sábado, 13 de setembro de 2025

REFLEXÃO PARA A FESTA DA EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ – Jo 3,13-17

 


O diálogo (homilia) contido em Jo 3, começou com a procura de Jesus por parte de Nicodemos. Nos primeiros treze versículos, omitidos no texto dominical, o Senhor tocou no tema do novo nascimento (v.3) que se dá pelo Espírito (v.6-8), ou seja, através do dinamismo vital do Deus revelado por Jesus. Agora, portanto, o discípulo-leitor do Quarto Evangelho se depara com os versículos finais do capítulo, os quais contém uma revelação fortíssima acerca da verdade de Deus e de Seu agir.

O capítulo terceiro situa-se imediatamente após o primeiro sinal realizado por Jesus, em Caná, e depois das palavras ditas contra o templo. Ambos revelam e atestam-No como a novidade de Deus presente e atuante na história. Muitos elementos do texto apresentados pelo evangelista estão carregados de simbologia. Uma primeira delimitação que necessita ser feita é em relação a personagem Nicodemos. Quem ele é? É mestre em Israel, chefe dos fariseus e versado nas Escrituras. No horizonte do texto, ele vai procurar Jesus após a purificação do Templo. A atitude e os gestos Dele deixam o rabino em profundo questionamento.

Nicodemos interpreta corretamente a ação do Cristo: é um gesto profético. Ele consegue ver para além de uma ação desrespeitosa. Por isso, se torna simpático à Jesus. Há que se esclarecer o seguinte: nem todo o fariseu era hipócrita, rigorista, intransigente, como os que rivalizam com o Senhor. Pelo contrário, haviam muitos homens piedosos, sinceros e retos, que observavam corretamente a Torá, e dela viviam e ensinavam com coerência naqueles anos 30. Mas o texto precisa ser contextualizado e encarnado na vida. Para isso, se faz necessário utilizar a técnica da fusão de horizontes: o tempo narrado (anos 30 d.C) com o tempo da narração, em que a comunidade se situa (os anos 90 d.C). Por isso, para o evangelista João, a personagem Nicodemos serve como imagem do fiel batizado, que iniciou o processo do discipulado a Jesus e sua vida na Fé. Em outras palavras, a personagem é um símbolo do discípulo iniciado, que procura conhecer o Senhor.

Nicodemos vai encontrar-se com Jesus a noite. Para o Quarto Evangelho este é o período cronológico que alude às trevas. Trevas e Luz desempenha um papel importante ao interno de toda a narrativa. Para João, a Luz é trazida por Jesus, o qual ilumina e insere no âmbito e na realidade de Deus a pessoa que se decide por Seu projeto de vida; que adere a Ele.

Contudo, era no período noturno que os rabinos tinham o costume de ler, rezar, meditar e estudar a Torá. Era uma hora propícia para interiorizar a mensagem divina contida na Palavra. Por exemplo, nos Salmos, encontramos constantemente o salmista que reza, se levanta pela noite para meditar a Palavra. Também Jesus é apresentado, constantemente nos evangelhos, durante a noite, em oração ao Pai. Ora, para o ser humano, a noite é, também, o ambiente em que emergem as interrogações e as inquietações mais profundas da existência, que foram sufocados pelas preocupações do dia. Assim sendo, a noite pode ter sua conotação negativa de uma realidade que precisa ser iluminada (liberada das trevas; de tudo o que é oposição à Deus), mas é, também, uma ocasião propícia para se fazer a experiência com Deus e sua Palavra. Estas duas compreensões não podem ser perdidas do horizonte da leitura e da meditação do texto. Considerações feitas, pode-se, pois, meditar a passagem evangélica.

O v.13 abre o diálogo: “Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem”. Jesus declara a Nicodemos que ninguém viu a Deus. Contrariando a crença de que Moisés pudesse ter visto a YHWH pelas costas. Na tradição de Israel, a ninguém era permitido ver a Deus e permanecer vivo. Mas a sua declaração é explosiva: ele declara-se identificar com o Filho do Homem, o enviado plenipotenciário de Deus para executar o Seu senhorio na história (cf. Dn 7). Mas deve chamar a atenção o movimento que esta personagem, com a qual o Senhor se identifica: desce de junto do altíssimo. Ele vê a Deus e desce. Jesus está dizendo para o chefe dos fariseus que Deus desce a esta história através de Sua pessoa. Esta é a novidade que o discípulo e toda pessoa humana são convidados a acolher. O dom de Deus no Seu Cristo.

No v.14, Jesus no diálogo/meditação retoma o texto de Nm 21,8, a narrativa da serpente de bronze confeccionada e elevada sobre uma haste (ou estandarte), que curava o povo das investidas das serpentes, durante a caminhada no deserto. “Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado”. Palavras muito enigmáticas, que poderiam, inclusive, fazer com que Nicodemos deixasse a conversa.

João coloca na boca de Jesus um verbo muito importante: “levantar”. Mais precisamente, “enaltecido/elevado” (gr. ὑψωθῆναι / ypsothínai). Como o Quarto Evangelho é um escrito ruminado, o autor, conhecedor da tradição escrita de Israel, recuperando o ensinamento do Senhor, recorda-se de Is 52,13-15, o quarto cântico do Servo (sofredor) de YHWH, para ensinar para sua comunidade que o Senhor está a falar de si mesmo. Ao mesmo tempo, o evangelista prepara o seu leitor-discípulo para este momento da vida e da obra do Mestre, a “sua hora”, a qual já havia falado nas bodas de Caná (Jo 2,1-12). Esta, trata-se da revelação da glória – da presença – de Deus em Jesus. Através de seu enaltecimento, Ele revela a presença do Pai, e, este, por sua vez, revela-se todo no Filho. Para João, esta elevação se dá na hora da Cruz.

A serpente de bronze levantada prefigura o enaltecimento (a elevação) de Jesus, na Cruz. Se em Nm 21,8, aqueles que olhavam para a serpente, ficavam curados. Na intenção do evangelista, os que dirigem o olhar para Jesus enaltecido na cruz, com fé, possuem a vida eterna. Olhar (ver), no sentido bíblico significa a capacidade de se estabelecer uma experiência relacional com Deus. Este “ver” indica a atitude da adesão (decisão, opção) que o fiel-leitor e discípulo faz em relação à Jesus. A vida e obra do Mestre consistirá na doação em amor fiel e servidor de Sua própria vida. Isto significa viver sob a perspectiva da cruz. Esta não pode ser entendida como uma vontade do Pai. Ele não quer e não deseja  o sofrimento de ninguém. Ela é uma consequência de Sua vida fiel. Mesmo sem deixar de lado o aspecto da maldade humana.

O Cristo não morrerá na cruz porque será vontade do Pai. Não! Ela é fruto da maldade humana! Jesus, diante da eventualidade e proximidade de sua morte, continua vivendo a vida e a missão sendo fiel até o fim – amando e servindo até às ultimas consequências. Mesmo que esta Sua existência seja perpassada pelo suplício da cruz. A ação ressignificadora da cruz, de sua dimensão de morte em força de vida acontece, porém, pelo fato de que Ele e o Pai transformam (dão força de sentido) a este evento em máxima expressão de amor fiel. Será o amor e a ação de amar que transformarão a morte em força de vida. É amor que faz viver!

Os vv.16-17 comentam os vv. 14-15, porém com uma novidade. João substitui o termo “Filho do Homem” por Filho Unigênito (traduzido mais familiarmente por único (hbr. yahid), “o imensamente querido”). O catequista pretende mostrar a profundidade do mistério que está sendo evocado. Deus amou tanto a humanidade, que deu seu Filho unigênito para salvá-la. Uma constatação importante: o verbo usado não é “entregou” (gr. παραδίδομη/paradidomi) mas “doou/deu” (gr. δίδωμι/didomein). A mensagem que o texto quer transmitir é clara e profunda: Deus doa a vida de Seu Filho para que a humanidade, assimilando o sentido e a plenitude de Sua existência (missão e obra) e vivendo-a seja recolocada no Seu horizonte divino. Deus não é um sanguinário que quer ser pago com sangue. Mas doador de vida e amor. João declara que o Pai doa a existência (a exemplaridade e o modelo da vida) do Filho para que a humanidade, através do sentido salvífico de Sua obra, tenha a mesma vida Dele.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


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