser sempre conservada a partir da perseverança e da constância, mesmo diante dos desafios e das dificuldades no seguimento a Jesus. É o que o discípulo-leitor do evangelho deve procurar absorver do texto deste domingo, Lc 18,1-8, a parábola do Juiz iníquo e da viúva, personagens simbólicas a serem compreendidas e aplicadas à dois grupos.

Para compreender o texto de hoje é necessário compreender o contexto da comunidade de Lucas (e de todas as comunidades no Século I). Cresce e acirra-se a perseguição contra o movimento de Jesus por parte do Império, pelo imperador Domiciano, e da parte do judaísmo da época. A violência, o insulto, a rejeição, a exclusão e marginalização dos cristãos dos dois lados da sociedade geravam desânimo nos primeiros cristãos e até desistências. Sob este clima é que Lucas tece o relato parabólico que inicia o capítulo dezoito. Este episódio é exclusivo do evangelista, que soube redigir bem o texto, apropriando-se do ensino de Jesus e das personagens, articulando-as a fim de transmitir uma mensagem de ânimo, de encorajamento e de esperança para suas comunidades para fortalecer lhes a Fé, mesmo em tempos de crise.

O texto começa apresentando a intenção do Senhor, a qual revela-se a finalidade do ensinamento que vem a seguir: “Jesus contou aos discípulos uma parábola, para mostrar-lhes a necessidade de rezar sempre, e nunca desistir...” (v.1). Na verdade, o Senhor já trabalhou o tema da oração no capítulo 12 da catequese lucana. Por isso, este não pode ser considerado o tema central deste capítulo, embora apareça novamente. E, para que recordemos sempre: a repetição dos temas é um artifício do evangelista para mostrar as dificuldades que os discípulos-leitores estão apresentando na assimilação dos mesmos. No entanto, se faz importante recorrer ao contexto da comunidade uma vez mais, ou seja, os anos 80. Ela era composta, na sua maioria, por estrangeiros e pagão, os quais não tinham a prática e o costume da oração. Por serem de origem grega, a maioria estava habituada ao costume religioso grego dos sacrifícios apresentados nos templos, aos ritos.

A parábola apresenta duas personagens absolutamente opostas. Um juiz e uma viúva. Com muita precisão  são mostradas as características da personagem do magistrado: “um juiz que não temia a Deus, e não respeitava homem algum” (v.2). É um homem arrogante, autossuficiente, prepotente. Não temer a Deus significa que ele não o reverenciava. O temor bíblico não é sinônimo para o medo. Muito pelo contrário. É a atitude de reverência e de reconhecimento da dependência em relação ao divino. Este homem, mediante suas características, revela-se descomprometido com Deus e com outro (“não respeitava homem algum”).

A segunda personagem que Lucas apresenta como contraste é a viúva. É importante relembrar que esta classe, dentro da tradição religiosa do povo de Israel, devia ser protegida. Mas isso não era feito. Quando a mulher ficava viúva, sem herdeiros, e, não tendo ninguém que a amparasse, todos os seus bens e propriedades podiam ser dados ao templo, aos sacerdotes. Com isso, corria o risco de ficar na miséria, na mendicância, vivendo na marginalização. Muito provavelmente, esta viúva da parábola ao apresentar-se com insistência diante do juiz,  não tinha ninguém por ela. A sua característica é a insistência; a perseverança. Mesmo sabendo que o juiz poderia ser injusto com ela. Via de regra, no AT, as figuras dos magistrados das cidades eram sempre denunciadas pelos profetas por deixarem se corromper por seus próprios privilégios e vantagens, desfavorecendo os pobres que iam a eles pedindo justiça.

Não é o que acontece. O juiz se incomoda com a insistência da viúva. Ele expressa bem sua intenção: “Eu não temo a Deus, e não respeito homem algum. Mas esta viúva já me está aborrecendo. Vou fazer-lhe justiça, para que ela não venha a agredir-me!” (v.4-5). A tradução está equivocada: o juiz não teme a agressão. Primeiro, porque Jesus jamais incentivaria essa atitude, tampouco os evangelistas inspirariam este comportamento para suas comunidades, que já sofriam por demais com a violência. A tradução literal é esta: “Vou fazer-lhe justiça, para que ela não me coloque os olhos negros”. Trata-se de uma figura de linguagem que pretende aludir para o medo de ter sua reputação manchada. Ora, é claro que o juiz injusto não estava pensado no bem daquela viúva ao lhe exercer justiça, mas na sua própria imagem. Ele pensa em si mesmo, tão somente. Não pensa na justiça que pode fazer porque sua preocupação não é o outro. Por isso, quem simbolizam estas personagens?

O juiz injusto é símbolo para a mentalidade e atitude do Império Romano, imbuídos de seus esquemas e sistemas de domínio, opressão, coação, injustiça, violência e morte. Em primeiro lugar, a viúva é na tradição judaica símbolo para o próprio povo de Deus, quando se encontrava oprimido. Para a geração de Lucas, a viúva insistente se torna símbolo para a comunidade cristã, ameaçada nesta história. Ela se torna exemplar e modelo para os discípulos por sua perseverança na fé, mesmo em tempos difíceis; mesmo onde a crise e a dificuldade tomam conta e parecem reinar. É o exemplo da fé insistente e perseverante que a viúva tem que o discípulo precisa assimilar. Sua conduta orante deve imitar à desta mulher. Ora, a oração é aquele momento de intimidade com Deus, de relação pessoal com Ele. Nela se discerne a vida, as opções, as ações. Através dela se pode assimilar o que Deus pede e propõe. A oração é a atitude de colocar os olhos nos olhos do Pai e do Senhor Jesus para ver a direção para a qual eles apontam. No caso, a oração insistente serve para que o discípulo possa saber o momento oportuno para agir e resolver os problemas a partir da ótica de Deus. É, então, esta personagem que deve servir de modelo para a comunidade ou para o discípulo que balança na fé.

Jesus, conclui a parábola chamando a atenção dos discípulos para a conduta injusta deste juiz, para oferecer a eles a certeza de que ainda que aquele magistrado agisse assim, Deus age diferente. Com justiça, e esta é amor e misericórdia para salvar os seus. Nunca um juízo de condenação. O Pai não é como aquele juiz, que se posiciona ao lado de suas próprias convicções e bem-estar, agindo por seus próprios interesses. Pelo contrário, através da parábola, Jesus mostra que o Pai toma um lado na história: o dos  despossuídos, marginalizados e excluídos; ao lado das minorias.

Jesus coloca uma pergunta: “Mas o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?” (v.9). Diante do fato do Senhor assegurar a constante ação de Deus em favor de todos os seus eleitos (o seu povo), Ele coloca a pergunta de modo a provocar os discípulos: diante da fidelidade de Deus, o homem permanecerá fiel à sua relação-em resposta à Deus? Será perseverante? Este será o desafio a ser vivido por aquele que deseja, de fato, seguir o projeto de Deus, tornar-se discípulo de Jesus.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 11 de outubro de 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO APARECIDA – Jo 2,1-11:

 


A Igreja no Brasil celebra a solenidade de sua padroeira, Nossa Senhora da Conceição Aparecida. E propõe para a meditação eclesial o evangelho das Bodas de Caná, Jo 2,1-11. Episódio este contido na catequese do evangelho joanino. O Quarto Evangelho é constituído de duas partes. A primeira, o Livro dos Sinais, que inicia em Jo,1,18 e conclui-se em 12,51, e do livro da Glória, Jo 13 – 20. 

Os Sinais, na perspectiva de João, são gestos simbólicos de Jesus que apontam para a realidade profunda e essencial de sua identidade. Que Nele existe e desponta a novidade (escatológica, da ultimidade, da plenitude) de Deus agindo na história. Mas não devem ser vistos e meditados em si mesmos, e sim orientados para a Hora da Glória de Jesus. Esta é o momento do Seu enaltecimento, sua revelação como Filho de Deus e Messias. Por isso, só pode avançar para a contemplação da hora da Glória o discípulo que percorreu o itinerário descrito nesta primeira parte do evangelho.

O capítulo 2 do Evangelho segundo João apresenta o primeiro sinal realizado por Jesus. Ele o realiza em Caná, na Galileia, no terceiro dia de sua semana inaugural. Não é à toa que esse dado aparece. O episódio 2,1-11 parece dar sequência ao contexto de 1,19-51. Se “no terceiro dia” (2,1) faz soma com os quatro dias de 1,19-51, o episódio de Jo 2,1-11 completa uma “semana inaugural”. Portanto, o sétimo dia. Devemos recordar que o Quarto Evangelho é escrito para pessoas que já foram evangelizadas numa primeira vez, por isso a expressão “terceiro dia” alude ao dia da ressurreição. No horizonte da narrativa, no sétimo dia desta semana acontece um casamento em Caná. Todavia é preferível para esse episódio o termo “bodas”.

As bodas fazem parte do imaginário do povo de Israel. A imagem do casamento serve de metáfora/símbolo para a Aliança (relação) com Deus. Mais ainda, nas expectativas do povo, as bodas seriam o momento da inauguração da era messiânica. Ela representa, nesse sentido, a alegria e a expectativa das núpcias messiânica, que, a partir da mentalidade dos discípulos de Jesus Ressuscitado, se dará através das núpcias do Cordeiro. Adentrando no horizonte do texto, a personagem que encabeça a narrativa é uma mulher; a mãe do Senhor, primeiramente. Ambos foram convidados. Ora, a organização das festas geralmente ficava sob o cuidado das mulheres, as mães de família. Os homens ficavam ali como figuras decorativas. Mas o evangelista elenca também a presença dos discípulos.

A figura da mãe de Jesus deve ser compreendida, de modo a reorientar o olhar para Ele e sua atuação. O texto não tem a mais remota intenção de colocar ênfase na mulher. Um detalhe importante, ela não é mencionada pelo seu nome (é óbvio que o evangelista saiba, mas isso não ocupa lugar para a finalidade da narrativa). Sabe-se, que quando uma personagem aparece de forma anônima, na verdade, o autor está fazendo um convite para que os leitores/ouvintes se identifiquem com esta. Portanto, o texto das Bodas de Caná não pode ser interpretado em chave de leitura da intercessão de Maria.

A “mãe” é símbolo do Israel fiel à Aliança e submetido à Lei. Ou seja, esta personagem ainda está presa ao regime da lei mosaica e ao sistema religioso-cultual da época. O evangelista João propõe para seus leitores/ouvintes, fieis de sua comunidade, a superação e a substituição de todo o sistema religioso e cultual judaico a partir da pessoa de Jesus. Há que se superar estes sistemas antigos para se tomar parte da novidade de Deus presente na história. 

O vinho vem a faltar. A mãe de Jesus nota o fato. Uma festa de núpcias sem vinho! O vinho simboliza a alegria e o amor. Mas para a tradição de Israel, o vinho alude para a inauguração da era messiânica. A mãe se dirige à Jesus, conta-lhe o que está acontecendo e ele responde algo que dá a entender que isso não é assunto dele (lit: “O que há para mim e para ti?”. v.2). Soaria como um “Não é problema nosso”. Com efeito, em seguida, acrescenta Jesus algo que soa igualmente intrigante: “Minha hora ainda não chegou”. De que hora Jesus está falando? De qualquer maneira, ainda não é sua hora, mas o que acontecerá imediatamente será um sinal que encaminhará para este acontecimento.

A mãe diz aos que estavam servindo (lit. diáconos), “fazei o que Ele vos disser”. Aqui tem-se a transformação desta personagem. Recordemos que ela foi estabelecida como símbolo para o Israel fiel. Ao dizer aos servos para colocarem toda a atenção sobre o agir e a palavra de Jesus, ela reconhece Nele a novidade da presença de Deus. O Israel fiel à Deus e Sua Aliança saberão reconhecer Deus mesmo agindo de modo novo através de Jesus. Agora sim, esta mulher começa a fazer parte da Novidade escatológica apresentada pelo Senhor, e passa, então, a símbolo para a Comunidade dos fiéis.

O evangelista nos informa que ali estavam seis talhas de pedras, de mais ou menos cem litros, utilizadas para a purificação ritual (e higiênica) que os judeus costumavam fazer. Elas estavam vazias. Estão ali inutilizadas; já não servem mais, a não ser para o que serviam antes. Mas após a ordem de Jesus para enche-las, a atitude dos servos é de completa-las até a borda (lit. até o alto). Eram feitas de pedra. Foi sobre duas tábuas de pedra que, no Sinai, Moisés recebeu a Lei. No simbolismo judaico, a água é associada à Torá. Essa não falta, vinho sim — falta a alegria messiânica. Por isso, o número seis aparece. Na teologia bíblica, seis indica imperfeição, incompletude (contrário do número sete, que simboliza a perfeição). O narrador denuncia a inutilidade das práticas religiosas judaicas que, diante da novidade de Jesus, encontram-se superadas. Elas devem ser enchidas até a borda. Emerge aqui a ideia da abundância. Assim foi feito. Trazem as talhas ao Senhor, que pede para que as levem até o mestre-sala. O qual prova (v.9).

O mestre de cerimônias chama o noivo, que até agora tinha ficado incógnito. “Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!” (v.10). Esta última parte do versículo adquire um peso devido ao adverbio de tempo “agora”. Ele expressa a realidade de que o “agora” está ai. Este “agora” é a novidade, que é marcada pela abundância do vinho bom, como recorda o profeta Amós no capítulo nono de seu livro, ao dizer que das colinas destilaram vinho em abundância. João recorda também a profecia de Isaias, que profetiza e celebra a abundância vivenciada no tempo messiânico (Is 61; 63; 66).

Qual é o verdadeiro noivo para o qual deveria ter sido dito isto? Jesus, que não deixa faltar o vinho novo e bom. Porque, ao mesmo tempo, o noivo e o vinho melhor são Ele mesmo. Assim, há um “noivo escondido” na história, que vem realizar as núpcias de Deus com a humanidade.

A mensagem final, no v.11 é sumamente importante: “Este foi o início dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galiléia e manifestou a sua glória, e seus discípulos creram nele” (v.11). Notemos que o Quarto Evangelista sublinha que este foi o princípio dos sinais (gr. ἀρχὴν τῶν σημείων/arché tón semeion). Arché (gr. ἀρχὴν / princípio , origem) faz um arco narrativo com o prólogo do Evangelho, quando o catequista bíblico inicia a obra com um solene “No princípio”, que remete ao primeiro dia da criação em Gn 1,1, com a conclusão provisória desta semana inaugural, que remete à nova criação.

Qual é a força de sentido deste texto do evangelho joanino para a Solenidade de Nossa Senhora da Conceição Aparecida? Apresentar Maria como aquela que, entre os processos da vida, sabe reconhecer e apontar o sentido da vida para todos os discípulos do Reino: “Fazer tudo o que Ele disser”, ou seja, a Pessoa de Jesus e a forma de sua existência. Ao mesmo tempo, indicar atitudes ternas e responsáveis dela que podem ser imitadas: a atenção com os acontecimentos ao redor de si (o discípulo precisa estar atento à realidade); o cuidado para com as necessidades dos outros (zelo para com os outros); a prontidão para se colocar a serviço (serviço); a cooperação na solução de um problema (ser presença solidária). Atitudes que podem sempre ser aprimoradas na vida e nos processos pessoais do discípulo e da discípula do Reino.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 4 de outubro de 2025

REFLEXÃO PARA O XXVII DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 17,5-10:

 


A boa leitura do texto bíblico sempre levará em conta a absorção do seu contexto amplo, isto é, o lugar onde a narrativa se encontra. Isso serve para iluminar a compreensão, quando ele parece trazer temáticas diversas. Como parece ser o caso do evangelho deste vigésimo sétimo domingo do tempo comum, retirado do capítulo dezessete do Evangelho segundo Lucas (Lc 17,5-10). Porém, é preciso retomar a leitura dos cinco versículos anteriores.

Nos v.v1-2, o evangelista começa o capítulo falando da eventualidade e da inevitabilidade dos escândalos no meio da comunidade. Isto é, todas as situações que impedem que o discípulo que está iniciando na fé cresça e progrida na vivência desta mesma fé, que é relação com Jesus e com o Pai. O evangelista usa o termo σκάνδαλον (gr. schândalon), que alude à impedimento, ou literalmente, obstáculo.

Na comunidade dos discípulos não deve haver espaço para obstáculos que se interponham ao processo pessoal do indivíduo em se tornar discípulo do Reino e reconhecer-se filho de Deus. Jesus dirá que aquele que produz o escândalo, o obstáculo, deve amarrar uma pedra de moinho no pescoço e ser atirado ao mar.

A pedra de moinho pesava mil e quinhentos quilos. O mar nas Escrituras é símbolo de tudo o que é contrário ao projeto de vida sonhado por Deus. “Ser lançado ao mar”, na verdade, é forma simbólica de se denunciar que a pessoa causadora do obstáculo e do impedimento está na contramão do querer de Deus. Entendamos que o fato de Jesus dar essa ordem não significa que ele esteja fazendo apologia à exclusão. É preciso recordar que o mar é, também, o primeiro ambiente missionário do Senhor e dos primeiros discípulos. Ele convida Simão à vocação de pescar homens dos mares do mundo, fazendo-os começar a dinâmica do discipulado. Nesse sentido, “lançar ao mar” significa proporcionar à pessoa a tomada de consciência de que ela precisa recomeçar a caminhada. É, portanto, uma orientação e inciativa pedagógica que Jesus oferece à comunidade para que a pessoa recupere a sua condição de discípulo, e, mais ainda, reconheça-se filho de Deus.

Jesus toca no tema do perdão, nos vv.3-4, ensinado que o perdão deve ser constante e o distintivo da comunidade dos discípulos. A ordem de perdoar sete vezes não está ligada à quantidade, mas à qualidade. Sete na teologia bíblica indica plenitude/perfeição. O discípulo e a comunidade distinguem-se pelo perdão. Esta é a condição para ser reconhecido enquanto filho de Deus. Estes versículos, então, preparam o texto de hoje. Feitas estas considerações e contextualizações iniciais, agora podemos mergulhar na compreensão da narrativa e extrair dela o ensinamento que Jesus quer transmitir aos discípulos e à nós.

No v.5, após os ensinamentos anteriores de Jesus acerca do escândalo e da qualidade do perdão pedem algo: “aumenta a nossa fé”. Algo estranho. Por isso o Senhor responde de outra maneira no v.6, não dando a resposta que os discípulos querem e pedem: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: Arranca-te daqui e planta-te no mar, e ela vos obedeceria”. A amoreira/sicômoro eram arvores que possuíam raízes tão profundas, que se tornavam difíceis de serem extraídas. O que o Mestre pretende dizer? Que não importa a quantidade da fé, mas a qualidade dela. Ele a compara a um grão de mostarda, uma pequena semente.

Jesus pretende ensinar a seus discípulos que não importa uma fé gigante em termos de quantidade, mas enquanto disponibilidade de relação. Se esta disponibilidade relacional, esta resposta existir da parte do homem e da mulher, eles podem se relacionar com Deus na condição de filhos. Assim, a fé não é algo que o Pai dá. Ela é uma resposta/atitude que parte do ser humano, e não de Deus. Ela não é algo que precisa ser aumentada, acrescentada, mas uma relação a ser vivida e trabalhada pelo ser humano. A imagem paradoxal da árvore arrancada e plantada no mar traduz plasticamente a força da confiança total em Deus

A comparação da qual Jesus se serve, o grão de mostarda, pequena semente, mostra para os discípulos que esta fé não idealizada (grande, qualitativa, ou, mesmo perfeita), mas real, perpassada pelos desafios, pelos obstáculos e dificuldades da vida. A fala do Mestre é uma denúncia: os discípulos não possuem a fé; não estão respondendo ao dom do amor de Deus; não estão se relacionando com Ele na forma e no modo de filhos, que abraçam ao amor e a misericórdia e frutificam este amor e esta misericórdia na relação com os outros.

Jesus propõe, pois, uma alternativa, através da parábola do patrão e do servo (v.v. 7-10). Ela ilustra a atitude verdadeira do discípulo dentro da comunidade e em sua relação com Deus e com os irmãos. O serviço em toda a sua amplitude deve ser sempre desinteressado e gratuito. Quando isso acontece se anula toda pretensão humana de tentar servir-se de Deus e do outro, ou condicioná-los através de uma relação religiosa de tipo contratual ou contabilizável. Ser servo inútil, ou simplesmente servo é papel do discípulo-missionário do Reino, que, no decorrer de sua vida, vai se assemelhando ao Deus servidor e Pai de Jesus Cristo, e a ele mesmo. Eles são o modelo de serviço a serem imitados. Não são senhores, tampouco patrões. O patrão e senhor dos servos (os discípulos) é povo de Deus visibilizado pela Comunidade de Fé, a Igreja, de modo especial, os mais necessitados. Esta deve ser a conduta do discípulo que vive genuinamente sua relação/resposta à Deus e a Jesus, a qual chamamos fé.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.