sábado, 30 de agosto de 2025

REFLEXÃO PARA O XXII DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 14,1.7-14

 


O XXII domingo comum continua a meditação da catequese de Lucas a partir do capítulo quatorze. Jesus está fazendo refeição na casa de um fariseu. A viagem é interrompida, mas o leitor-discípulo do evangelho deve recordar que o contexto não mudou: o caminho catequético, teológico, espiritual (geográfico e narrativo, evidentemente) do Mestre acompanhado de seus discípulos à Jerusalém. O texto de Lc 14,1.7-14, tem uma finalidade e uma catequese valorosa. Para isso, devemos contextualizar sua leitura a partir do primeiro versículo.

“Aconteceu que, num dia de sábado, Jesus foi comer na casa de um dos chefes dos fariseus. E eles o observavam” (v.1).  Jesus, pela terceira e última vez faz refeição na casa de um fariseu. Curioso notar que, sempre que Ele faz refeição na casa de um dos líderes espirituais e religiosos do povo, se estabelece um conflito. Desta vez, causado por Ele, porque nesta cena aparece um homem hidrópico (pessoa que sofre com a retenção e acúmulo de liquido em todo o corpo, em especial na região do abdômen. Segundo a crença popular esta enfermidade era fruto de algum ato impuro contra a sexualidade). Em tese, aquele homem não poderia estar ali. Era um impuro e poderia tornar impuro quem dele se aproximasse. O Cristo questiona os líderes religiosos se é lícito ou não curar em dia de sábado, dia dedicado ao repouso total em vista do louvor à YHWH. Os fariseus nada respondem e o Senhor, de sua parte, os censura denunciando-lhes a hipocrisia ao violarem o sábado, colocando seus interesses pessoais acima de tudo, inclusive sobre a Lei do Senhor. Para ele, porém, a dignidade da pessoa vem em primeiro lugar. Depois a lei!

O verbo deve chamar a atenção. Os fariseus observavam a Jesus. Παρατίθημι (paratithemi) dá peso a atitude deles. Significa que estão supervisionando-o. Colocam-se como censores. Procuram algo nas atitudes Dele para poderem apanhar e denunciá-lo por alguma heresia que pudesse dizer ou fazer. Não estão preocupados em desfrutar do momento para aprender. Esta atitude é típica dessa gente ultra religiosa que pensa já saber tudo. Sempre prontos para exercerem o papel de fiscais da fé e da vida alheia. Constantemente compelidos a serem o centro das atenções por saberem a Lei na ponta da língua, e, por força de sua conduta irrepreensível se tornarem notáveis entre os outros. Esta era atitude dos fariseus do tempo do Mestre. Porém, Lucas alerta para que sua comunidade, para a qual escreve o evangelho examine-se diante desta tentação. Por isso, todo o ensinamento que o texto de hoje transmite é endereçado para a comunidade e para o discípulo, porque ela pode muito bem reproduzir o erro dos fariseus e mestres da lei do judaísmo do tempo de Jesus. Feita a devida contextualização, se pode mergulhar no horizonte do texto de Lc 14,1.7-14, proposto para a meditação dominical.

Depois de chamar a atenção das lideranças judaicas, Jesus dirige-se aos demais convidados ao observar uma atitude dissonante daquilo que se esperava de gente letrada e versada na Palavra de Deus: a busca pelos primeiros lugares na mesa, algo inclusive censurado pela literatura sapiencial, em Pr 25. A partir desta atitude dos convidados, Ele começa a ensinar. Seu ensinamento assume o tom de exortação, de chamada de atenção. Só que através de um recurso que o mestre gosta muito: a parábola. Ela ocupa os versículos de 8-11. Sabe-se bem que a função deste gênero literário nasceu no âmbito da literal sapiencial (hbr. Mashal), que recolhe os fatos cotidianos e simples para se transmitir um ensinamento importante. Possui três características: 1) chamar a atenção do leitor-ouvinte; 2) provocar a audiência através dos elementos exagerados contidos nas parábolas; 3) gerar mudança de atitude naquele que a escuta.

"Quando tu fores convidado para uma festa de casamento, não ocupes o primeiro lugar. Pode ser que tenha sido convidado alguém mais importante do que tu, e o dono da casa, que convidou os dois, venha te dizer: 'Dá o lugar a ele'. Então tu ficarás envergonhado e irás ocupar o último lugar (v.8-9)”. Jesus reprova esta atitude de ambição e de vaidade, que acaba sendo típica, isto é, sempre presente nas pessoas religiosas que são encarregadas de algum cargo de relevância, que as fazem se sentir importantes, e, portanto, possuem a necessidade de se exibir, de manifestar e fazer notar a todos a sua importância escolhendo os primeiros lugares.

O ensinamento importante reside no v. 10: “Mas, quando tu fores convidado, vai sentar-te no último lugar. Assim, quando chegar quem te convidou, te dirá: 'Amigo, vem mais para cima'. E isto vai ser uma honra para ti diante de todos os convidados”. Todavia, esta atitude não pode ser assimilada e realizada por simples humildade, mas por algo muito mais superior: por amor e serviço. Jesus está convidando os que O escutam a agir a partir do amor, que tem a capacidade de recolocar nos primeiros lugares aqueles que estão e são últimos. A habilidade de potencializar positivamente o outro. Tornar o outro autor.

O mestre está invertendo a escala de valores da sua sociedade e da nossa; subvertendo radicalmente a falsa mentalidade religiosa a partir da verdadeira ética do Reino. É o que Ele propõe com v.11: “Porque quem se eleva, será humilhado e quem se humilha, será elevado". A verdadeira reviravolta histórica sempre realizada por Deus nesta realidade. Jesus, agora, convida aqueles fariseus, empoderados de seus cargos e lugares de honras, a passar da categoria e do dinamismo do interesse àquela do Dom, da gratuidade e da Graça. Uma simples palavra: à atitude do amor.

Jesus, que foi o primeiro a colocar-se ao lado dos últimos, dos excluídos, dos marginalizados está dizendo que aqueles que, com Ele e como Ele, fazem o mesmo poderão tomar parte da plenitude de sua condição divina, estabelecendo comunhão de vida com Ele. Mas quem pretende se colocar sobre os outros, cindindo com as relações, serão excluídos, o que se dá a entender com a expressão “serão humilhados”.

Os primeiros destinatários da parábola são a comunidade e o discípulo. Mas qual a sua intenção? A de incutir no coração de ambos a atitude do amor e do serviço desinteressado. O amor que é capaz de superar inclusive os interesses próprios.

Do v.v 12-14, Jesus propõe um segundo ensinamento para aquela classe de fariseus, que, todavia, pode ser colocado para toda a comunidade dos discípulos e discípulas de todas as gerações e lugares. “Quando tu deres um almoço ou um jantar, não convides teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos. Pois estes poderiam também convidar-te e isto já seria a tua recompensa. Pelo contrário, quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos. Então tu serás feliz! Porque eles não te podem retribuir. Tu receberás a recompensa na ressurreição dos justos". Se alguém quer ser, de fato, discípulo do Reino e pertencer à comunidade cristã, deve acolher os últimos e servi-los. Eles são simbolizados pelos pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. Eram as categorias de pessoas que, devido às suas enfermidades ou condições sociais, ficavam impossibilitadas de participarem da vida religiosa, uma vez que a enfermidade era, na concepção religiosa equivocada da época, fruto do pecado, e, por isso, eram excluídas pelos sacerdotes e doutores da lei.

Qual a finalidade do texto deste capítulo quatorze do evangelho de Lucas? Jesus orienta seus discípulos, através do ensinamento aos fariseus, a não cair na tentação daqueles mesmos líderes, de, ao sentirem-se superiores em relação aos outros agirem da mesma forma. Mas ao contrário, ir ao encontro dos últimos. Ou seja, para nós o texto se faz atual na medida em que se coloca a atenção e a ação para aquelas categorias de pessoas que, em razão de nossas equivocadas concepções (morais e, inclusive religiosas), pensamos não merecer atenção. Estes últimos são, na realidade os destinatários do Evangelho do Reino. São termômetros para a nossa vida de fé. Mas não se deve realizar essa tarefa mediante interesses pessoais, como faziam os fariseus, mas na ordem do dom, do amor e do serviço gratuitos como fez Jesus.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 16 de agosto de 2025

SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA – Lc 1,39-56:

 


A Igreja celebra a Solenidade da Assunção de Maria, Mãe do Senhor, aos céus. Um dogma de fé relacionado, numa primeira análise à pessoa de Maria. Todavia, ao lançarmos um olhar para o fundamento do dogma – da verdade de fé proclamada e celebrada, acima de tudo – os dogmas marianos estão radicalmente ligados e fundamentados na fé cristológica. Dito de outra maneira, só se pode dizer alguma coisa a respeito de Maria, porque, antes, e, primeiramente, foi dito sobre a pessoa de Jesus. Aqui urge corrigir a expressão cunhada pela mariologia antiga, “Sobre Maria nunca se poderá falar suficientemente (De Maria Nunquam Satis)”. Diz-se o suficiente a respeito dela e, tão somente o necessário, porque foi afirmado primeira e suficientemente acerca de Jesus.

O dogma mariano da assunção reafirma a índole escatológica da Igreja peregrina, da qual Maria é imagem – ícone. Ou seja, ao declarar e professar que Maria foi acolhida na Glória de Deus, a Igreja confessa sua fé na ressurreição. Ele reafirma e reflete o futuro e fim escatológico que está reservado para todo o crente: a vida definitiva e plena em Deus. Dizer que Maria foi assunta aos céus significa dizer que sua vida e história foram assumidas por Deus, em seu projeto salvador e redentor, em virtude do fato de que ela assumiu para si o projeto de Deus, vivendo como verdadeira discípula do Reino.

No Evangelho de Lucas, ela é o exemplo que deve ser assumido por todos aqueles que querem ser discípulos de Jesus e viver segundo a ética do Reino. O catequista bíblico faz questão de tipificar em Maria as atitudes fundamentais que a pessoa deve possuir para se tornar discípulo e discípula do Reino: ouvir a Palavra de Deus, acolhê-la (confronta-la) e frutifica-la através da vida concreta, em amor e serviço aos outros. Estas características estão bem ilustradas na cena da Anunciação do nascimento do Salvador versículos antes. Na cena anterior (Lc 1,25-38), Maria, ao encarnar em si a Palavra geradora de vida, se assume serva desta mesma Palavra e parte apressadamente para a região montanhosa da Judéia, a fim de assistir a sua parenta, a antes estéril Isabel, de idade avançada, e, agora, grávida. A esterilidade era uma vergonha naquele tempo. Maria decide-se por viver a Palavra de Deus colocando-se ao lado dos envergonhados e humilhados. Assume, portanto, a Palavra libertadora e geradora de vida sendo instrumento de libertação. Isso posto, podemos adentrar no horizonte do texto de hoje. Maria, ao assumir viver pela Palavra, se torna Sua servidora, e é capaz de assumir os irmãos.

Na casa de Zacarias, ocorre o encontro entre as duas mulheres. Elas ocupam o lugar central da narrativa. Maria, por primeiro saúda Isabel provavelmente com o significativo  Shalom. No entanto, prevalece para o narrador e leitor o interesse neste primeiro encontro: as duas mulheres que trazem consigo as duas crianças. É o encontro entre o Fruto do Espírito, Jesus, com o sinal profético do Espírito, João.

Então, Isabel profere uma benção (hbr. Berakah) à Maria. Precisamos compreender que a benção bíblica é sempre, e, em primeiro lugar, uma “bendizência (louvor)” a Deus por aquilo que ele fez. Não se trata de um ato mágico. A fé judaico-cristã não admite qualquer compreensão ou concepção mágica nas mediações religiosas.

Isabel bendiz a Deus pelo acontecido em Maria e com ela mesma. A mãe de João reconhece, pelo Espírito, Aquele que está presente no seio de Maria. O estremecimento de João desde o seio de Isabel, indica que desde o ventre materno ele já profetiza a vinda do Senhor, já O sente, e manifesta Sua presença (v.42).

O evangelista faz aqui um midrash – uma interpretação – do texto de 1Cr 15,28 e 2Cr 5,13, onde o povo aclama a presença de Deus na Arca da Aliança. Também Davi, quando da visita da Arca em sua casa, exclama: “como poderá vir a mim a Arca do Senhor? (cf 2Sm 6,9)”, acolhendo-a, depois, com jubilo e danças. Estes textos servem de pano de fundo para esta narrativa da visita a Isabel para indicar o seguinte: Maria é, agora, a nova Arca que traz a presença salvífica do Senhor, em meio ao povo. Isabel profere, então, uma bem-aventurança à Maria: “bem-aventurada aquela que acreditou”. O acento, aqui, recai sobre o verbo “Acreditar (gr. πιστεύω/pisteûo)”. É mulher feliz (bem-aventurada) porque acreditou na Palavra que Deus lhe dirigiu.

Então Maria responde à Isabel com um canto de ação de Graças e louvor, composto por muitos versículos dos salmos, e de outros textos do AT. Lembra o cântico de Ana, mãe de Samuel, que também não podia ter filhos. Ela assume em si todos os filhos frutos da promessa da graça de Deus (1Sm 2). Deus levanta os humilhados, porque Maria é uma humilhada, no sentido de que ela é uma menina ainda; não tinha, até aquele momento, um lugar na sociedade. Lembremos que era ela apenas desposada. Se alguém ficasse sabendo de que ela estava grávida, ainda prometida em casamento, isso seria uma grande humilhação e vergonha.

A melhor tradução para esse versículo seria: “Porque olhou para a humilhação (gr. ταπείνωσις / tapeînosis) de sua escrava”. Maria não é humilde naquele sentido de uma virtude piegas e pedante (que no fundo esconde bem os verdadeiros interesses), ou aquele “coitadismo”, mas a humilhada, uma a’nih, ao lado dos a’nawim, os pobres, humilhados e oprimidos, que recorrem a Deus por socorro. Portanto, o Deus de Israel é aquele que levanta da humilhação os humilhados.

O v.50 mostra o tema da misericórdia, o qual é muito precioso para Lucas. Ele se faz presente em todo o contexto do evangelho. No seu cântico, Maria se apropria de toda a história de Israel (v.51), no intuito de mostrar a atuação do Todo-poderoso – El Shaday – que fez grandes coisas: colocar seu coração ao lado dos desfavorecidos da história. Todas estas tradições histórico-salvíficas ressoam no Magnificat de Maria. Com seu hino profético, ela proclama a opção que Deus faz; o lado que o Todo-poderoso assume: o dos pobres. Mas não é só se colocar ao lado dos pobres! Os versículos seguintes colocam em evidência a ação do Deus ao qual Maria serve.

Os v.52-53 são muito importantes pois acenam para a chamada inversão escatológica, a mudança, a reviravolta que Deus opera na história; a subversão dos valores e das categorias conforme a lógica do Reino. “Deus derruba dos tronos os poderosos e eleva os humilhados, enchendo de bens os famintos e despedindo de mãos vazias os ricos”; ou seja, os valores dos poderosos não valem mais no tempo do Espírito. Eles perdem seu poder e os humilhados são exaltados, ou seja, colocados em seu lugar. Maria termina cantando a realização das promessas ao servo Israel (Jacó e todo povo). A serva Maria identifica-se com o servo Israel, ou seja, o povo que está à disposição de Deus.

Na arca da nova aliança não há tábuas da Lei, não há normas nem preceitos. Existe apenas Jesus, expressão máxima do amor e da misericórdia de Deus para com toda a humanidade. Assumir o projeto amoroso de Deus que é gerar vida, acolhimento, amor, solidariedade e serviço resulta ser por Deus em Jesus assumido para a vida eterna, que já começa a ser vivida nesta história.


Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 9 de agosto de 2025

REFLEXÃO PARA O XIX DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 12,32-48:


A liturgia continua a leitura do evangelho segundo Lucas, desenvolvendo hoje os vv. 32-48. O contexto amplo é o da viagem de subida para Jerusalém. Neste longo percurso (literariamente falando, composto de dez capítulos), o evangelista recolhe os ensinamentos basilares do Senhor comunicado aos discípulos. Na seção proposta para a liturgia dominical, o mestre desenvolve os ensinamentos transmitidos nos versículos anteriores, no tocante às atitudes e posturas dos discípulos em relação aos bens (v.32-34), e acrescenta mais três características: a vigilância, o serviço e a responsabilidade, ilustradas pelas três parábolas aqui contadas (vv. 35-48). Isto posto, é possível adentrar no horizonte do texto.

“Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o Reino” (v.32). Os três primeiros versículos se conectam ao tema que os precedeu: o abandono nas mãos do Pai e a busca fundamental pelo Reino. Os discípulos de Jesus são comparados a um pequeno rebanho, ao qual este lhe é confiado. O que fora ensinado a pedir no Pai-nosso (cf. 11,2) já está acontecendo na vida das comunidades cristãs. Ora, o Reino é um dom do Pai à comunidade dos discípulos. Mas há um apelo radical feito pelo Senhor: “Vendei vossos bens e dai esmola. Fazei bolsas que não se estraguem, um tesouro no céu que não se acabe; ali o ladrão não chega nem a traça corrói.” (vv. 33-34). A ênfase da exigência é colocada no modo como os discípulos se relacionam entre si e com os outros, isto é, na partilha dos bens. Ou seja, o reino começa a se implantar lá onde os bens dos discípulos são postos à disposição de todos, preferencialmente aos mais pobres.

No v.35, Jesus começa a contar três parábolas. Já é conhecida a preferência que Ele tem por esta forma de ensinamento sapiencial, o qual recolhe toda a realidade simples do cotidiano, para se transmitir uma lição importante. Este recurso pedagógico possui três intenções: provocar, chamar a atenção e propor uma mudança de atitude no leitor/ouvinte do evangelho, no caso, o discípulo e a comunidade.

A advertência feita pelo Senhor antes da primeira parábola é muito importante: “Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas” (v.35). A veste comprida que os homens usavam na sociedade do tempo de Jesus era suspensa até a cintura, na altura dos rins, por meio de uma estreita faixa, durante o trabalho ou a viagem, de modo a não impedir os movimentos. Portanto, cingir os rins e manter a lâmpada acesa indica a pronta disponibilidade. Nesse sentido, a vida dos discípulos é caracterizada por duas atitudes: a vigilância e a responsabilidade. Deve estar alerta, sempre preparado. Assim, o tempo da espera é o tempo da responsabilidade e da fidelidade.

Dos vv.36-38, Jesus transmite a primeira parábola, embasando-se na experiência patrão-empregado. O tom dela é de advertência, mediante o uso do modo verbal no imperativo. Exorta aos discípulos a assimilarem a imagem dos empregados que estão a espera do seu patrão que volta de uma festa de casamento. Ela tem a intenção de inculcar no leitor/ouvinte e no seguidor uma espera vigilante e constante. Quanto mais a espera se faz extensa, e incerta a hora da chegada, tanto mais necessária é a vigilância perseverante dos empregados. Eles são declarados “bem-aventurados”, felizes. E acontece algo inimaginável na parábola (e este é o elemento exagerado que serve para chamar a atenção de quem escuta), que é mudança dos papeis. O Senhor/patrão assume o traje de trabalho e se põe a servi-los, enquanto os empregados tomam lugar à mesa. Isto não acontecia na realidade cotidiana. Um elemento muito belo na catequese lucana que deseja mostrar a inversão realizada na história pelo Deus e Pai de Jesus; ou seja, o Deus patrão e senhor assume a forma de um servo.

A segunda parábola assume uma imagem inconcebível para aquele tempo. Jesus compara a vida de Deus como um ladrão que vem assaltar a residência do chefe da casa. Os arrombamentos noturnos eram fatos conhecidos de todos. As casas palestinenses eram muito frágeis e fáceis de serem invadidas. Mas a ênfase do Mestre está na atitude da vigilância que o discípulo precisa exercitar, para acolher o dia do Senhor. A imagem do ladrão noturno aplica-se ao Filho do Homem juiz ou salvador que vêm inesperadamente (cf. lTs 5,2; 2Pd 3,10; Ap 3,3). Daí a exortação urgente às primeiras comunidades cristãs, a não se deixar tomar pela indolência ou pela preguiça.

A terceira, mas não menos importante, é a do administrador (gr. οἰκονόμος/oikonomos/ecônomo = administrador da casa), que é adjetivado por Jesus como fiel e prudente, ao qual o patrão, durante a sua ausência, confiou a responsabilidade de todo o pessoal de serviço. Ele tem duas possibilidades: ser fiel, e assim receber de seu senhor uma recompensa que vai além de qualquer limite (cf. 19,17-19). Sua fidelidade se revelará na forma como age com seus irmãos ao cuidar, nutrir, servir e ama-los, isto é, propor e dispor todo o necessário para que tenham qualidade e plenitude de vida durante a ausência do dono da casa. Ou abusar de seu poder, trair a confiança de seu senhor e mandar despoticamente sobre os outros servos, agindo com violência e com força, espancando-os; ou pensando somente em si, comendo, bebendo e embriagando-se.

Num primeiro momento, Jesus aplica esta parábola aos chefes religiosos de seu povo, os mestres da lei, os fariseus, os sacerdotes. Mas no âmbito da comunidade, este ensinamento também é destinado à todas as lideranças, chamadas a viver a missão recebida. Na lógica do Cristo a comunidade cristã tem um só e único chefe e Senhor (cf. Mt 23,8-10), enquanto todos os outros são servos e irmãos. Aquele que recebeu o cargo de presidir a comunidade dos servos do Senhor permanece fiel só se não se transforma em dono da comunidade. O imprudente receberá o seguinte pagamento: “ele o partirá ao meio e o fará participar do destino dos infiéis” (v.46). A punição “partir ao meio” (gr. διχοτομήσει/dikotomêssei) era a máxima execução aplicada na Pérsia, mais cruel até que a crucifixão no império romano. No mundo judaico, expressava a pena destinada a quem transgredia a aliança. Não se trata propriamente de um anúncio de castigo, mas de um alerta à perda de sentido da vida.  

“A quem muito foi dado, muito será pedido; a quem muito foi confiado, muito mais será exigido!” (v.48). Este versículo que conclui a seção de hoje pode ser entendido desta maneira: o que foi dado em plenitude ao ser humano foi o Reino. Por isso, do discípulo se exige que viva a altura deste projeto.

Na vida concreta, assim como na vida comunitária e fraterna, como viver e crescer nestas três atitudes – a vigilância, o serviço e a responsabilidade – apresentadas pelas três parábolas de hoje? Tenho consciência de que também eu, através do Batismo, sou chamado a ser administrador dos bens de Deus para os irmãos?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.